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Transformações Dionisíacas

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 54-57)

II ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.1 Encenações dionisíacas no feminino

2.1.4 Transformações Dionisíacas

A senda de Dioniso começa na Antiga Grécia, onde se contava o seguinte: Dioniso era filho de Zeus e de Sémele. Zeus disfarçara-se de mortal para seduzir Sémele, filha de Cadmo e Harmonia, Reis de Tebas. A mulher, Hera, ciumenta, descobriu o que o marido andava a fazer e arquitectou uma vingança. As irmãs de Sémele possuídas de inveja convenceram-na a insistir com o amante para que revelasse a verdadeira identidade. Sémele estava grávida de seis meses e certamente Zeus lhe negaria tal pedido. Apesar da insistência de Zeus, Sémele não desistiu do seu desejo e ao contemplar o Deus em todo o seu esplendor desfez-se em cinzas.

Hermes ao aperceber-se de tal tragédia apressou-se a retirar a criança do útero da mãe e coseu-a dentro da coxa do pai, onde cresceu durante os três meses que se seguiram. Com o auxílio de Hermes, Zeus deus à luz o seu filho que ficou conhecido como o Deus que nasceu duas vezes.

Hera dominada pelos ciúmes continuava furiosa e ordenou aos Titãs que capturassem o bebé e o matassem. Desfizeram-no em pedaços e cozeram-no num caldeirão. Do seu sangue brotou a primeira romãzeira. A mãe de Zeus, Reia, reparou no que os Titãs estavam a fazer ao neto e juntou todos os seus pedaços, de modo que Dioniso pudesse voltar a viver.

Nos primórdios da sua existência, este Deus Grego é sujeito a várias tentativas de fragmentação, num movimento cíclico entre vida e morte, no entanto, a imortalidade supera-as. Ao referirmo-nos a Dioniso, falámos do Deus que renasceu três vezes.

Ainda em criança, Dioniso, foi confiado a Hermes, que o deu a criar ao rei de Órcomeno, Átamas, e à sua segunda mulher. Disse-lhes que vestissem o pequeno Dioniso com roupas femininas para despistar o ciúme de Hera, e assim passasse despercebido. Hera não se deixou enganar e enlouqueceu a ama de Dioniso, Ino, e o próprio Átamas.

Ao contrário das outras divindades Olimpianas, Dioniso aparece muitas vezes caracterizado com atributos que lhe conferem uma identidade sexual dúbia – trajado com vestimentas masculinas e femininas. Outras vezes a transfiguração surge sobre a forma de animais.

A maternidade e a paternidade surgem intrincadas, pois é gerado na coxa do pai. Dioniso transportará a confusão entre o masculino e o feminino, abrindo espaço para a

androgenia que se manifestará na confusão dos papéis femininos e masculinos, que a par dos estatutos de cidadania se encontram definidos com rigor na Pólis.

Dioniso e Deméter eram considerados os melhores amigos da Humanidade, pois a eles era-lhes atribuído a fertilidade da terra (Hamilton, 1942/2005). Deméter era a deusa do trigo e Dioniso, o deus da vinha e do vinho, daí ter como símbolos vegetais a hera e a videira. O pão e o vinho surgem desta forma, ligados a duas divindades, conexão que mais tarde foi assimilada pela cultura judaico-cristã.

Mas Hera, dominada pelo desejo de vingança, enlouquece Dioniso. Na sua loucura vagueou pelo Egipto e pela Síria. Desse modo, regressando da Ásia atingiu a Frígia, onde foi acolhido pela deusa Cíbele, que o purificou e iniciou nos ritos do seu culto.

De regresso à Grécia, Dioniso foi para Tebas, terra da sua mãe, para aí instaurar o seu culto. Porém as suas irmãs negam a sua ascendência divina, pois foi gerado a partir de uma relação entre um Deus e uma mortal. Desta forma, Dioniso vê-se na contingência de honrar o nome de sua mãe: “É que esta cidade tem de aprender até ao fim, ainda que o não queira, que lhe falta ser iniciada nos meus rituais báquicos e eu tenho de tomar a defesa de minha mãe Sémele, aparecendo aos mortais como a divindade que ela gerou”.

Penteu, Rei de Tebas, era sobrinho de Sémele, mas não fazia a mínima ideia de que Zeus, quando Sémele morrera, salvara o filho. As danças selváticas, os jubilosos cantares em tom elevado e o comportamento, de um modo geral estranho, dessas mulheres afiguravam-se-lhe altamente reprováveis, devendo, pois, ser imediatamente proibidos.

Penteu pensou que este indivíduo que se dizia um deus, e que se fazia acompanhar por um bando de bacantes fosse um impostor e podia trazer problemas para a cidade. Mesmo quando o vidente Tirésias lhe disse que Dioniso estava a dizer a verdade, Penteu continuou a recusar aceitá-lo como um deus. Quando Penteu se voltou para lhe responder, viu que ele estava mascarado como as mulheres selvagens: uma coroa de hera sobre o cabelo branco, os velhos ombros cobertos por uma pele de anho e, na mão trémula uma estranha vara encimada por uma pinha. Penteu riu-se da figura dele, e ordenou-lhe com desprezo que saísse imediatamente da sua presença. Foi com essa atitude que provocou a maldição que os deuses lhe lançaram – não ouvia nem uma palavra que os imortais lhe diziam.

Dioniso foi conduzido perante Penteu por uma companhia dos seus homens, que contavam que ele não tentava nem fugir nem resistir; muito pelo contrário, facilitava ao máximo a sua captura, e até acedera tão prontamente em vir à presença do rei que eles se tinham sentido envergonhados, chegando mesmo a dizer-lhe que tudo o que faziam era um cumprimento de ordens, e não de livre vontade. Declaravam também que todas as donzelas que tinham levado para a prisão se tinham evadido, fugindo rumo às montanhas. Os grilhões soltavam-se e as portas abriam-se por si. Mas Penteu, por essa altura, estava cego para tudo que não fosse a sua própria ira e desdém e mandou capturá-lo novamente. A prisão, porém, não enclausurava Dioniso. O deus, então liberto, dirigiu-se de novo a Penteu, tentando convencê-lo a autorizar o estabelecimento do culto de um novo e grande deus. Penteu limitou-se apenas a cumulá-lo de insultos e de ameaças, e Dioniso deixou-o, finalmente, com a sua maldição – a mais horrível que poderia ter escolhido: “Estou pronto para ir. Porque o que não há-de cumprir-se, não hei-de sofrê-lo. Fica porém, a saber que a pena destes ultrajes, Dioniso ta fará expiar, esse deus que tu afirmas não existir. Porque, ao fazeres mal a mim, é a ele que queres pôr a ferros” (p. 62).

Penteu foi em perseguição dos sequazes do deus pelos montes, onde as donzelas que tinham fugido da prisão se tinham refugiado. Haviam-se juntado a elas muitas mulheres de Tebas; entre essas encontravam-se a mãe e a as irmãs de Penteu – e foi neste pormenor que Dioniso revelou a sua faceta mais terrível: enlouqueceu-as a todas. As mulheres pensavam que Penteu era uma animal selvagem, um leão da montanha, e correram a abatê-lo, indo a própria mãe à frente. Quando foi apanhado, Penteu teve a certeza, por fim, de que tinha lutado contra um deus e, portanto, teria de pagar esse atrevimento com a própria vida. Despedaçaram-no, membro por membro, e depois, só depois, é que o deus as deixou recuperar as suas faculdades mentais. A mãe, ao ver o espectáculo com que se deparava, consciencializa finamente o sucedido, reconhecendo a grandeza divina de Dioniso: “Dioniso nos deitou a perder, agora o compreendo” (p. 102).

Nessa altura, o poder de Dioniso foi reconhecido em todo o mundo e o deus pode ascender ao céu, pois tinha acabado o seu papel na Terra, o de impor a observância do seu culto.

Antes disso, no entanto, quis descer aos Infernos para procurar a sombra de sua mãe Sémele e lhe devolver a vida. No Hades, Dioniso pediu ao deus que lhe libertasse a mãe. Hades acedeu com a condição de que Dioniso desse em troca qualquer coisa que

gostasse muito. Entre as suas plantas preferidas, o deus cedeu o mirto e essa é, diz-se a origem do costume que tinham os iniciados nos mistérios dionisíacos de coroar a cabeça com mirto.

Ainda antes de subir ao céu, Dioniso raptou Ariadne, em Naxos, por quem estava apaixonado e levou-a consigo, para assim viver a sua paixão.

O culto dionisíaco era festejado com procissões tumultuosas, nas quais Deméter e Dioniso eram evocados por máscaras. Estes cortejos deram origem às representações mais regulares do teatro: a comédia, a tragédia e o drama satírico.

O mito de Dioniso remete-nos para a dimensão do trágico, ao mesmo tempo que nos transmite um conjunto de metáforas que nos dão conta da realidade vivida por quem segue os seus trilhos. Com o objectivo de o analisarmos, propomos um olhar para a importância que as celebrações dionisíacas ocupam na Cultura Grega, e a retirada de elações sobre o significado do trágico para a existência humana.

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 54-57)