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A Gattung do Salmo 49: Um Salmo de Sabedoria

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1. ANÁLISE TEXTUAL E LITERÁRIA DO SALMO 49

1.3. Análise Literária do Salmo 49

1.3.1. A Gattung do Salmo 49: Um Salmo de Sabedoria

Em geral, há o reconhecimento de que alguns salmos da Bíblia Hebraica devem ser classificados como “salmos de sabedoria” (e.g., Sl 37; 73; 112),284

relacionados aos mestres do antigo Israel, que estavam, de certa forma, ligados ao movimento mais amplo da sabedoria no Antigo Oriente Próximo.285 Alguns temas centrais da sabedoria em Israel eram pobreza

versus riqueza e a retribuição divina,286 devido à sua preocupação com o ensino de uma conduta prática, fornecendo regras para uma filosofia de vida.287 O salmos sapienciais também lidam com problemas que ameaçavam a vida dos fiéis no antigo Israel, desenvolvendo reflexões e propondo soluções.288

Segundo Westermann, devemos distinguir entre “ditados de sabedoria”, breves sentenças sapienciais encontradas, por exemplo, nos Salmos de Peregrinação (תוֹלֲע ַמַהַרי ִשׁ; Sl 127.1,2,3-5; 133), e os “poemas/cânticos de sabedoria” (e.g., Sl 37; 49; 73; et al.), que eram composições maiores e tinham uma profunda relação com o culto no antigo Israel.289 À medida que os antigos mestres dominaram os gêneros dos salmos começaram a usá-los como meios para expressar suas reflexões,290 havendo, consequentemente, uma influência recíproca de temas entre a literatura sapiencial e a tradição do culto a YHWH.291

Os salmos sapienciais estão relacionados entre si não por um gênero literário específico, mas por temas e linguagem comuns.292 Essas características têm sido identificadas por estudiosos a fim de auxiliar na classificação dos textos de sabedoria da tradição cultual hebraica. Apesar da relutância de poucos estudiosos em classificar o Salmo 49 como “salmo

283Para uma análise mais breve do Salmo 49 publicada por este autor, ver NETO, 2017, p. 146-155. 284PLEINS, 2001, p. 430-8; SAUR, 2015, p. 181-201.

285BERRY, 1995, cap. 2 (edição kindle); KRAUS, 1993, p. 89-90; LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 485-7. 286SABOURIN, 1974, p. 370; PINTO, 2014, p. 478.

287ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, v. 1. p. 59; BELLINGER, 2012, p. 129. 288 VON RAD, 1973, p. 72. 289WESTERMANN, 1980, p. 111. 290VON RAD, 1973, p. 72. 291WEISER, 1994, p. 59. 292 KRAUS, 1993, p. 90; SABOURIN, 1974, p. 369-71.

de sabedoria”,293

há um consenso de que esta seja a designação mais adequada para o texto de nossa análise.294

Diversos elementos indicam que o Salmo 49 é sapiencial (cf. Sl 37; 73, 112). Em primeiro lugar, salmos sapienciais apresentam um chamado inicial feito pelo mestre (cf. Sl 78.1; Pv 2.1; 7.24: “E agora, filhos, dai-me ouvidos...”).295 “Essa é uma exortação transmitida entre um mestre humano e alunos humanos, com o mestre convocando os alunos a receberem a sabedoria declarada a eles por meio do ato de ouvir”, o que ecoa “um tipo específico de discurso encontrado na literatura bíblica de sabedoria”.296

O início do texto do Salmo 49 traz esse chamado que se dirige não apenas a Israel, mas a todos os povos (v. 2):

ַָכַתאֹז־וּעְמִשׁ םיִמַעָה־ל

“Escutai isto todos os povos!” דֶלָחַיֵבְשֹי־לָכַוּניִזֲאַה

“Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo!”

Além do chamado inicial, um aspecto literário significativo dos salmos sapienciais é que eles “não são dirigidos a YHWH em oração e louvor, mas aos homens, especialmente aos menos instruídos”.297

O salmo 37, por exemplo, começa com uma exortação com diversos verbos no imperativo da segunda pessoa do singular: “Não te ires [...] Não tenhas invejas [...] Faze [...] Confia [...] Habita...” (37.1ss.),298 e depois refere-se a YHWH ou ’ n , na terceira pessoa do singular, como a divindade que pune os ímpios e abençoa os justos: “O

293Gerstenberger, por exemplo, demonstra essa relutância e afirma que o salmo é uma “comunicação cultual

divina” composta para ser cantada por um solista em um contexto de culto religioso em Israel. No entanto, ele mesmo reconhece que a linguagem do salmo revela “a influência da reflexão de sabedoria na adoração posterior ao Exílio” e o classifica como “Meditação e Instrução” (GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 [edição kindle]).

294MURPHY, 1977, p. 34-5; SAUR, 2015, p. 192-5; BROYLES, 2009, p. 98; CRAIGIE, 1983, p. 358; SMITH,

2011, p. 107-8; RENDTORFF, 1998, p. 39; DAHOOD, 1965, p. 296; ZUCKER, 2005, p. 147; WEISER, 1994, p. 285; KRAUS, 1993, p. 732-3; GIMÉNEZ-RICO, 2014, p. 400; SABOURIN, 1974, p. 374-5; LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle); SILVA, 2003, p. 21.

295

BUSS, 1963, p. 383. BELLINGER, 2012, p. 130; KRAUS, 1993, p. 91; O salmo 78 tem uma introdução semelhante, em que há um apelo imperativo a “dar ouvidos” (הָניִִ֣זֲאַה) v. 1; cf. 49.2), uma referência à “boca” como o veículo do discurso de sabedoria (v. 2; cf. 49.4) que profere “parábola” e “enigmas” (78.1-3; cf. 49.5) (ver DUNN, 2009 [Tese de Doutorado], p. 203).

296PETRANY, 2014, p. 87.

297SCOTT, 1971, p. 197. Cf. CROFT, 1984, p. 58: “Claramente, o Salmo 49 é um sermão, não uma oração —

dirigido a homem, a todos homens, não a Deus”.

Senhor rirá dele299 [...] mas YHWH sustenta os justos300 [...] os passos do homem são preparados por YHWH”301 (v. 13,17,23).302

Com o Salmo 49 não é diferente. Além do chamado inicial na segunda pessoa do plural (v. 2-5; ver análise acima), o salmista apresenta uma reflexão sobre as riquezas e a morte introduzida pela primeira pessoa do singular: “Por que temerei os dias maus...?”303 (v. 6-16), em que há referências a “Deus” (םיִהלֹ ֱא) na terceira pessoa do singular (v. 8,16), e depois, apresenta uma exortação a seu público na segunda pessoa do singular: “Não temas...”304 (v. 17-20). Portanto, não há súplica ou ação de graças dirigida a YHWH.

Outra característica importante dos salmos sapienciais é a tentativa de responder à evidente ausência de retribuição à maldade dos ímpios e à justiça dos fiéis nesta vida, pois os ímpios parecem prosperar enquanto os justos padecem.305 O Salmo 49 busca lidar com essa questão debatida pelos sábios. A pergunta inicial, logo na primeira parte do salmo, indica esse foco do autor: “6

Por que temerei [...] [quando] a maldade dos que me atacam por trás306 me cercar? 7Os que confiam em suas posses e na abundância de seus bens se gloriam?”307 (Sl 49.6,7]). Claramente, os ricos são identificados como traidores maldosos que perseguem o justo.

A resposta/advertência segura no versículo 17 realça, novamente, essa questão e mostra que o justo não precisa temer o ímpio que se enriquece: “Não temas se um homem

alcançar riquezas,308 se aumentar a glória de sua casa”,309 pois a morte é a grande niveladora e demonstrará, de forma, definitiva o caráter efêmero das riquezas, cancelando as diferenças entre ricos e pobres:310 “Pois não tomará tudo [consigo] em sua morte, não descerá atrás dele

sua glória” (v. 18). Enquanto o autor do salmo manifesta sua certeza de que será redimido

299וֹל־קַחְשִיַיָנֹדֲא 300הָֽ ָוהְיַםיִַקיִדַצַךְֵַּמוֹסְו 301וּנ ָָ֗נוֹכַרֶבֶג־יֵּדֲעְצִמַהָוהְיֵַּמ

302No Salmo 73, que também é classificado como sapiencial por vários estudiosos (e.g., PLEINS, 2001, p. 434-

5), há uma descrição da situação passada do salmista de questionamento acerca da prosperidade dos ímpios (v. 3- 16) e da resolução de seu dilema ao entrar no santuário de ’ e ver o “fim deles” (ם ָתי ִרֲחאְַל) como resultado do juízo divino, em contraste com justo que é guiado e “recebido em glória” por Deus (v. 17-24). O louvor ocorre apenas em uma pequena parte no final do salmo (v. 25-28). Ver também o Salmo 128.

303ע ָרַיֵמיִבַא ָריִאַהָמָל 304א ָריִת־לאַ

305LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle); SABOURIN, 1974, p. 370. 306Ver discussão sobre essa opção de tradução na análise exegética do versículo 6. 307וּלָלַהְתִיַם ָרְשָׁעַבֹרְבוַּםָליֵּח־לַעַםיִִ֥חְטֹבַה יִנֵּבוּסְיַיַבֵּקֲעַןוֲֹע [...]ַא ָריִאַהָמָל ַ

308Ver esse sentido do verbo רשע no grau hifil em KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,

1994-2001, p. 897.

309וֹתיֵּבַדוֹ ֣בְכַהֶב ְר ִִ֝י־יָֽ ִכַשׁי ִִ֑אַרִשֲׁעַי־יִכַא ָריִַת־לאַ 310

(ה ָדָפ) da morte por YHWH (v. 16 [15]), os que confiam nas riquezas, em vez de em YHWH, “como rebanho dirigem-se311

para o Sheol, Morte os pastoreará...”312 (v. 15 [14]).

Termos do salmo como הָמְכָח (“sabedoria”; cf. Pv 1.20; 9.1; 24.7), הָנוּב ְת (“entendimento”; cf. Jó 12.12; 26.12; Pv 5.1), לָשָמ (“provérbio”; cf. Pv 10.1; 25.1; Ec 12.9), הָדיִח (“enigma”; cf. Pv 1.6; Sl 78.2) são característicos da literatura de sabedoria do antigo Israel.313 A estilização autobiográfica também faz parte da poesia sapiencial (cf. Sl 73; Pv 24.30-34).314 No Salmo 49, a declaração do autor de que falará de “sabedoria” e exporá um “enigma” ocorrem na primeira pessoa (v. 4-5), bem como a descrição da situação inicial em que o salmista se vê cercado por ímpios traiçoeiros e ricos (v. 6,7).

Diante dos vários aspectos aqui destacados, parece seguro afirmar que o Salmo 49 é uma poesia de sabedoria, escrita por um mestre que reflete sobre as incoerências da vida e busca respondê-las com os elementos da morte e do cuidado de YHWH com aqueles que nele confiam ao livrá-los do Sheol.

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