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CAPÍTULO 3 – A REORGANIZAÇÃO ECONÔMICA E A REVOLUÇÃO

4.1. A virada histórica da velha para a nova linha ideológica

A morte de Mao e o fim da Revolução Cultural em 1976 marcam uma nova transição política, que levou ao poder em fins de 1978, Deng Xiaoping, o herdeiro político de Zhou Enlai à administração do PCC com um grupo mais pragmático de gestores. A nova liderança tinha o propósito de romper os elos do culto à personalidade e à idolatria do período anterior e de empreender uma modernização pragmática, cristalizada no lema das “Quatro

Modernizações”114 (da agricultura, da indústria, da ciência e tecnologia e da defesa), uma série de reformas iniciando um intenso processo de crescimento econômico.

O novo processo de modernização da China apontava para a adoção de reformas econômicas e para uma relativa abertura ao exterior, devido à necessidade de incorporação de tecnologias e de capitais. Foram rejeitadas as ideias de igualitarismo utópico de Mao, elementos de xenofobia, autossuficiência e o controle absoluto da produção pelo Partido. Paulatinamente Deng passava a incorporar, de forma experimental, algumas características de economias de mercado, chamando-as de “socialismo com características chinesas” 115 (ZEMIN, 2002; SUKUP 2002; CHANG-SHENG, 2005; LYRIO, 2010; OLIVEIRA, 2014).

Como visto no capítulo anterior, Deng foi afastado de todos os cargos políticos no dia 7 de abril de 1976 e em contrapartida Hua Guofeng foi nomeado primeiro-ministro e primeiro vice-presidente do Partido (MARTI, 2007). Pela lógica, com a morte de Mao Zedong, Hua assumiria o cargo, seria o sucessor de Mao e o responsável por liderar o futuro da China. A pergunta é: Como Deng Xiaoping, destituído de todos os cargos tomou a frente do Partido116 e em dois anos lançou o Projeto de Reforma das Quatro Modernizações?

A ascensão de Hua não foi imediatamente confirmada por proclamações oficiais. E a sua primeira ação, contando com o apoio das forças armadas e da divisão especial da segurança dos membros do Comitê Central, foi mandar prender os “responsáveis” pela Revolução Cultural. E assim, na noite de 6 para 7 de outubro de 1976, foram presos os membros do “bando dos quatro”: a viúva de Mao, Jiang Qing, e os outros três expoentes principais do grupo radical: Wang Hongwen (membro do Partido, o único do bando que não era oficial sênior), Yao Wenyuan (um crítico literário que denunciou os “inimigos culturais”) e Zhang Chunqiao (prefeito de Xangai) (MEZZETTI, 2000; OLIVEIRA, 2014).

Livre dos “inimigos”, no dia 24 de outubro de 1976, na Praça Tiananmen, Hua apareceu na tribuna mais alta, na qual apenas Mao se apresentava. Precedido por um discurso do prefeito de Pequim, Wu De, que afirmava entre outras coisas que Hua “fora escolhido

114 Esse mesmo projeto foi anulado em 1966 devido ao início da Revolução Cultural, finalmente lançado pelo

próprio Zhou Enlai em 1976.

115 No próximo capítulo que aborda a estratégia política e econômica de Deng, há um subitem específico que

discute a tática de Deng ao criar e incorporar este novo sistema político que perdura até os dias atuais.

116 Na hierarquia, Deng figurava como número três, depois do presidente Hua Guofeng, agora o “primeiro entre

os iguais”, e de Ye Jianying, primeiro vice-presidente. Na realidade, já era ele o autêntico número um, ainda que seu poder não fosse incontestável. Não desejava imitar Mao, tampouco desejava ser número dois (MEZZETTI, 2000).

pessoalmente pelo presidente Mao como seu sucessor”. E para dar-lhe legitimidade, revelava a existência de uma nota escrita pelo próprio Mao, em 30 de abril de 1976 e dirigida ao mesmo Hua: “Contigo no comando, fico tranquilo” (MEZZETTI, 2000, p. 86).

Tecnicamente, o afastamento da viúva e dos outros três (Bando dos Quatro ou Grupo para a Revolução Cultural) foi um golpe de Estado sobre a identificação vigente entre o Partido e o Estado. Muito provavelmente, um golpe preventivo, porque os radicais preparavam- se para agir. Porém nunca um golpe de Estado foi acolhido com maior jubilo pela população. As milícias operárias, que possuíam uma força de mais de um milhão de homens, e os comitês revolucionários, organizados pelos radicais nos anos anteriores, desta vez não se moveram (GIFFONI, 2007; OLIVEIRA, 1999).

Antes mesmo que pudesse tomar corpo, as tentativas de resistência e de apoio aos Quatro foram reprimidas em algumas cidades de província, Deng, entretanto, não estava neutro. Imediatamente após a morte de Mao, ele solicitou aos militares que apoiassem Hua dando suporte para afastar os radicais. Deng tinha interesse nesta articulação, o “Bando dos Quatro” também eram seus adversários (MEZZETTI, 2000; MARTI, 2007).

Importante citar que, 16 anos depois, o afastamento do “Bando dos Quatro” foi comemorado como: “(...) vitória que salvou o Partido e o país do perigo”. A prisão foi declarada como marco de separação da velha situação perigosa que reinava em volta do Partido, para uma nova fase. Então no dia 12 de outubro de 1992, no XIV Congresso Nacional do Partido Comunista, o prefeito de Xangai e futuro presidente da China, Jiang Zemin (2002) declarou:

[sic] Todos nós podemos recordar que, se a vitória sobre o “Bando dos Quatro” salvou o Partido e o país de um perigo em que se debatiam, era sumamente grave a confusão que reinava então, como legado da “Revolução Cultural”, nos terrenos político, ideológico, organizacional e econômico. Quão difícil foi safar-se desta situação embaraçosa e criar outra nova! (ZEMIN, 2002, p. 30).

Hua Guofeng obteve a formalização de sua ascensão, com a aprovação pelo Comitê Central da decisão do Politburo em 9 de outubro de 1976, que o designava para presidente do Partido e da comissão militar. Precisava, porém, “pagar o pedágio”, reabilitando Deng Xiaoping. Então em 21 de julho de 1977, na conclusão do plenário foi anunciada a volta de Deng a todos os seus cargos: vice-presidente do Partido, vice-primeiro-ministro, vice- presidente da comissão militar e chefe do estado-maior (ZEMIN, 2002).

Hua Guofeng, de perfil conservador, pôs fim à Revolução Cultural e manteve-se na liderança da China e do Partido Comunista, mas não representava mudança de política. Não reivindicava nada de novo, utilizava os mesmos slogans, os mesmos princípios, a mesma linha de luta de classe e revolução permanente.

No dia 7 de fevereiro de 1977, apareceu simultaneamente no Renmin Ribao (jornal chinês, tradução O Diário do Povo), no diário do exército e no Hong Qi (órgão ideológico do partido) um editorial que era ao mesmo tempo proclamação de fé, advertência, desafio e ameaça: “Defender resolutamente quaisquer decisões que o presidente Mao haja tomado, seguir sem desvios quaisquer instruções que ele haja deixado” (MEZZETTI, 2000, p. 92). Era um alerta a quem desejasse mudanças de rumo. O sentido do editorial se transformou na arena da luta da qual o país travaria a mais importante batalha pela “renovação” psicológica da China contemporânea, antes de sua renovação política, com profundas repercussões na consciência coletiva.

Com a intenção de promover a discussão mantida por Deng sobre a validade do dogma político permanente, Hu Yaobang117, na metade de 1977, lançou a revista Lilung

Dongtai (Tendências Teóricas). Por ser reservada à escola central, estava isenta de censura

prévia. Em 10 de maio de 1978, no número 60 de Tendências Teóricas, saiu o artigo intitulado “A prática é o único critério para a busca da verdade”. No plano filosófico, o texto exaltava o valor da dúvida diante de qualquer princípio estabelecido:

(...) nenhuma verdade pode ser considerada como tal no momento em que é enunciada, porque ainda não fora submetida à verificação pela prática. A verdade não está nos dogmas estabelecidos, porém na realidade, nos fatos, na prática (MEZZETTI, 2000, p. 99).

Não se tratava de um ensaio filosófico, e nem de discussão epistemológica sobre os métodos de verificação da verdade, tampouco repentinamente haviam se transformados em pensadores do Império. A reflexão sobre a busca da verdade constituía o mais profundo ataque à linha dos “dois quaisquer” (“Defender resolutamente quaisquer decisões que o presidente Mao haja tomado - seguir sem desvios quaisquer instruções que ele haja deixado”) (ZEMIN, 2002, p.30).

117 Hu Yaobang (1915-1989), líder do Partido Comunista Chinês cuja morte desencadeou a Revolta da Praça de

Foi o ponto de partida para a transformação do sistema, do país e da sociedade. A filosofia transformava-se em arma. Se a verdade existe somente nos fatos, na realidade não há dogmas que prevaleçam. A validade de quaisquer decisões políticas que Mao houvesse tomado, de quaisquer posições deixadas por ele, devia ser verificada pela prova dos fatos. A verdade não estava nos textos sagrados, porém na prática da ação quotidiana, do vir a ser, ou do já ocorrido, da realidade. Era um guia para a ação e ao mesmo tempo um convite a repensar o passado.

A discussão filosófica tornou-se política, tornando-se avessa a qualquer dogmatismo, autoridade ou ditadura ideológica. Foi o ponto de partida para o início da transformação econômica e política do país.

Com efeito, no dia 2 julho 1978, um dia depois do aniversário de fundação do Partido, foi publicado no jornal Renmin Ribao um discurso de Mao de 1962. Nele Mao reconhecia haver cometido o erro de não entender de economia, mas somente um pouco de agricultura, devido a suas origens camponesas. “Há muitos aspectos do campo econômico nos quais não possuo experiência. Por exemplo, conheço pouco de indústria, de comércio...” (MEZZETTI, 2000, p.103). O discurso era de 1962, período do desastre do Grande Salto Adiante.

Dois meses depois, em setembro de 1978, foi publicado no Renmin Ribao pelo mesmo grupo editorial e sobre o mesmo tema, sob o título “O mundo subjetivo deve ser submetido ao exame da prática”. Enquanto mudavam os dirigentes nas regiões e províncias, os jornais republicaram com grande relevo os artigos sobre os “critérios de prática”. “Buscar a verdade dos fatos” tornou-se uma verdadeira campanha de “libertação do pensamento”, foi um repúdio a dogmas que percorreu o país inteiro. Hua Guofeng, o Número Um cada vez mais fraco, ignorou os artigos liberatórios, ainda que os criticasse de maneira obscura: o grupo desfazia-se, não sabia organizar sua própria defesa, não tinha argumentos (MEZZETTI, 2000; ZEMIN, 2002).

Nessa atmosfera, que não era apenas a do interior do partido, e sim a que se difundia em todo o país e com o baixo carisma de Hua e a forma circunstancial em que havia chegado ao poder, tornou impossível manter a sua posição contra o assédio dos partidários de Deng Xiaoping, a maioria no Partido e muitos líderes regionais.

Os sucessos resultantes das reformas econômicas nas províncias dirigidas por apoiadores de Deng Xiaoping foram a gota d’água necessária para Hua ser forçado a aceitar a

reabilitação de Deng Xiaoping ao topo da liderança do Partido e do Exército, durante a celebração da 3ª sessão plenária do XI Comitê Central do Partido Comunista em 22 de dezembro de 1978. Sob a nova ideologia de “busca da verdade nos fatos” e “emancipação da mente”118 protagonizou a virada histórica da velha para a nova linha ideológica e alterou o Quinto Plano Quinquenal.