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Processos de simbolização

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 138-145)

3.2.1 Tipo de estudo

3.3 Procedimentos de recolha de dados

3.3.3 Procedimentos de análise do processo-resposta Rorschach

3.3.3.2 Processos de simbolização

Partindo da apresentação teórica e metodológica que efectuámos sobre o Rorschach, vamos abordar de seguida de que forma se exprimem os processos de simbolização, tendo em conta a simbologia latente de cada um dos cartões explicitada anteriormente. Procuramos aceder à forma como se expressam as possibilidades que estas mulheres têm de criar/encontrar o novo na relação recíproca entre o Eu e o Outro.

Para além das características estruturais e sensoriais dos cartões do Rorschach, referidas anteriormente, é possível ainda fazer uma diferenciação do ponto de vista simbólico nos dez cartões, a partir da abordagem proposta por Rausch de Traubenberg (1970/1983). Os cartões de Rorschach são descritos segundo três dimensões:

características objectivas do material, tonalidade emocional e a “solicitação simbólica latente privilegiada”.

O cartão I é o cartão de entrada na situação de teste, é importante compreender a postura do analisando face a uma situação nova, perante o desconhecido, podendo esta caracterizar-se ou por uma passividade dependente ou por uma activação massiva de defesas. A ausência de referências e a estranheza do estímulo assumem as características de uma mudança catastrófica, a qual suscita a capacidade de síntese e de integração dos elementos.

A atitude exploratória da situação no contexto relacional cria novas verdades, desde que seja possível a criação de um continente que contenha a angústia suscitada pela ausência de referências. O cartão é caracterizado por uma tonalidade emocional disfórica ou neutra, sendo habitual que o sujeito se refugie em referências banais.

A um nível menos evoluído, este cartão remete para a relação a uma imago materna omnipotente, com as suas valências positivas e negativas, nomeadamente as que se referem à segurança ou ameaça. A composição tripartida do cartão pode apelar a cenas relacionais onde o perigo da relação não é excluído, particularmente o perigo de que é alvo a personagem central.

Quanto à representação de si, a imagem do corpo é reforçada pelo seu aspecto fechado do cartão, pelo traçado evidente do eixo e pela presença de uma imagem de corpo em torno desse eixo. A sensibilidade às lacunas intermaculares, ou aos contornos da mancha, ou ainda à abertura superior, podem ser elaboradas por uma fragilidade mais ou menos importante da imagem do corpo próprio.

Pela sua configuração, (tal como no cartão IV) o surgimento de respostas que não têm em conta a dimensão compacta, como imagens separadas pelo eixo mediano, dão-nos conta que essas imagens não são complementares, mas um duplo de si mesmo, dessa forma evidencia-se a dificuldade na constituição de um continente que permita a emergência de pensamentos.

No cartão II, o vermelho reenvia em geral para as diferentes pulsões agressivas e/ou sexuais de nível evoluído (no sentido de luta, da competição) ou de nível primário (destruição, rebentamento). A lacuna mediana pode ser vivida como uma falha corporal. Relativamente às representações das relações, são reactivados modos relacionais nos quais os investimentos pulsionais são maciçamente mobilizados, em especial na sua

componente agressiva, apesar de a erotização se poder manifestar. Desta forma, a capacidade de pensar o relacional é testada pela bilateralidade e pelo vermelho. Urge a criação de um continente que abarque os afectos agressivos e sexuais, permitindo assim a elaboração dos elementos β em elementos α possibilitando a emergência do pensamento.

Este cartão reenvia para o relacional, dado o seu carácter bilateral, pelo que importa averiguar aí integra a expressão dos afectos suscitados, pelo vermelho, podendo evidenciar a possibilidade de viver essa relação sem o risco de se sentir ameaçado ou mesmo destruído.

Se for apreendido na sua globalidade, este cartão pode reenviar para uma problemática pré-genital de nascimento, através da qual as relações mais precoces com o objecto materno são caracterizadas por uma conotação simbiótica e/ou destrutiva. A mancha apela igualmente à problemática da castração e da bissexualidade. A um nível mais arcaico, a apreensão global, como um todo disperso, em que a lacuna mediana é sentida como fenda interna e no qual as manchas vermelhas reforçam a vivência destrutiva do interior do corpo.

Relativamente ao cartão III, a significação simbólica dominante resulta da disposição espacial das silhuetas humanas que se impõem, e que por isso constituem uma banalidade. A falha ao nível da representação corporal pode remeter para angústias de desintegração. Neste contexto começa a esboçar-se a necessidade de representação de si face ao outro ou, às descobertas do outro e o tipo de relação procurada.

Em relação à imagem do corpo, encontramos, tal como no cartão anterior mas de um modo não tão mórbido, a referência a uma representação do corpo humano inteiro na medida em que o seu conteúdo manifesto é muito próximo da realidade de silhuetas humanas. Devido à sua configuração lateral a identidade e o investimento da imagem de si, pode se insurgir num vago da identidade quando as personagens se apresentam em duplo, sendo uma, o duplicado da outra, sobretudo quando a identidade da representação é mal destacada como se os processos de individuação não chegassem a construir uma imagem de si estável.

O reconhecimento da diferença de sexos e os modelos de identificação, são aqui suscitados os mecanismos de identificação a modelos sexuados através de representações específicas e de tomadas de posição activas e/ou passivas que testemunham escolhas, mais ou menos fáceis, no assumir dos papéis sexuais. O cartão

dá lugar a identificações claras e sólidas ou dá conta de oscilações que também surgem em todas as respostas neutras de tipo “dois seres”, “duas pessoas”. Podem surgir dificuldades ao nível da identificação e consequentemente da relação, quando surgem personagens pertencentes a mundos maléficos, desvitalizadas, ou quando a relação é conflitual.

No cartão IV, a solicitação simbólica latente está ligada ao poder, força ou autoridade, suscitando reacções negativas ou positivas de identificação com a dominação ou submissão, podendo surgir atitudes que valorizam a força ou de refúgio na inconsistência e na passividade. Desta forma, a dinâmica criada Ps↔D, revelará as possibilidades de simbolização dos sujeitos. A imposição de imagens potentes com carácter destrutivo será indicadora da identificação projectiva com carácter patológico. Assim, as representações de relações podem surgir evocações de vertente paranóide da relação com a imago materna nas suas representações ameaçadoras e poderosas.

A apreensão global é muito frequente e os detalhes, mesmo dominantes, ficam ancorados à massa global na qual predomina a construção da imagem corporal facilitada pela silhueta humana que se destaca perceptivamente. Embora o cartão não destaque de imediato a representação do corpo, espera-se que surjam imagens de potência que consoante a imagem corporal, bem definida ou não, possam ser bem ou pior organizadas.

A cor preta e a forma da mancha suscitam muitas vezes respostas disfóricas, acompanhadas por intensos sentimentos de angústia, mal-estar e desconforto, quando isso acontece, esta tem que ser elaborada, de forma que o pensamento seja viabilizado.

O cartão V, pela sua forma e cor surge como o cartão mais unitário sendo a reacção emocional tanto mais neutra quanto a mancha está próxima da realidade objectiva. A reacção disfórica do cartão anterior poderá persistir ou poderá haver uma tentativa de valorização narcísica através do manuseamento activo do estímulo.

A sua característica unitária remete para uma apreensão global, todavia, esta unidade poderá ser rompida se as duas metades forem consideradas em oposição ou se o corpo central for evitado a favor das saliências ou das linhas marginais. É solicitada assim, a capacidade de delimitação de um continente, integrando a unidade psíquica e somática.

Em relação à imagem do corpo, este cartão é reconhecido como sendo o da identidade e da representação de si, podendo surgir dois tipos de reacções negativas: a incapacidade de reconhecer a identidade global que o cartão sugere ou, para além da ausência do reconhecimento da realidade quase evidente de um “animal alado”, poderá surgir o reflexo da expressão de uma ausência total de representação, do vazio, do nada, da impossibilidade de nomear seja o que for. Devido à constituição unitária, este cartão apela à integridade psíquica e somática, ao conceito unitário do Eu, pelo que podemos aceder aos aspectos referentes à identidade e ao narcisismo, nas suas vertentes depressivas ou exibicionistas.

O cartão VI apresenta-se muito saturado de implicações sexuais e/ou de energia e de dinamismo que a sua dimensão fálica é mais recorrida do que a simbólica do corpo feminino. No entanto, a elaboração da ambiguidade (dada pela simbologia feminina e masculina), põe em jogo a capacidade de oscilação e de ir da clivagem à integração e por fim a delimitação de um continente.

A solicitação simbólica sexual pode ser conduzida por uma temática de poder objectivo ou mítico e, o movimento em Kob pode ser a expressão da dinâmica actividade/passividade, consoante uma modalidade agressiva ou mesmo destrutiva, ou então, pela sua negação, evitamento ou substituição por uma imagem passiva favorecida pela estompagem que pode assumir, então, uma conotação anal. A capacidade de pensar é assim posta à prova pela possibilidade de conter a angústia suscitada pela ambiguidade sexual do estímulo.

Apesar do carácter compacto do cartão, a evidência da simbologia sexual pode mascarar a solicitação da imagem corporal.

O cartão VII, pelo seu aspecto inacabado, ou instável, faz com que a tonalidade emocional deste cartão seja sentida de um modo neutro ou acentuadamente negativa. A solicitação simbólica claramente feminina/materna e sempre em função da sua própria relação primitiva com a mãe remeterá a imagens securizantes ou negativas, podendo mesmo ligar-se a uma experiência abandónica.

Relativamente à imagem do corpo, este cartão, embora com pouca frequência, pode suscitar interpretações que reflectem uma angústia de desintegração, dada a sua estrutura bilateral e a participação do branco associado ao vazio e à falta, que ao mesmo tempo, põe à prova os limites dentro/fora.

Num nível mais arcaico, são numerosas as respostas que têm por suporte a base (pormenor inferior), para exprimir os fantasmas de relações simbólicas, uma separação impossível de operar ou uma simbiose dolorosa e destrutiva. A problemática da imagem corporal pode surgir, suscitada pela cor branca, muitas vezes associada ao vazio e à falta, assim como a definição dos limites dentro-fora.

Os cartões pastel são particularmente significativos no que diz respeito às relações de objectos de amor e de ódio, pois suscitam a emergência de emoções e de afectos, permitindo a apreensão do tipo de relação que o sujeito estabelece com o seu meio. As relações humanas podendo não ser muito encenadas, fornecem informações preciosas sobre a maneira de estar do sujeito no mundo. A passagem para a cor imprime uma cesura no decurso do teste, para um clima emocional.

O cartão VIII, como primeiro cartão pastel remete para os contactos com o meio exterior e revela o tipo de investimento com o meio. A mudança de cenário, pela introdução das cores transportará a um matiz mais positiva das reacções. A reacção disfórica é rara e não surge senão na sequela de respostas de corpo distorcido, devorado ou destruído. A mudança catastrófica é imposta pela alteração do clima emocional devido à introdução da cor. A solicitação do mundo externo e a integração dos afectos no pensamento. A capacidade de manter uma relação íntima sem se desorganizar.

A apreensão global quando se apresenta, integra as cores e, por vezes, assenta exclusivamente nestas. Espera-se que os detalhes laterais sejam destacados e, como no cartão III, a imposição destes detalhes favoreçam a interpretação formal em detrimento das cores.

A articulação entre a emoção e a cor representará a solicitação à troca e à partilha emocional, à comunicação. A significação dependerá, sobretudo, do manuseamento das cores: negação, evitamento explícito ou indirecto, reacções apenas qualitativas ou utilização de imagens de componentes muito diferentes.

A associação dos espaços brancos ao manejamento das cores, surge em diferentes níveis, desde o primário destruidor ao mais secundarizado e intelectualizado. As respostas podem surgir no sentido de valorização narcísica ou das preocupações somáticas ou mesmo de uma vivência de destruição corporal, podendo acontecer igualmente que a cor seja despojada de afecto, espólio de um manejamento pseudo- afectivo, distante e frio. Este cartão dá-nos conta de uma fragilidade que se poderá

relacionar com uma vivência carencial, se sobressair uma sensibilidade aos detalhes brancos tratados como faltas.

A imagem do corpo apresenta-se, tal como observamos nos cartões pastéis, sob o cunho de preocupações hipocondríacas e/ou de angústia de fragmentação, aspecto muito frequente nos protocolos psicóticos. Os cartões pastel solicitam intensamente o narcisismo do sujeito, quer no sentido de um laivo gratificante ou de uma angústia existencial pela intensa regressão que podem induzir.

O carácter regressivo do cartão IX poderá ser sentido em função da aceitação ou da resistência ao apelo simbólico que suscita a ambivalência quanto às escolhas ou quanto às rejeições. Devido à ausência de elementos rapidamente estruturantes, a ressonância face a este cartão é geralmente intensa e raramente neutra. A capacidade para a delimitação de um continente face a um objecto com carácter regressivo e de grande complexidade sensorial é assim posta à prova.

A fusão de cores e das fendas dão uma dimensão de profundidade e de interpenetração, de modo que a apreensão global se deva quer às cores, quer a uma articulação esforçada à volta da zona mediana que desempenha um papel muito dinâmico, quer à integração cinestésica das formas e das cores.

Nos termos simbólicos do cartão, deparamo-nos com a riqueza de significações possíveis podendo o pólo pulsional compensar ou substituir a solicitação à regressão. Os movimentos regressivos vividos como negativos ou positivos, associam-se a uma simbólica materna pré-genital ligada a fantasmas de gravidez e de nascimento que, reelaboradas mentalmente, proporcionam construções criadoras em cinestesias e cores.

A dificuldade no manejamento destes mesmos fantasmas pode conduzir a respostas cruas ou de deterioração corporal que nos dão conta da fragilidade dos limites interno/externo, ou pelo contrário, o surgimento de um sentido, de algo que possa ser pensado face ao carácter abstracto do cartão.

A tonalidade emocional do cartão X baseia-se em duas particularidades: o facto de ser o último cartão e de, por isso, reenviar à ruptura da situação no sentido de um alívio ou de uma ferida, e o facto de a dispersão e o desmembramento do estímulo favorecer ou bloquear as associações.

A atracção pelas cores, ou pelo contrário a ameaça pela fragmentação e dispersão dos elementos que constituem a mancha, vai mostrar as capacidades de construção de significados elaborados por parte dos sujeitos.

A dispersão das manchas de cor suscita respostas baseadas simultaneamente na cor e no aspecto indeterminado das formas. A multiplicidade das cores, e as formas indefinidas solicitam as possibilidades do sujeito em termos de síntese e de organização do mundo interno e do mundo externo, podendo a tonalidade afectiva ser absolutamente eufórica ou marcadamente fragmentária, em sujeitos sem sólidas referências de base.

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 138-145)