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Síntese Integrativa

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 67-71)

II ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.1 Encenações dionisíacas no feminino

2.1.6 Síntese Integrativa

Ao perscrutarmos a cultura vigente na Antiga Grécia deparamo-nos com dois planos. Por um lado, a sociedade encontra-se organizada em diferentes estratos sociais, de uma forma racional e inquestionável. Por outro lado, as criações artísticas assumem uma importância fulcral, integrando a possibilidade de expressão do mundo do sonho e do irracional, levado muitas vezes ao extremo. É entre estes dois mundos que se situa a Religião Grega, contendo em si uma dimensão ética, na medida em que apela à reflexão sobre os diferentes valores, e uma dimensão estética colorida por uma panóplia de cores e de imagens que em certa medida remetem para o onírico.

Os mitos permitem entrar no espaço do indizível e do inexplicável, o facto de termos Deuses que agem como os homens, sob o efeito das mesmas emoções e pensamentos, estes permitem que os indivíduos se revejam neles, em muitos desses comportamentos. Estas criações resultantes da relação que o Homem estabelece com o mundo, tornam-se então um espelho onde os indivíduos se revêm, permitindo uma reflexão sobre si próprios e os outros.

A verdade do mito afirma-se por si mesma, não carecendo de confirmações de ordem empírica, nem de carácter científico. Ela é intuída e é um reflexo da realidade. Neste contexto, o dionisíaco revela-nos a dinâmica que emana de diferentes contradições: razão e emoção, lei e caos, masculino e feminino, vida e morte e

integração e dispersão. Perante as representações teatrais os indivíduos têm a oportunidade para se questionarem sobre a forma como estas contradições são geridas por si próprias. As celebrações dionisíacas permitem ainda que os indivíduos se questionem e extravasem as suas emoções, podendo colocar em causa a ordem social vigente.

Os contactos que estabelecemos diariamente com mulheres alcoólicas, internadas na Unidade de Alcoologia da Casa de Saúde do Telhal, levam-nos a um questionamento sobre muitas das suas vivências e a uma necessidade de procurarmos no universo das bacantes uma possibilidade de aprofundarmos a compreensão sobre a realidade psicológica vivida por estas mulheres que há muito se entregaram nos braços de Dioniso.

O desejo de libertação face a um conjunto de circunstâncias vividas como fonte de sofrimento levam estas mulheres ao dionisíaco, manifesto na quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas, construindo dessa forma um mito pessoal sobre a realidade que as rodeia. Como veremos, a decadência reafirma-se na medida em que o mito individual se torna uma verdade absoluta e se faz acompanhar de um empobrecimento da consciência de si.

Da comparação do êxtase dionisíaco com o êxtase Teresiano assinalam-se diferenças fulcrais que vão condicionar a possibilidade de evolução do pensamento. Com efeito, enquanto no êxtase dionisíaco, se afirma o gozo e o deleite resultante da euforia e da embriaguez, no êxtase Teresiano pelo contrário, a essência fundamenta as acções e estas transcendem os sujeitos.

O risco do dionisíaco é o de o individuo se encerrar em si mesmo, pois ele é o próprio deus, criando-se um círculo que trai o desejo de libertação. Encontramos este círculo nas várias dependências, mas também na expressão do desejo incomensurável de o individuo se afirmar como “Super-Homem”, tal como Zaratustra, ao anunciar a morte de Deus. É assim que na clínica nos deparamos com pessoas que procuram a beleza externa em múltiplas cirurgias plásticas sem nunca a encontrar. Só a aceitação de que se não é Deus, pode levar à procura de Deus. E é este o movimento que encontramos no êxtase expresso por Teresa D’ Ávila, onde ao contrário de uma lógica circular, transparece uma lógica linear de A → Deidade.

No seio de uma lógica circular, os comportamentos não necessitam de fundamento, pois mecanizam-se. O mimético surge como uma alternativa à ausência da reflexividade e da tomada de consciência sobre si próprio, anulando-se dessa forma a

criatividade e a possibilidade de criação de diferentes soluções perante as vicissitudes da vida.

Se nos questionarmos sobre quais os valores dominantes nas sociedades modernas, facilmente somos remetidos para a preponderância do ter sobre o ser, do efémero sobre o futuro, e da mecanização de muitos comportamentos numa ausência total de reflexão. É neste contexto social que o dionisíaco encontra espaço para se afirmar, na medida em que o Homem se encontra entregue a si próprio, o limite é a ultrapassagem de si próprio, dos seus limites. Neste sentido, podemos dizer que as dependências têm um carácter de “normalidade”, na medida em que são uma das expressões dos valores que matizam a cultura da modernidade.

O alcoolismo na mulher tem sido estudado por diferentes abordagens psicológicas, que sob a influência do modelo médico, incidem sobre a patologia psicológica que desencadeou tais comportamentos e que por si só justificam a sua perpetuação ao longo do tempo.

É sob a influência desta lógica clínica, que diferentes autores de orientação dinâmica identificaram diferentes perturbações da personalidade, decorrentes de problemáticas distintas que estariam associadas à eclosão do alcoolismo. Relativamente às investigações onde se recorre à aplicação de testes psicológicos, o objectivo focaliza- se muitas vezes, no estabelecimento de diagnósticos psicológicos.

Se por um lado, o estabelecimento de diagnósticos psicológicos pode contribuir para o delinear de terapêuticas mais eficazes, por outro lado, não tem em conta a especificidade subjectiva dos sujeitos psicológicos. Com efeito, duas pessoas a quem lhes seja feito o diagnóstico de uma psicose esquizofrénica, não significa obrigatoriamente que vivam a mesma realidade. A dimensão clínica ganha uma significação, na medida em que se contemplem as vivências de cada pessoa, nas quais se inscreve uma tentativa de adaptação face a diferentes quadros existenciais muitas vezes fonte de sofrimento psicológico, na medida em que os sujeitos não encontram outras alternativas de acção.

Um outro aspecto em que nos afastamos das metodologias seguidas nos estudos psicológicos que mencionamos anteriormente, sobre a personalidade da mulher alcoólica, diz respeito ao facto de se centrarem nos sintomas, no visível, sem que contemplem igualmente as potencialidades de cada individuo, passíveis de ser actualizadas e que poderão contribuir para o ultrapassar da crise em que se encontram.

No contexto da Psiquiatria estamos perante uma lógica disjuntiva, onde a constelação de sintomas leva ao estabelecimento de diagnósticos, que surgem nas duas classificações das doenças mentais a que nos reportamos anteriormente (DSM IV e ICD 10). Ao afastarmo-nos desta lógica em detrimento de uma lógica integrativa dos opostos, partimos do princípio que no ser humano como em qualquer sistema vivo, coexiste a ordem e a entropia e é da sua interacção que os sistemas evoluem.

Paradoxalmente podemos afirmar que este trabalho não é sobre o alcoolismo, mas sim sobre um processo de decadência do Ser, onde o dionisíaco e o apolíneo, levados ao extremo, surgem aos olhos dos sujeitos como a única estratégia de sobrevivência face a um conjunto de circunstâncias que julgam inultrapassáveis. A possibilidade de retirada da realidade associada ao gozo e à fruição assume um carácter extático que ilusoriamente leva os indivíduos a crer que é a única resposta possível às suas dificuldades quotidianas e que se inscreve no “império do efémero”, enquanto valor dominante da nossa cultura. O rompimento da lógica circular que sustenta a dependência alcoólica implica a mobilização das potencialidades dos sujeitos, que per si permitirão a criação de novas verdades psicológicas e a entrada numa lógica linear que integre a utopia e o sonho.

A forma como cada individuo (re)cria a humanidade dentro de si próprio e se relaciona com os outros integra-se numa panóplia de escolhas que arquitectura a sua existência e esta realidade à qual acedemos na clínica, ultrapassa em muito a psicopatologia. É neste sentido que dizemos que o indivíduo é mais que a sua patologia. A possibilidade de transformação no sentido do humano tem por base a evolução do pensamento, pelo que julgamos necessário, a avaliação das possibilidades de crescimento mental dos sujeitos, recorrendo aos modelos psicanalíticos, na medida em que é contemplada essa possibilidade e onde a simbolização assume uma importância fulcral tanto ao nível da forma como se estrutura o pensamento, bem como no que representa em termos de novas possibilidades de evolução do ser humano.

Seguidamente vamos incidir sobre os elementos essenciais à construção da existência, recorrendo a conceitos filosóficos, inscritos no domínio da filosofia existencial, e a forma como diferentes posicionamentos teóricos no âmbito da Psicanálise, os integram, constituindo – se como um conjunto de saberes que nos permitem aprofundar os conhecimentos no domínio ontológico, ao mesmo tempo que nos permitem fazer uma leitura de diferentes formas da decadência humana.

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 67-71)