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Estrofe II: A realidade da morte e a confiança na redenção divina eliminam o temor

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2. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO SALMO 49

2.5. Estrofe II: A realidade da morte e a confiança na redenção divina eliminam o temor

14

Este é o caminho daqueles [cuja] tola confiança [é] para si Mas seus seguidores têm prazer no que eles dizem.

15

Como rebanho dirigem-se para o Sheol, Morte os pastoreará.

De manhã, os justos dominarão sobre eles. O Sheol engolirá suas formas,

Longe da mansão dele. 16

Mas Deus redimirá minha vida do poder do Sheol, Certamente me tomará. Selá.

17

Não temas se um homem alcançar riquezas, Se aumentar a glória de sua casa. 18

Certamente não tomará tudo [consigo] em sua morte, Não descerá atrás dele sua glória.

19

Embora em sua vida ele se congratulasse: “E es te ouva , pois as coisas vão be contigo”.

706KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 946. 707KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352; GOULDER, 1982, p. 189-90.

708

20

Ele irá até a geração de seus pais; Não verão a luz para sempre.

O versículo 14 está repleto de discussões textuais,709 que foram analisadas no capítulo 1 desta dissertação e cujo estudo demonstrou que o TM deve ser mantido sem alterações por emendas textuais ou leituras das versões. Esta nova estrofe (v. 14-20) apresenta em detalhes o destino “daqueles [cuja] tola confiança [é] para si” (v. 14; cf. v. 6). Como o versículo 13 é o refrão que conclui a seção precedente, deve-se ler םָכ ְר ַדַהֶז (“este é o caminho

daqueles”) (v. 14) como uma indicação do que o texto está prestes a descrever.710 O substantivo ךְ ֶר ֶד (“caminho”) aqui não tem seu sentido figurado mais comum, o de “conduta” ou “modo de vida” (1Rs 2.3; Jó 34.21,21; Sl 1.1; Pv 14.8),711

mas implica destino (cf. Sl 35.6: “Seja o caminho deles trevas”; 37.5),712

como o versículo 15 com sua descrição do fim dessas pessoas no Sheol deixará claro.713

O termo hebraico לֶסֶכ no Salmo 49.14 é identificado como o substantivo abstrato da raiz II em HALOT714 e Holladay,715 equivalente ao da raiz I de Alonso Schökel.716 Tanto o BDB quanto Gesenius não fazem essa distinção da raiz verbal e analisam o substantivo como de uma só raiz com vários sentidos.717 Na raiz I (HALOT e Holladay), o substantivo לֶסֶכ tem o sentido concreto de “lombo” ou “lado” e se refere aos “lombos” (םיִלָסְכ) dos animais cuja gordura era queimada nos holocaustos do povo de Israel (Lv 3.4,10,15; 4.9; 7.4). Também descreve o lombo humano cheio de gordura (לֶסָכ־יֵלֲעַה ָמיִפ) como figura para alguém próspero (Jó 15.27).718

Na raiz II (HALOT e Holladay), לֶסֶכ é um substantivo abstrato e pode ter mais de um sentido. O mais comum é “confiança”/“segurança”: a “confiança” que uma pessoa tem em um ser ou em algum objeto de valor ou a “segurança” que se garante a alguém. Pode ser uma

709GOULDER, 1982, p. 190. Ver os quatro problemas textuais (a, b, c, d) no texto e aparato crítico de

ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131.

710

KRAUS, 1993, p. 730-1; NET Bible, 2005, Psalm 49.13, translator note 26.

711WOLF, Herbert. ך ֶר ֶד. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 196-7; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p.

162.

712DAHOOD, 1965, p. 299; cf. a tradução de ZUCKER, 2005, p. 144 (também p. 148): “Such is the fate…”

[“Tal é o destino”].

713GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle); GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle). 714KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 489.

715HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 161. 716

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 322.

717BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 492; GESENIUS, 2003, p. 408.

718Robert Alden observa: “Na antiguidade, a prosperidade era evidente na obesidade, ao passo que a magreza

revelava penúria (cf. Pv 11.25; 13.4). Naturalmente, o ímpio rico era obeso, com faces gordas e cintura protuberante” (ALDEN, R. L. Job. NAC. Nashville: Broadman & Holman, 1993, p. 179)

referência à “confiança” (לֶסֶכ) posta no ouro (בָהָז), isto é, em suas riquezas e prosperidade (Jó 31.24).719 Aqueles que “se esquecem de Deus” (לֵּאַ יֵּחְכֹשׁ) terão sua “confiança” (וֹלְסִכ, i.e., objeto/ser em que confiam) frustrada (Jó 8.13,14). Em contraste, Provérbios 3.25,26, diz que o justo não precisa temer o ataque dos perversos porque Deus é a “segurança” (לֶסֶכ) dele. Assim como em Jó 8.13,14, Salmos 78.7 estabelece um contraste entre a confiança em Deus (םָלְסִכַםיִהלֹאֵב) e o esquecer-se de seus feitos (ל ֵא־יֵלְלַע ַמַוּחְכ ְשִי). O único caso em que לֶסֶכ da raiz II tem o claro sentido de “insensatez” ocorre em Eclesiastes 7.25 por sua associação com o termo “tolice”720

(תוּלְכִס).721

No entanto, parece haver um jogo de palavras por meio da assonância entre ליִסְכ e לֶסֶכ. No versículo 11b, há a informação de que “insensato [ליִסְכ] e bruto juntos são destruídos” e “deixam para outros suas posses”. Ao utilizar לֶסֶכ (“confiança”) no versículo 14, o texto enfatiza, mais uma vez que, a confiança (לֶסֶכ) em si (ou nas riquezas, v. 7) é a atitude do insensato (ליִסְכ), não do sábio. Nesse sentido, Paul Raabe define bem a ideia do termo לֶסֶכ (em associação a ליִסְכ) como tola confiança,722 por isso, a tradução aqui proposta: “[cuja] tola

confiança [é] para si”.

A expressão hebraica do TM םֶהי ֵרֲחאְַו (lit.: “e depois deles”), que deve ser mantida, pode ser traduzida tanto por “o fim definitivo deles...”723 quanto por “aqueles depois deles...”.724

Embora a primeira leitura seja possível sem alteração do TM e com base em um cognato ugarítico cujo sentido é “destino”, “destino final” (u t),725

o sentido mais natural é entender a expressão םֶהי ֵרֲחאַ como “aqueles depois deles”, ou seja, seus seguidores,726 que imitam o estilo de vida727 do indivíduos cuja tola confiança está em si mesmo e que “têm prazer” (וּצ ְרִי) no que sai da “boca” dos insensatos autoconfiantes (v. 14b).728

“Aqueles que

719“Os salmos e a literatura sapiencial estão cheios de censura àqueles que colocam sua confiança (kesel, mi t )

em sua riqueza, em vez de em Deus (Sl 49.7-8 [6-7]; 52.9 [7] etc.; cf. Jó 22.25)” (GRAY, John. The Book of Job. Sheffield: Sheffield Phoenix, 2010. p. 387)

720HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 256. 721 OGDEN, 2007. p. 129. 722RAABE, 1990, p. 74. 723DAHOOD, 1965, p. 296, 299-300. 724CRAIGIE, 1983, p. 356. 725

LETE; SANMARTÍN, 2003. p. 41. Kraus, porém, propõe uma reconstrução do texto (cf. KRAUS, 1993, p. 730-1).

726Ver tradução de GOULDER, 1982, p. 190; NET Bible, 2005, Psalm 49.13; 727BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 30; RAABE, 1990, p. 74.

728

concordam com suas palavras, muitas vezes se beneficiando de seu poder e prestígio, também morrerão e não mais existirão”.729

Como o ensinamento já foi apresentado de que os homens pomposos são como animais, o salmista talvez esteja dizendo que aqueles que seguem um tolo em seu caminho tornam-se tolos eles mesmos. Pode-se pensar em uma vaca ou cabra com um sino que atrai os outros animais do rebanho.730

O texto do Salmo 49.15 é bastante complexo tanto em sua reconstrução textual731 quanto na interpretação de sua estrutura sintática e de aspectos semânticos.732 Embora Raabe entenda a estrutura do v. 15 como formado por dois versos de um dístico cada,733 o texto hebraico parece fazer mais sentido se for dividido em dois versos, o primeiro com um dístico associado por paralelismo sinônimo734 (em que o primeiro termo é presumido no segundo veserto por elipse735), e o segundo com um trístico de paralelismo progressivo de intensificação (em que a situação dos ímpios no Sheol é descrita de forma cada vez mais trágica),736 mantendo וֹלַ לֻבְז ִמ (“longe da mansão dele”) na linha final, e תוֹלַבְלַ ם ָריִצְו (lit.: “e suas formas para ele engolir”) na anterior (segundo verseto do trístico).737

Verso 1: Dístico ַןאֹצַכ לוֹאְשִל ַ וּתַש תֶוָמ ַ םֵע ְרִי Verso 2: Trístico רֶקֹבַל םי ִרָשְיַםָבַוּד ְרִיַו לוֹאְשַתוֹלַבְלַם ָריִצְו וֹלַלֻבְזִמ 729VANGEMEREN, 1991, p. 370. 730SMITH, 2011, p. 125. 731

A BHS alista cerca de dez problemas textuais analisados no aparato crítico, embora só quatro representem variantes de versões ou manuscritos antigos (ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997. p. 1131.) Kraus chega a afirmar que “o texto no v. 15 está corrompido de modo irreparável” (KRAUS, 1993, p. 731). Entretanto, em nossa análise de crítica textual buscamos propor uma solução para os quatro problemas principais. “A hipótese que busca entender o TM é melhor do que essas conjecturas e esse desespero” (GOULDER, 1982, p. 191)

732KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352-3 discute mais detidamente vários aspectos sintáticos e semânticos

deste trecho. Cf. também as boas análises de ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 668; DAHOOD, 1965, p. 300-1.

733

RAABE, 1990, p. 69-70, 79. Outros comentaristas também dividem em dois dísticos: GOULDER, 1982, p. 190; CRAIGIE, 1983, p. 356.

734RYKEN, 1992, p. 180-181; KÖSTENBERGER, 2014, p. 240-1.

735KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 262; MILLER, 2003, p. 251-270. 736

OSBORNE, 2009, p. 290; ALTER, 2011, p. 21ss.

737GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). Ver as traduções nas análises de comentários e artigos que

também identificam um segundo com três versetos, em vez de dois: DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 442; DAHOOD, 1965, 296; ZUCKER, 2005, p. 146 (cf. ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 665, que invertem: um trístico e, depois, um dístico).

O versículo 15 segue descrevendo o “destino” (lit. “caminho”) “daqueles cuja tola confiança [é] para si” (v. 14). Como um “rebanho” de ovelhas (ןאֹצַכ)738

incapazes de definir seu destino ou de ter controle sobre a própria vida, os ímpios “dirigem-se”739 (וּת ַש, uma forma variante de וּת ָש,740 3ª. pessoa masculino plural de תי ִש) para o Sheol, que funciona no texto como o curral dessas ovelhas (v. 14).741 No contexto dos salmos dos coraítas, um dos poetas havia se lamentado diante de YHWH: “Entregaste-nos como ovelhas para o corte, e nos espalhaste entre as nações” (Sl 44.12[11]), agora a situação se inverte, em que os ímpios são ovelhas submetidas a outro pastor em um redil nada atraente.742

Pois tudo aquilo sobre o que está constituída a vida desses homens seguros de si desvanece na morte. Sem vontade própria como um rebanho, privados de qualquer esperança apresentam-se ao mundo inferior, onde, como numa imagem grandiosa, diz o poeta, a morte os apascentará e será o seu senhor.743

Há muita discussão sobre o sentido de “Sheol” (לוֹאְש) da Bíblia Hebraica, um termo hebraico recorrente (65 vezes) relacionado à morte e a post mortem, mas que não aparece em ugarítico, fenício ou púnico.744 Uma possível alusão a esse termo foi descoberta em uma maldição em acádico nos textos de Ras Shamra.745 O sentido básico de לוֹא ְש é o “além”,746 a morada dos mortos, geralmente localizado nas profundezas da terra (Gn. 37.35; 1Rs 2.6; Sl 86.13; Pv 9.18; Is 38.10).747

O לוֹא ְש representava uma condição de semivida, desconhecida, sombria e obscura em sua essência, sem a plenitude que tornava possível o relacionamento com Deus.748 Em Ezequiel, o Sheol é retratado como um lugar a ser habitado pelos mortos de todas as classes, poderosos e oprimidos (Ez 31.15-17; 32.21,27). Todos irão para o Sheol um dia (Sl 89.48).

738O verbo no plural (וּת ַש) nos leva a traduzir ןאֹצ como um singular coletivo: “rebanho” (ver KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 993).

739Ver esse sentido reflexivo de direção em GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 10 (edição kindle); KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 1485, exemplo 7c.

740GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 183, §67.ee. 741

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352.

742GOULDER, 1982, p. 191. 743WEISER, 1994, p. 288.

744TROMP, 1969, p. 21. Este autor oferece uma excelente discussão sobre a provável etimoglogia do termo לוֹא ְש

nas p. 21-23 de seu livro.

745DAHOOD, 1965, p. 212. 746TROMP, 1969, p. 21.

747DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 440. 748

Nas fontes mesopotâmicas, todas as pessoas, sem distinção, também iam para o mundo inferior, e ali viviam em trevas e tristeza, comiam barro e sofriam de diversas formas.749 Na descrição vívida de Martin-Achard:

De modo geral, o Sheol é uma região da qual não se sai, “uma país sem retorno”, a semelhança do Aralu babilônio. “Porque, decorridos poucos anos, eu seguirei o caminho por onde não tornarei”, afirma Jó (Jó 16.22), que sabia também que o reino das sombras era semelhante a uma cidade ou a uma casa que tem suas portas, suas fechaduras [...] neste lugar, no qual reina uma obscuridade fúnebre. Por isso, as trevas são frequentemente sinônimas de Sheol: “Saber-se-ão as tuas maravilhas nas trevas, e a tua justiça?” (isto é, no mundo dos mortos), pergunta o salmista.

[...] Uma das particularidades do Sheol é ser um lugar onde reina um profundo silêncio. [...] (Sl 88.10-12). O morto não pode invocar e louvar a Yahweh: “Porque não pode louvar-te o Sheol, / Nem a morte glorificar-te; / Nem esperarão em tua verdade os que descem à cova”, clama Isaías [sic: Ezequias] (Isaías 38.18).750

Entretanto, a morte não era vista como a não existência, mas sim, como uma forma bastante débil de vida. O hebreus falavam de “sombras” que viviam em lugar dos mortos, ainda que sua existência não fosse verdadeira como a da vida sobre a terra (p. 127).751

Sabe-se, ao menos, que a ideia de sepultura também está contemplada na definição mais ampla do לוֹא ְש (Sl 88.12; Jr 38.6ss.; Lm 3.55).752 Jacó, triste pela suposta morte de José, disse que desceria à “sepultura” (לוֹאְש) chorando (Jó 37.35). O texto de Jó 17.13-16 ilustra bem a ideia do Sheol como a sepultura, o lugar em que o corpo de alguém é enterrado e simboliza o fim de sua vida.

Assim como hoje, as pessoas eram sepultadas abaixo da terra, geralmente em buracos feitos em rochas. As tumbas reais de Ur, na Mesopotâmia, chegavam a ter mais de nove metros de altura, o que deve ter originado o conceito de Sheol como oposto a céu (Sl 139.8; Jó 11.8; Am 9.2) e à visão dos homens da Antiguidade do mundo dos mortos como o submundo.753 Em Salmos, o Sheol torna-se o lugar de onde o justo precisa ser liberto, e o ímpio, emudecido (Sl 16.10; 30.4; 31.17; 55.15). Diferente dos cananeus, que acreditavam no deus Môt, os israelitas viam o Sheol como uma triste realidade, mas que não fugia do controle ou autoridade de YHWH (Sl 139.8).

Os ímpios, que em sua prosperidade ameaçavam de morte os justos, agora se veem diante da ameaça da Morte como seu supremo pastor: “Morte os pastoreará” (םֵּע ְרִיַ תֶו ָמ). A Morte é personificada neste versículo como um pastor que mantém o rebanho em seu redil, o

749

HARRIS, R. Laird. לוֹאְש. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 892.

750MARTIN-ACHARD, 2015, p. 57-8. 751CATE, 1989. p. 127.

752MARTIN-ACHARD, 2015, p. 55. 753

Sheol, em contraste com YHWH, que é o pastor dos fiéis no livro de Salmos e cuja pastagem

está na terra dos vivos (Sl 23.1; 28.9; 100.3).754 “A imagem da morte como pastor é, evidentemente, uma perversão sarcástica do belo pensamento de que o rei e Deus estão cuidando de seu povo (v. 15[14]; cf. Sl 23; Ez 34)”.755

Em Jeremias 9.20[21] a Morte também é personificada, mas como intrusa que entra pelas janelas das casas, carregando as pessoas consigo e eliminando a população de uma cidade.756 “A Morte da fome e da peste obtém fácil acesso às casas, mesmo as mais seguras, saqueia o capital de duas gerações e deixa em seu rastro uma multidão de cadáveres não sepultados”.757

No Salmo 49.15, “Morte” é o pastor, e o “Sheol”, o curral em que os ricos pastarão. O supremo pastor dos “que confiam em si” é a Morte. “Morrer é como deixar o domínio em que Deus o pastoreia [...] para um domínio em que a Morte o pastoreia”.758

Tanto na estrutura sintática do uso da raiz verbal הער nesta oração do versículo 15 quanto nos paralelos da Bíblia Hebraica, a melhor interpretação de םֵּע ְרִיַתֶו ָמ é a de que a Morte terá o papel de pastor dos ricos ímpios (“Morte os pastoreará”), não de uma besta que os devora (“Morte apascenta-se deles”).759

Os dois últimos versetos de Salmo 49.15 dizem que a “forma” (ריִצ)760 dos ricos — isto é, seu corpo físico761 — será para o Sheol consumir, longe de suas belas casas (ַתוֹלַבְלַם ָריִצְו וֹלַלֻבְזִמַלוֹאְש) (v. 15). O fim dessas pessoas será distante de suas majestosas mansões (v. 15),762 pois descerão ao Sheol, onde seu belo corpo será consumido. “Seu destino não são as

754

RAABE, 1990, p. 74; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352.

755GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49. 756KIDNER, 1980, p. 205.

757ALLEN, 2008, p. 120. 758

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).

759COLLINS, C. John. “Death will be their shepherd” or “death will feed on them”? a et i ‘e in Psalm

49.15 (EVV v. 14)”. TBT, vol. 46, n. 3, 1995, p. 320-6. Este autor apresenta as duas possibilidades de interpretação (“a morte os apascentará” ou “a morte os devorará”). Então, descreve a razão dada por exegetas para a segunda tradução, especialmente a ideia de que a morte é descrita nas imagens do AOP e do AT como um monstro que devora as pessoas. Depois disso, mostra três opções de construção sintática com o verbo הער que implicam três possibilidades semânticas, que incluem tanto a ideia de “pastorear/apascentar” quanto de “alimentar-se”. Refutando a ideia de que a morte se alimenta dos ricos, Collins mostra como a construção sintática juntamente com a imagem precedente dos ricos como um rebanho de ovelhas requer que a leitura seja a de que os ricos são “apascentados” pela morte. Caso o salmista desejasse retratar a morte se alimentando dos ricos teria de usar outro verbo hebraico, não הער. “No Salmo 49 [ET, v. 14] mawet é uma personificação demitizada da morte. E, em contraste com os piedosos, que têm o Senhor como seu pastor (Sl 23.1), o rico despreocupado tem apenas a triste perspectiva de ser pastoreado pela morte” (p. 324).

760KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 1024; BROWN; DRIVER;

BRIGGS, 1977, p. 849

761KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352. Contra BRIGGS, 1906, 410-11. 762

‘residências grandiosas’ para as quais todo o foco de suas vidas foi direcionado, mas seus corpos (‘formas’, v. 15) estão destinados a serem consumidos no Sheol”.763

Deus vindicará os justos oprimidos pelos ímpios. Por isso, “de manhã, os justos dominarão sobre764 eles” (v. 14). A “manhã” (רֶקֹב) é, em geral, uma figura para se referir a um momento de salvação trazido por Deus após a “noite” ou as “trevas” da perseguição e dificuldades (Sl 30.5ss.). A manhã descreve também a salvação que Deus trará a Jerusalém ou a Israel diante de todas as nações (Sl 46.5-7; 59.6-17; 90.13-16). Portanto, “manhã” no v. 15 indica “mais uma inversão nesta vida para pessoas que experimentam tribulação e instabilidade (v. 5). A manhã é o momento em que Deus age nesta vida para libertar [...] e os justos então experimentarão a libertação de Deus.”765

O propósito do versículo 16 é claramente estabelecer um contraste entre o indivíduo cuja “tola confiança [é] para si” (v. 14), conduzido para o redil do Sheol (v. 15), e o indivíduo cuja confiança está em YHWH e experimenta sua redenção (v. 16).

O autor começa com uma partícula de ênfase ךְ ַא, com função adversativa (“mas [certamente]”)766

nesta passagem e que remete por assonância ao v. 8. Embora este versículo comece com um substantivo, חאָ ( , “irmão”), ele tem o mesmo som que a particula enfática com uso adversativo ךְ ַא (a ) no v. 16a. Ambos fazem duas afirmações básicas sobre a redenção usando a mesma raiz verbal הדפ: “Um ser humano não redimirá de modo algum [ה ֶדְפִיַ הֹדָפ־אלֹ] [seu] irmão”, “mas Deus redimirá [ה ֶדְפִי] minha vida do poder do Sheol”.767 Como observou Gestenberger: “A palavras de conforto do v. 16[15] formam um paralelo com o v. 8[7]: pessoas não podem resgatar a si mesmas da morte, mas Deus de fato liberta o fiel.”768

Este versículo do Salmo 49 (v. 16) talvez seja o que mais atrai a discussão hermenêutica sobre a possibilidade de vida além-túmulo. Muitos estudiosos interpretam a linha “Deus redimirá minha vida do poder do Sheol” à luz do verseto seguinte: “Certamente

763CRAIGIE, 1983, p. 360

764Ver esse uso de da preposição ְַב com o verbo הד ָר em BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 922 (cf. os

seguintes texto bíblicos: Gn 1.26,28; Ne 9.28).

765GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).

766Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45; KEIL; DELITZSCH,

1996, v. 5, p. 353.

767Leo Perdue chama a atenção para a ligação entre esses dois versículos e identifica neles um segundo “enigma”

referido pelo autor na introdução (v. 5), que não é formulado com pergunta e resposta, mas com duas afirmações paradoxais: o salmista reconhece que a morte é um estado do qual nem rico nem pobre nem tolo nem sábio podem ser redimidos (v. 7-10), mas declara que ele será (v. 16).

768

me tomará!”. A observação feita com frequência é que “o verbo recorda as tradições acerca

de Enoque e Elias (Gn 5.24; 2Rs 2.3,5)” e que “seu significado básico aqui é “arrebatar’”.769

Hans Walter Wolff confirma a mesma interpretação:

A superação da aflição da morte não se manifesta na forma de alguma esperança elaborada do além, mas na certeza tranquila de que a comunhão com Javé, por causa de sua fidelidade, não pode ser suprimida pela morte [...] Essa concepção é esclarecida ainda pela ideia de arrebatamento (חקל) no Salmo 49.15.770

Com exceção de Dahood, e alguns seguidores de sua proposta, que chegam a defender uma escatologia individual explícita em alguns salmos,771 a maioria dos pesquisadores não postula uma visão clara de um paraíso ou céu, nem mesmo da ressurreição, mas apenas da expectativa de que a comunhão com YHWH era tão profunda que nem mesmo o Sheol poderia rompê-la:772

Com base no texto não se pode responder com certeza se está em questão a ideia do arrebatamento antes da morte, como em Gn 5.24 e 2Rs 2.9ss, ou da libertação do Xeol (mundo dos mortos), por exemplo, através da ressurreição, como em Is 26.19 ou Dn 12.2. Em todo caso, para o poeta é a confiança em Deus, único com poder sobre a morte, e a esperança da eternidade baseada nisso, que ocupa o centro, não só

769MURPHY, 1977, p. 35; KRAUS, 1993, p. 737; cf. DAHOOD, 1965, p. 301; RAABE, 1990, p. 77; WEISER,

1994, p. 288; ALEXANDER, 1987, p. 13-6; TESH, 1999, p. 355. Segundo Von Rad: “o verbo em questão significa (a propósito da morte) ‘arrebatar’. O melhor é entender a frase como expressão da esperança em uma comunhão de vida com Deus que dura além da morte” (VON RAD, 1973, p. 263; cf. VON RAD, 2006. p. 393- 4). “Em relação aos ímpios, é claro que o Sheol significa a morada das sombras, para além da sepultura; em relação aos justos, deve o Sheol, consequentemente, ter o mesmo sentido, e significar que em vez de ir para o Sheol, Deus o receberá. [...] O que o salmista está dizendo é que as desigualdades desta vida se endireitarão na outra.” (ROWLEY, H. H. A fé em Israel. São Paulo: Teológica, 2003. p. 252-3). Essa ideia de o fiel ser elevado à presença divina já havia sido defendida no ambiente acadêmico alemão por Paul Volz, que interpretava o verbo חקל como um termo técnico para o arrebatamento do Sheol logo após a morte. Além de Gênesis 5 e 2Reis 2, ele cita o Épico de Gilgamesh para defender sua tese. Volz observa aqui o início da crença na imortalidade e uma inversão do ideal egípcio: não serão os aristocratas elevados até os deuses, enquanto o povo comum transforma- se em nada com a morte; ao contrário, os nobres ricos ficarão presos ao Sheol, ao passo que os piedosos serão arrebatados à presença divina (ver VOLZ, Paul. Psalm 49. ZAW, v. 55, n. 3-4, 1937, p. 242-3, 249-50)

770WOLFF, 2008, p. 175. 771

Por exemplo, em relação ao Salmo 49, ele afirma: “Um salmo de sabedoria que reflete sobre a natureza transitória da riqueza e do prazer. Não se deve invejar os ricos, pois a sepultura os aguarda, onde seu destino será o mesmo que o dos animais que perecem. Entretanto, o Paraíso com Yahweh aguarda o homem justo que coloca sua confiança em Deus, não nas riquezas ou prazeres terrenos.” (DAHOOD, 1965, p. 296).

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Essa também é a compreensão de WITTE, 2000, p. 554: “Er beschrankt sich darauf, wie der Verfasser von Ps lxxiii.24-5 mittels des Begriffs חקל auf eine den Tod besiegende Aufnahme in die unzerbruchliche Gemeinschaft mit Gott zu hoffen (V 16b). Die Henoch und Elia zuteilgewordene Entruckung aus dem irdischen Leben erscheint hier einerseits demokratisiert, andererseits auf die Zeit nach dem Tod verschoben. Daher trifft die Wiedergabe von חקל in Ps xlix.16 mit ‘entrucken’ nicht den genauen Sinn, zumal wenn unter ‘Entrukkung’ eine Herausnahme des Menschen aus diesem Leben unter Umgehung der Todesgrenze zu verstehen ist. Auf die Ausmalung seiner postmortalen Existenz verzichtet der Beter von Ps xlix. Er beschrankt sich darauf, allein Gott als die fur seine Erlösung verantwortliche Große zu benennen. Damit signalisiert er, daß fur ihn eine den Tod überdauernde Gottesgemeinschaft nur im Vertrauen auf Gott selbst möglich ist. Dieses Vertrauen sieht der Verfasser des Psalms in enger Verbindung mit der Fähigkeit, unterscheiden zu können (v. 21). Der Dichter von Ps xlix bezeugt so den engen Zusammenhang von Glaube und Verstehen. Glaube erscheint hier - wie in Ps lxxiii

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