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A vox pauperis e o quadro de conflito socioeconômico

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3. SABEDORIA, RIQUEZA E OPRESSÃO: O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DO

3.3. A vox pauperis e o quadro de conflito socioeconômico

À medida que a Assíria entrava em declínio com a morte de Assurbanipal (c.a. 627 A.E.C), o rei Josias de Judá sentia-se livre para implantar seu programa de reforma religiosa em Judá, opondo-se às práticas religiosas aos deuses estrangeiros, pronafando os altares em locais ao norte de Judá e tentando uma expansão territorial (2Rs 23.4ss.).946 Certamente, ela foi apoiada tanto pelo “livro da lei” (ה ָרוֹתַהַ רֶפֵס) (Dt 12—25?) encontrado no templo de Jerusalém (2Rs 22.8-20) quanto pelo profeta Jeremias, que conclamou “Israel” (Jr 3.6) e “Judá” (3.8) a adorarem a YHWH em Jerusalém: “Convertei-vos, ó filhos rebeldes, diz o SENHOR; porque eu sou o vosso esposo e vos tomarei, um de cada cidade e dois de cada família, e vos levarei a Sião” (Jr 3.14).947

A centralização do culto em Jerusalém narrada em 1Reis 23.8-20,27,948 sob o governo de Josias, tem um paralelo estreito com a centralização do culto ordenada em Deuteronômio 12.949 A celebração da Páscoa no lugar central de adoração, “escolhido por Deus”, prescrito em Deuteronômio 16.1-8 corresponde à celebração promovida por Josias no templo de Jerusalém (2Rs 23.21-23).

Infelizmente a reforma oficial de culto parece não ter impactado de forma duradoura950 e profunda as práticas de justiça na sociedade, pois o profeta Jeremias denuncia uma arrogante confiança do povo no templo (Jr 7.4,10-11) como justificativa para a prática da opressão e de toda sorte de corrupção (7.5-6,9).951

Com a morte de Josias por Neco (2Rs 23.29-30), a deposição e aprisionamento de Jeoacaz (2Rs 23.31-33) e a entronização de seu irmão Eliaquim, ou Jehoaquim, como rei

946KAEFER, 2015, p. 101-3; BARKER, 1999, p. 247-8; ORLINSKY, 1960, p. 94. 947BRIGHT, 2003, p. 402.

948GRANT, 1984, p. 140-1.

949Gerhard von Rad observa que a teologia da singularidade do caráter de YHWH em Deuteronômio servia de

base para o estabelecimento de um lugar central para a sua adoração (Dt 12.2-7). Enquanto Baal se revelava em qualquer lugar onde se havia experimentado um mistério da natureza, o culto a YHWH tinha sua característica única e centralizadora, distinta da forma como se dava a adoração do deus da fertilidade cananeu (Gerhard VON RAD, 2006, p. 222-223; Ver, também, GOLDINGAY, 1987, p. 150).

950ORLINSKY, 1960, p. 95

951BRIGHT, 2003, p. 402. É provável que Jeremias 7 reflita a sociedade da época imediatamente posterior a

títere pelos egípcios em 609 A.E.C. (23.34-35), Judá deixou de ser um reino independente e voltou à vassalagem e ao pagamento de tributos (23.33-35), desta vez sob o poder dos egípcios,952 cujo território é definido pelo historiador deuteronomista como “entre o ribeiro do Egito e o rio Eufrates” (2Rs 24.7 — antes da conquista babilônica).953

Depois da batalha de Carquemis, em que o exército babilônico infligiu uma completa derrota aos egípcios,954 impactando profundamente os moradores da Síria e de Canaã,955 e da ascensão de Nabucodonosor ao trono (ambos os eventos ocorreram em 605 a.C.),956 o novo monarca invadiu a Síria-Palestina, subjugou a cidade de Asquelom e conquistou o apoio de Jehoaquim (Eliaquim) de Judá, submetendo-o à vassalagem (2Rs 24.1).957 Esta seria a primeira de oito campanhas do imperador babilônico na região958 e o início da consolidação de seu domínio sobre Jerusalém.

Infelizmente, Jehoaquim atuava com “mão de ferro” sobre o povo, cobrando tributos do povo (2Rs 23.35) e construindo um belo palácio à custa da opressão das pessoas comuns e mediante a prática da corrupção (Jr 22.13-17). O historiador deuteronomista descreve Jehoaquim como um tirano monstruoso, cuja culpa diante de YHWH era irremediável: “por causa do sangue inocente que ele derramou, com o qual encheu a cidade de Jerusalém; por isso, o SENHOR não o quis perdoar” (ARA).959

A prática da injustiça degenerou-se por toda a sociedade de tal modo que as classes socioeconômicas mais frágeis sofriam nas mãos de quem tinha melhor condição financeira (Jr 7.5-6).960 O período inicial do governo de Jehoaquim e a condição social de exploração dos pobres pelos ricos parecem corresponder à descrição de Habacuque 1.2-4, quando a Babilônia ainda não havia assumido o controle do Levante, mas estava prestes a fazê-lo:961

952KELLE, 2014, p. 379-80. 953PROVAN, 2016, p. 428 954

Para o relato babilônico sobre a batalha de Carquemis, veja WISEMAN, 1956, p. 67-69, B.M. 21946.1-11.

955Ver o testemunho do profeta Jeremias sobre os efeitos da vitória dos babilônios sobre o Egito em seu relato

poético em Jr 46.2-12. Essa batalha marcou a transferência de poder sobre o Levante do Egito para a Babilônia (FEINBERG, 1986, p. 365).

956

O ataque babilônio bem-sucedido contra Carquemis ocorreu entre maio e junho de 605, e a coroação de Nabucodonosor, em setembro do mesmo ano (ver LIPSCHITS, 2005, p. 37-8)

957KELLE, 2014, p. 380; BRIGHT, 2003, p. 392-3; PROVAN, 2016. p. 428-9. 958PROVAN, 2016, p. 429, nota 112.

959

BARKER, 1999, p. 250.

960Para a datação dessa profecia no período de Jehoaquim, ver os paralelos entre o sermão do cap. 7 e o cap. 26:

7.1,2 com 26.1,2; 7.12-15 com 26.6,9 (cf. FEINBERG, 1986, p. 426; ALLEN, 2008, p. 94-5, reconhece os paralelos entre as duas seções e entende serem duas versões do mesmo sermão).

961

Até quando, SENHOR, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! E não salvarás? Por que me mostras a iniquidade e me fazes ver a opressão? Pois a destruição e a violência estão diante de mim; há contendas, e o litígio se suscita. Por esta causa, a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta, porque o perverso cerca o justo, a justiça é torcida.962

Nesse contexto de grave conflito social e perpetuação de injustiças, o autor do Salmo 49 produz sua poesia como crítica àqueles que achavam ter poder perpétuo. Ao contrário da proposta de Albertz,963 o salmista não representa a vox divitis,964 mas sim, a vox pauperis.965 Ele expõe um mundo socioeconômico polarizado entre o “pobre” (ןוֹיְב ֶא) e o “rico” (רי ִשָע), identificando-se com a situação do primeiro.

A visão que apresenta sobre os ricos reforça essa natureza dualista de classes econômicas e exploração da época. Em momento algum o salmista indica uma perspectiva positiva sobre os ricos, a não ser a possibilidade de ouvirem seu discurso (Sl 49.2,3). Ao contrário do conceito de “ricos piedosos”,966

as pessoas abastadas de sua época são descritas como “os que confiam em suas posses” (49.7a) e vistas como inimigas do salmista, pois o “atacam por trás” (49.6b). O proceder desses ricos estava repleto de “maldade” (ןוָֹע)967

contra o próximo (49.6b), talvez roubando o pobre por meio da exploração de trabalho escravo ou buscando o favoritismo de governantes à custa do marginalizado (uso de ןוָֹע em Os 7.1-3; Ez 9.9). É possível também que estivessem deixando de “amparar” o “pobre” (ןוֹיְב ֶא) em suas necessidades (uso de ןוָֹע em Ez 16.49).

Ao usar os verbos “confiar” (חטב) e “gloriar-se” (ללה), que estão relacionados à adoração a YHWH (Sl 22.4,5[5,6]; 34.2[3]) ou aos ídolos (97.7) no livro de Salmos, para falar da relação dos ricos com as “suas posses” ou com a “abundância de seus bens” (Sl 49.7), o salmista indica um problema básico de adoração e idolatria na sociedade em que vive.968 Não há menção a adoração aos deuses das nações, mas existe a denúncia de que “Mamom” está sendo o foco de devoção do establishment da nação. Um materialismo desenfreado tomou conta dessa gente e isso não representa algo positivo para os desfavorecidos. Pois à medida

962Tradução da ARA.

963ALBERTZ, 1999, p. 667-76; SPANGENBERG, 1997, p. 338-9. 964“Voz do rico”

965“Voz do pobre”.

966Ver essa ideia em SIQUEIRA, Salmo 49 (no prelo).

967O vocábulo ןוָֹע é geralmente usado para ser referir tanto ao delito quanto à culpa e à punição que advêm do

delito praticado. Portanto, esses ricos que “atacam por trás” o salmista são culpáveis e dignos de punição (KNIERIM, R., ןוָֹע, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 863-4).

968GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle): “O verdadeiro risco em sua atitude [dos ricos] está implicado

nos verbos do salmo. Ele fala de sua confiança e exultação (louvor). Esses são verbos que merecem ter Yhwh como seu objeto (e.g., 22.4,5[5,6]; 34.2[3]), mas aqui seus objetos são os recursos e a riqueza.”

que os abastados da comunidade do salmista alcançam mais riquezas (רשע)969 e suas casas manifestam uma prosperidade ainda maior (49.17),970 os pobres são tomados de temor (ארי), por isso, a necessidade da exortação: “Não temas” (49.17a).

É possível ver aqui uma conexão com a situação de terrível opressão descrita em Jeremias 5.26,27, em que a mesma raiz verbal רשע (“alcançar riquezas”, “enriquecer”) e o mesmo susbtantivo תִיַב (“casa”) de Salmo 49.17 são usados em referência a pessoas “perversas” (םיִעָש ְר) que “se enriqueceram” (וּריִשֲעַיַו) e aumentaram os bens de “suas casas” ( ֶַהי ֵתָבם ) à custa de outros, fazendo dos homens vítimas de suas maldades como pássaros perseguidos por um caçador.

A ampliação egoísta de latifúndios está retratada pela aquisição desmedida de terras (תוֹמ ָד ֲא) (Sl 49.12). O versículo 12 descreve a atividade poderosa dos ricos como se fossem reis que “aclamam seus nomes sobre as terras”971 (2Sm 12.26ss.). “A expressão םשַ ארק (“aclamar o nome”) designa um ato jurídico por meio do qual ocorre uma transmissão de domínio”.972 O plural de intensidade dos dois termos paralelos וֹמי ֵתָב (“suas casas”) e ם ָתֹנְכ ְש ִמ

(“suas habitações”) (v. 12)973

enfatiza a rica condição dos “insensatos” e “brutos”, adquirindo cada vez mais bens, ferindo a ideia sagrada no Deuteronômio da “herança” como posse inalienável de cada família na terra de Israel (transmitida a cada geração – Dt 19.14) e como porção prometida e dada por YHWH nessa terra de Israel (cf. Gn 15.7-8, 18-21).

Em uma nação com alta densidade demográfica devido à política de expansão e centralização de Josias, o que sobraria para o “pobre” (ןוֹיְב ֶא), se o rico havia tomado as terras para cultivar e as casas em que poderia morar? Essa ampliação dos latinfúndios da elite econômica na Judá da época do Salmo 49 reflete uma condição semelhante àquela anterior de Isaías 5.8: “Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!” (ARA).

Certamente o autor do salmo não fazia parte da classe socioeconômica alta, pois, assim como os desfavorecidos de Salmo 49.17 poderiam sentir-se tentados a temer (ארי) a

969O sentido básico do verbo רשע no grau hifil é “alcançar riqueza”, “tornar-se rico”, “enriquecer”. (KIRST et al.,

2004, p. 189; GESENIUS, 2003, p. 660).

970Para o uso de דוֹבָכ com o sentido de riqueza ou prosperidade, ver DAHOOD, 1965, p. 302; BROWN;

DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 458; RAABE, 1990, p. 78; BRIGGS, 1906, p. 411-12.

971תוֹמ ָדֲאַיֵּלֲעַםָתוֹמְשִׁבַוּא ְרָק 972KRAUS, 1993, p. 737.

973GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 397-8, §124.e; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição

ampliação de poder econômico dos donos das terras, o salmista enfrenta esse dilema e pergunta: “Por que temerei [ארי] [...] a maldade dos que [...] confiam em suas riquezas”.974

Além disso, os que deixam “suas posses” ( ַָליֵחם ) para outros ao morrer não são os “sábios”, grupo com o qual o salmista se identifica pelas carcaterísticas linguísticas e literárias de seu texto,975 mas o “insensato” e o “bruto” (Sl 49.11).976 Conforme observado anteriormente, é significativa a repetição de םָליֵח (“suas posses”) em Salmo 49.11c, pois, essa construção foi usada para designar “os que confiam em suas posses [םָליֵח]” em 49.7. O uso do mesmo termo acompanhado do mesmo sufixo pronominal possessivo é, muito provavelmente, estratégia retórica do autor para designar “os que confiam em suas posses” como “insensato[s]” e “bruto[s]” — indivíduos sem uma vida moral correta (ליִסְכ) ou sem uma forma de agir sensata e lúcida (רַעַב).

A observação de Erhard Gestenberger em seu comentário parece corroborar a tese de autoria e ambiente do Salmo 49 que tem sido proposto aqui:

Os teólogos do Antigo Testamento estavam conscientes das distinções de classes e distinções de interesses dentro da própria Israel. O inimigo e o mal não deveriam ser simplesmente identificados fora do povo escolhido. Os salmistas muitas vezes elaboraram severos vereditos contra os opressores dentro de seu próprio grupo étnico (1Sm 2.3-8; Sl 10).

[...] À medida que a religião popular declinou sob a pressão das tendências centralizadoras, aqueles de posições mais baixas nas hierarquias profética e sacerdotal assumiram as responsabilidades de aconselhar pessoas e grupos em angústia. Essa função explicaria a profunda empatia com os necessitados percebida em muitos salmos e em sua teologia de compaixão.977

Portanto, à luz da análise do conteúdo e das observações anteriores sobre os salmos dos filhos de Corá e sobre a relação da escola de escribas com o templo, pode-se concluir que

974WEISER, 1994, p. 286: “A maneira como o poeta fala da questão que o preocupa deixa claro que não se trata

de um problema que se resolva no âmbito do pensamento teório. O problema nasceu-lhe da sua própria vida e a resposta que dá está totalmente voltada para a vida prática [...] A pergunta ‘por que vou temer os dias maus, quando a maldade me persegue e envolve?’ [...] deixa transparecer os sentimentos que o poeta venceu em si mesmo contra as adversidades que seus ricos inimigos lhe preparavam: o medo e a inveja. Medo do oprimido do poder humano e a inveja [...] que a riqueza dos outros provoca dolorosamente em face da própria penúria...”. Ver também BORTOLINI, 2000, p. 206-8; BORTOLINI, 2002, p. 245-6.

975Ver a análise sobre esse tema na subseção 2.3.1 desta dissertação.

976Keil e Delitzsch entendem que “certamente não é a intenção do poeta” ter os sábios como “sujeito” do último

verseto, que “deixam [...] suas posses” (KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351). Paul Raabe também destaca que o “sujeito do verbo e o antecedente do sufixo pronominal são o ‘insensato e o bruto’ do versículo 11b, pois o foco está na riqueza” (RAABE, 1990, p. 73.).

977GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.2 (edição kindle). Craigie se aproxima de algumas ideias expressas nessa

observação de Gerstenberger, ao sugerir a possibilidade de que o salmo tenha surgido em contexto semelhante ao do aconselhamento de nossos dias. Uma pessoa com o dilema moral/intelectual se aproximou do representante da tradição de sabedoria em busca de uma solução. O salmo seria uma resposta (recitada ou cantada) em que apresenta o contexto adequado para lidar com o dilema das riquezas e da morte (CRAIGIE, 1983, p. 358).

o autor do Salmo 49 é um levita pobre978 e de baixa posição na hierarquia dos funcionários do templo, que se opõe ao abuso socioeconômico praticado por aqueles que tinham melhores condições financeiras, fossem sacerdotes de alta posição, fossem reis e príncipes, fossem os ricos proprietários de terras.

978BORTOLINI, 2002, p. 245-6; BORTOLINI, 2000, p. 207: “O salmista é pobre e não tem medo de mexer com

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desta pesquisa, é possível vislumbrar de forma mais nítida a situação de vida do autor do Salmo 49, quais eram seus dilemas, bem como as preocupações daqueles a quem ele representava. Sua mensagem não foi comunicada em um vácuo histórico, mas em uma condição repleta de cores e nuances que justificam sua mensagem profética e sapiencial.

No primeiro capítulo, buscou-se responder à pergunta sobre a condição do texto do Salmo 49, que envolveu a análise de testemunhas textuais divergentes e convergentes com o TM. Observou-se que o salmo está repleto de problemas textuais (mais de quarenta), porém, em geral, o TM preserva um texto bem próximo daquele produzido pelo salmista, muitas vezes apoiado pela Vulgata Latina, às vezes dicordando da LXX e, em várias instâncias, distinto da Héxapla de Orígenes. Algumas variantes textuais originaram-se de erros involuntários dos copistas, mas grande parte delas ocorreu por tentativas de tornar o texto mais claro em trechos do hebraico aparentemente truncados ou confusos.

Em seguida, analisou-se a Gattung do salmo e observaram-se diversos aspectos literários (o chamado inicial do mestre; a poesia dirigida a homens, não a YHWH) e de conteúdo (termos sapienciais e a questão da teodicéia) que indicam claramente ser ele um texto sapiencial, produzido por um antigo sábio de Israel.

Ainda no capítulo 1, estudou-se a estrutura e coesão do salmo. Constatou-se uma estrutura quiasmática bastante clara e bem planejada, em que há uma sequência de pergunta e resposta associadas com o aumento da riqueza dos ímpios e a realidade da morte para todos. Além disso, destacou-se a presença de palavras-chaves ligadas aos campos semânticos da economia, sabedoria e da morte. Diversas palavras se repetem no Salmo 49 e são usadas às vezes de forma irônica para demonstrar exatamente o oposto daquilo que o rico ímpio esperava: não a tão sonhada vida eterna, mas a morte firme e inflexível.

No segundo capítulo, a análise do conteúdo concentrou-se nos elementos semânticos e sintáticos do Salmo 49, sem deixar de observar aspectos literários, como os diversos tipos de parallelismus membrorum. O exame do conteúdo revelou alguns aspectos predominantes sobre a identidade do salmista e sua mensagem: ele era um sábio do antigo Israel ligado ao templo por sua relação com os coraítas; estava de certa forma associado à

tradição profética na crítica severa às injustiças sociais; e foi assertivo em declarar que o homem é incapaz de livrar-se da morte.

O conteúdo do Salmo 49 afirma que somente YHWH pode redimir um ser humano do poder do Sheol. Os ímpios são entregues à própria sorte e, no fim de suas vidas, são pastoreados pela Morte (Sl 49.13-15,17-20). Aqui, há certa conexão com o Salmo 1. Assim como o insensato e o bruto “são destruídos” (וּדֵבאֹי) em Salmo 49.11, em Salmo 1.6 afirma-se que o “caminho dos perversos será destruído (דֵבאֹת)”. Há nesses dois textos ausência da “ação de Deus” em relação aos ímpios, que são entregues à autodissolução.979

O rico malvado e criticado no Salmo 49, em sua arrogância e estupidez (“não tem entendimento” [Sl 49.21]), se assemelha “aos animais que perecem”.

Em contrapartida, o salmista tem a certeza do cuidado de YHWH em seu favor, redimindo-o da morte prematura e violenta que os seus opositores lhe intentam causar: “Mas Deus redimirá minha vida do poder do Sheol!” (Sl 49.16). Constatou-se que não há uma perspectiva clara sobre a post mortem no salmo, apenas a visão de que YHWH é fiel à sua aliança, preservando a vida daqueles que o temem. O cuidado de Deus não se manifesta no além-túmulo, mas na redenção das tribulações e humilhações que os ímpios intentam contra o justo, as quais são uma antecipação do Sheol (ver análise do conteúdo de Sl 49.16; cf. o uso de הדפ em Sl 25.22; Sl 34.23[22]; cf. o uso de חקל em 18.17,18[16,17] com a ideia de libertação da ameaça de morte temporária e iminente: “Do alto me estendeu ele a mão e me

tomou [יִנֵח ָקִי] [...] livrou-me de forte inimigo [...] pois eram mais fortes do que eu”).980

Por fim, o terceiro capítulo analisou a possibilidade de um contexto pré-exílico para o Salmo 49, distinto daquele pressuposto pelo “consenso” desde que Mowinckel escreveu sua tese sobre a “salmografia erudita”. Após um exame detalhado, concluiu-se que não é possível assumir com segurança um contexto pós-exílico para a produção do texto bíblico em análise, visto que as razões comumente apresentadas para ele, como os conflitos sociais e a relação da sabedoria com outros movimentos no antigo Israel, já existiam no período pré-exílico.

Em seguida, procurou-se demonstrar, por um exame do desenvolvimento de escolas escribais desde o período de Ezequias até o período final da monarquia em Israel, que o salmista em foco nesta pesquisa poderia ser muito bem um sábio do templo, que conjugou sua sabedoria com o culto. Por meio de uma análise de aspectos linguísticos e de paralelos com

979GRENZER, 2013, p. 22. 980

textos do profeta Jeremias, bem como pela semelhança com o contexto social de profundas distinções socioeconômicas do profeta, esta pesquisa postulou um contexto no período de Jehoaquim como o provável ambiente em que o Salmo 49 teria sido escrito.

Um levita pobre e sábio, preocupado com as questões do povo a quem ministrava, provavelmente escreveu esse salmo para alertar os ricos ímpios de que suas riquezas eram vazias, pois “um ser humano em esplendor” que “não entende” logo passa e se assemelha “aos animais que perecem”.

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