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Estrofe I: A realidade da morte elimina o temor dos opositores que confiam em suas

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2. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO SALMO 49

2.3. Estrofe I: A realidade da morte elimina o temor dos opositores que confiam em suas

49.6Por que temerei os dias maus,

[quando]a maldade dos que me atacam por trás me cercar? 7

Os que confiam em suas posses E na abundância de seus bens se gloriam. 8

Um ser humano não redimirá de modo algum [seu] irmão. Nem dará a Deus um pagamento expiatório por ele.

9

(Pois é valioso o resgate da vida deles; E cessará para sempre.)

10

Para que viva continuamente para sempre E não veja a sepultura.

11

Certamente, verá que os sábios morrem Insensato e bruto juntos são destruídos

E deixam para outros suas posses. 12

Seu pensamento íntimo526 [é que] suas casas são eternas, E suas habitações, de geração em geração.

524

YAMAUCHI, E., דוּח. , in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 616.

525HAMP, ה ָדיִח, In: BOTTERWECK, 1997, v. 4, p. 321-2.

526Para a tradução de םָב ְר ִק por “seu pensamento íntimo”, veja as ocorrências de ב ֶר ֶק em Gn 18.12; Sl 5.10[9];

62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14. Na antepenúltima referência (Sl 62.5), há claramente um contraste entre o ato da “boca” dos homens falsos de “abençoar” e o “pensamento interior deles” (םָב ְרִק), que “amaldiçoa”. Em Jr 4.14, é no ב ֶרֶק que estão presentes os “maus pensamentos” (ךְֵנוֹאַתוֹבְשְחַמ). Cf. COPPES, Leonard J. ב ֶרֶק, in: HARRIS; ARCHER Jr.; WALTKE, 1999, p. 813; HOLLADAY; KÖHLER, 2000. p. 324; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135, sentido 2.

Aclamam seus nomes sobre as terras.

O dístico do versículo 6 é composto por dois versetos complementares, formando um paralelismo sintético527 ou progressivo.528 O segundo verseto, “[quando] a maldade dos que me atacam por trás me cercar?” (יִנֵבוּסְיַיַב ֵקֲעַןוֲֹע), complementa e aprofunda o sentido de “dias maus” (ע ָרַיֵמיִב), a última expressão da primeira parte. Além disso, é possível identificar um paralelismo rítmico ou métrico de 3 + 3 neste dístico,529 além da clara assonância nas sílabas que recebem ênfase no primeiro verseto, que transliteramos e destacamos (negrito) para clareza: ’ b (ע ָרַי ֵמיִבַא ָרי ִאַה ָמָל).

A raiz verbal א ֵרָי da pergunta inicial do versículo ocorre tanto na literatura hebraica quanto na ugarítica530 e tem uma ampla gama de nuances de sentido no grau qal, como “temer, assustar-se, alarmar-se”; “tremer, estremecer, levar um susto”; “ser tímido, covarde”; “ter medo, temor, receio, apreensão”; “ter respeito, reverência, respeitar, venerar”.531

Quando se trata de objetos, seres e pessoas, o temor pode ser uma reação psíquica às ameaças: temor

de animais e eventos naturais, como o leão (Am 3.8) ou a neve e abalos sísmicos (Pv 31.21;

Sl 46.3); temor de guerras e fome (Jr 42.16; Ez 11.8); temor da morte causada por pessoas (Gn 32.12; 1Rs 1.50ss.; Jr 26.21) ou por eventos da natureza, como uma tempestade em alto mar (Jn 1.5); temor de um povo ou exército inimigo (Êx 14.10; Js 9.24; 1Sm 7.7; 2Rs 10.14).532

Além desses medos ou temores, o indivíduo pode “temer” (א ֵרָי) inimigos pessoais. Na obra de Neemias, um homem chamado Semaías havia sido subornado pelos inimigos do líder judaíta “para que eu temesse” (א ָריִא־ןַעַמְל) (Ne 6.13). Embora tenha cumprido a ordem de YHWH para destruir o altar de Baal, Gideão realiza essa tarefa de noite porque “temeu” (א ֵרָי) represálias contra si de sua família e dos homens de sua cidade (Jz 6.27). O quadro paranoico de Saul retratado em 1-2Samuel envolveu seu temor (א ָרִיַו) a Davi (1Sm 18.12). A confiança em YHWH livra o fiel do temor a outros humanos (Sl 27.1,2),533 de “muitas” (םיִב ַר) pessoas

527RYKEN, 1992, p. 182.

528Essa é a classificação de KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3. Ver a análise de Osborne: “O

paralelismo progressivo também é chamado ‘paralelismo sintético’ e se refere a um desenvolvimento do pensamento no qual o segundo verso [sic] acrescenta ideias ao primeiro” (OSBORNE, 2009, p. 290).

529CRAIGIE, 1983, p. 356. Isso implica ler os termos ע ָרַ י ֵמיִב juntos e com acentuação ou ênfase no adjetivo

monossilábico (ע ָר); todos o demais termos dos versetos recebem ênfase em sua última sílaba.

530

STÄHLI, H. -P. ארי. In: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 568.

531ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 292. 532STÄHLI, 1997, p. 570.

533Observe-se o uso de י ִמ (“quem?”; cf. GESENIUS, 2003, p. 468-9) indicando que o objeto do temor seriam

(שוֹנ ֱא, “ser humano”; רָשָב, “carne; mortal”; ם ָדאָ, “ser humano”) que o perturbam e se opõem a ele (Sl 56.2-5,12[1-4,11]; Sl 118.6).

No Salmo 49, o objeto do temor é esclarecido tanto pelo outro uso do verbo א ֵרָי no v. 16[17], em que o salmista exorta sua audiência: “Não temas...” (א ָרי ִת־לאַ) se “um homem

alcançar riquezas” (שי ִאַר ִשֲעַי), quanto pela definição no v. 7[6] de quem são os inimigos do

salmista: “Os que confiam em suas posses” (םָליֵח־לַעַ םיִחְטֹבַה). O texto parece indicar que pessoas com poder econômico ameaçam a integridade do fiel, e este se encontra do outro lado do espectro, em um nível socioeconômico mais baixo.534

Em oposição ao temor dos seres humanos mortais (cf. Sl 49.7-11[6-10]), a mesma raiz verbal é usada para indicar o temor a YHWH. O conceito do “homem que teme YHWH” (cf. הָוהְיַא ֵרְיַשי ִאָה em Sl 25.12) é comum na religiosidade hebraica e expressa uma atitude que pode ser descrita tanto pelo verbo א ֵרָי (“temer”, “reverenciar”)535 quanto pelo substantivo האָ ְרִי (“temor”, “medo”, “terror”).536

Ela envolve especialmente um sentimento de reverente consideração por Deus,537 combinado com assombro e temor do juízo divino contra a desobediência (cf. Êx 18.21; Dt 4.10; 25.18; Js 24.14 Sl 112.1; Jr 5.22).538

O temor de YHWH, o Deus de Israel, é exigido por ele mesmo (Êx 20.20; Dt 6.13; Js 4.24; 1Sm 12.24; Jó 6.14; Sl 33.8; 34.9; Pv 23.17; Ec 5.7) como elemento essencial da religião javista (Sl 34.11; Jr 2.19; cf. Ec 12.13). De forma prática, temer YHWH implica obediência e prazer nos mandamentos divinos (Dt 31.11-12; Sl 112.1; Ec 12.13), aborrecendo e evitando o mal (Pv 8.13; Pv 16.6), afastando-se da idolatria (Dt 6.13-14) e praticando o que

534“O mestre adverte sua audiência a não ficar com medo por não ter riqueza alguma enquanto outros se tornam

ricos” (CRAIGIE, 1983, p. 360); assim, o salmista se dirige a pessoas que viviam “em épocas difíceis”; “ameaçadas pela morte, era difícil não temer os inimigos poderosos, cujas riqueza e posição parecia torná-los tão vulneráveis a ameaças semelhantes [v. 6-7]” (p. 359). “Essa é uma composição literária didática dirigida não a Deus, mas aos homens, em que o moralista adverte os ricos da vaidade de seus valores, e tranquiliza a si mesmo e aos fiéis a Deus pobres, que são seus companheiros. Talvez eles estejam sendo oprimidos pelos ricos no presente, mas a morte será o grande nivelador...” (GOULDER, 1982, p. 181; contra SPANGENBERG, 1997, p. 339). “Embora se dirija tanto a ricos quanto a pobres (v. 3), ele está falando em favor daqueles que sofrem ostracismo” (GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 [edição kindle]; ver também VANGEMEREN, 1991, p. 366; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 [edição kindle]; WEISER, 1994, p. 285).

535Ver ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 293. Ele classifica esse uso do verbo como “específico” e o atribui ao

“campo religioso”.

536KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 433-4; BROWN; DRIVER;

BRIGGS, 1977, p. 432.

537BOWLING, Andrew. א ֵרָי. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 399-400. 538

é justo diante de YHWH (2 Sm 23.3).539 O temor de YHWH é o “segredo” para uma vida sábia e bem-sucedida na Terra Prometida (Pv 1.7; 9.7; 14.27; Sl 110.10; 128.1,4).540

A segunda parte do verseto diz: “[quando] a maldade dos יַבֵקֲע me cercar” (v. 6b). Em primeiro lugar, o texto hebraico deixa muito claro que é a maldade dos inimigos traiçoeiros/perseguidores que cercam o salmista ou sua audiência, trazendo tribulação e angústia.541 A maldade é personificada, assume vida e cerca o justo como um inimigo feroz que o persegue, colocando-o em uma situação de dificuldade.542

Há muito debate sobre o termo יַב ֵקֲע (lit., “meus calcanhares”), bem como várias propostas de tradução por razões hermenêuticas e de crítica textual, o que fica muito evidente nas diferenças entre as versões A21 (“perseguidores”), NVI (“inimigos traiçoeiros”) e BJ (“a maldade me persegue”). O texto hebraico transliterado na segunda coluna da Héxapla de Orígenes ( εβρ)543 traz o termo ββαε , que é entendido pela BHS como יַב ֻקֲע, mas o editor H. Bardtke de Salmos propõe a leitura יַב ְקֹע.544

Conforme observado na análise de crítica textual, deve-se escolher uma tradução que mantenha o texto hebraico majoritário יַב ֵקֲע (“dos meus calcanhares” [relação genitiva]), que é basicamente seguido tanto pela LXX ( ῆς π ρ ς ) quanto pela Vulgata (calcanei mei).545 Afinal, esse termo pode ser traduzido por “retaguarda” de um exército (Gn 49.19; Js 8.13).546 A palavra é originária de uma raiz verbal que pode indicar tanto “segurar no calcanhar” (Gn 25.26) quanto “enganar” (Jr 9.4). A ideia de um amigo íntimo e de confiança que “faz crescer o calcanhar contra mim” (Sl 41.10[9]) indica traição e deslealdade.547 Os “meus calcanhares” seriam uma figura de linguagem para os inimigos do salmista que o atacam por trás, pelo calcanhar. “A agressividade exerce-se com fraude e embuste: pelo calcanhar, pelas costas”.548 Por isso, nossa tradução: “... [quando] a maldade dos que me atacam por trás me cercar”.

539BOWLING, 1999, p. 399-400; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 431. 540LIMBURG, 2000. p. 81; WEISER, 1994, p. 240-241.

541

O verbo na 3ª. pessoa do masculino singular (יִנֵבוּסְי) [com o sufixo que indica o objeto – “me”] demanda um sujeito que seja masculino singular, neste caso, ןוֲֹע (“maldade”, “impiedade”).

542“Poetas, autores e oradores recorrem à personificação por várias razões (e.g., o pecado deixa de ser uma

abstração quando ele é personificado como um animal predador rastejando pela porta)” (RYKEN, 2014. verbete personification [edição kindle]).

543FRANCISCO, 2008. p. 73; NET Bible, 2005, Psalm 49.5, text-critical note. 544ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131.

545KRAUS, 1993, p. 730; GOULDER, 1982, p. 185-6. Ver a tentativa de tradução de Alonso Schökel e Carniti:

“quando me cercam para derrubar-me criminosos” (ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664, 666).

546GESENIUS, 2003, p. 649.

547Brown, Driver, Briggs propõem: “aqueles que tomariam alguma vantagem traiçoeira de mim” (BROWN;

DRIVER; BRIGGS, 1977. p. 784; cf. SWANSON, 1997, ב ֵקָע [edição eletrônica])

548

Quem são os inimigos do salmista, que o atacam por trás? “Os que confiam em suas posses e na abundância de seus bens se gloriam” (v. 7).549

Este versículo forma um paralelismo sinônimo invertido ou quiasmático550 estruturado da seguinte maneira: A. “Os que confiam” / A’. “se gloriam”; B. “em suas posses” (“isto”) / B’. “na abundância de sua riqueza”.551

םָליֵח־לַע / םיִחְטֹבַה וּלָלַהְתִי / ם ָָ֗רְשָעַבֹרְבוּ

A primeira característica dos opositores em foco neste salmo é que eles “confiam em suas posses” (םָליֵח־לַעַםיִחְטֹבַה). O uso do particípio relativo,552

isto é, como componente verbal em uma oração adjetiva553 (lit. “os que confiam...”, םיִחְטֹבַה), ocorre com uma raiz verbal (חטב, “confiar”; “ser confiante”)554

bastante significativa no hebraico, que qualifica quem são “os que me atacam por trás”.

A raiz verbal חטב pode ser usada com o sentido de apoiar-se no aspecto físico, por exemplo, em um bastão de cana (Is 36.6).555 Também significa “estar seguro” ou “estar tranquilo”, descrevendo um povo que “está confiante/seguro” (ַַחֵטֹב) em sua terra, livre de preocupações (Jz 18.27).556 É possível “estar seguro” em uma situação ou estratégia de guerra (Jz 20.36). O salmista diz “eu estou seguro” (ַַחֵּטוֹבַ יִנֲא) porque YHWH é a fortaleza de sua vida (Sl 27.3; cf. v. 1). Há pessoas que estão confiantes porque vivem de modo complacente,557 despreocupadas com o juízo divino, que lhes sobrevirá de modo iminente (Is 32.9; Am 6.1).

Entretanto, a nuance de Salmo 49.7 é a de “confiar em algo” ou “confiar em alguém”. O profeta Jeremias afirma ser maldito o homem “que confia em [outro] ser humano” (ם ָדאָָבַחַטְבִיַר ֶש ֲא) (Jr 17.5); também é tolice confiar no próprio coração (Pv 28.26). Condena-se “os que confiam em imagens talhadas” (לֶסָפַבַםיִחְטֹבַה) e anuncia-se sua confusão vergonhosa (Is 42.17), pois, da perspectiva do profetismo do antigo Israel, os ídolos são inúteis (Hc 2.18).

549“O versículo 7 esclarece a identidade daqueles que são mencionados no v. 6b” (RAABE, 1990, p. 71). 550KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014. p. 240-1; ZUCK, 1994. p. 160-1; RYKEN, 1992, p. 327. 551Ver também DAHOOD, 1965, p. 298.

552WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 621-2. 553

WILLIAMS, 1976, p. 40; PINTO, 1998, p. 85.

554KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 120. 555ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 97.

556KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 120. 557

O profeta Jeremias condena Moabe por confiar em seus tesouros (Jr 48.7). E o salmista coloca o ímpio sob a mesma perspectiva, mas no âmbito individual: os inimigos do fiel “confiam” em suas “posses” (םָליֵח) (Sl 49.7), ao passo que tanto a tradição profética quanto a hínica e sapiencial afirmam que somente os que confiam em YHWH é que são felizes, experimentam salvação e estão seguros (Jr 17.7; Sl 28.7; Pv 29.25). Aliás, quem

confia “na abundância de seus bens” (וֹר ְשָעַ בֹרְב; cf. expressão bastante semelhante em Sl

49.7b: ם ָר ְשָעַבֹרְבוּ) o faz porque “não estabeleceu Deus [como] sua fortaleza” (ַםיִהלֹ ֱאַםי ִשָיַאלֹ וֹזוּעָמ - Sl 52.9[7]). Segundo o livro de Jó, “confiar” (חטב) no “ouro” (ם ֶתֶכ) implica negar o Deus que habita as alturas (לַע ָמ ִמַל ֵאָלַי ִת ְשַחִכ־יִכ) (Jó 31.24,28). Afinal, “a base de sua confiança define o proceder e o destino do homem”.558

A consequência de escolher a riqueza (ר ֶשֹע) como objeto da confiança será a queda: “O que confia em seus bens cairá” (לֹפִיַאוּהַוֹרְשָעְַבַ ַחֵטוֹב - Pv 11.28), pois “... as riquezas são notoriamente instáveis (Pv 23.5). Agora surge o pleno absurdo disto, viver em prol daquilo que sempre acaba falhando, e que faz assim justamente no ponto em que o fracasso desmancha tudo.”559

O segundo verseto diz: “e na abundância de seus bens se gloriam” (בֹרְבוּ וּלָלַה ְתִיַם ָר ְשָע). Em outras passagens da Bíblia Hebraica, ter riqueza (ר ֶשֹע) em “abundância” (בֹרְב ou בֹרָל) não é necessariamente um mal e pode ser visto como sinal do favor e da bênção de YHWH (2Cr 17.5; 18.1; cf. 1Rs 3.13).560 Entretanto, as riquezas podem levar a uma confiança indevida em sua grande quantidade561 e revelar falta de confiança em Deus (Sl 52.9[7]).

O uso da raiz verbal ללה (וּלָלַה ְתִי) no imperfeito, aqui, tem função habitual, indicando uma prática, ações habituais, de ricos da época do salmista.562 Em geral, a raiz verbal ללה no grau hitpael refere-se ao gloriar-se em YHWH: o fiel comum563 (Sl 4.3[2]) e o rei da nação (Sl 63.12[11]) se gloriam em YHWH, pois essa é a atitude esperada dos que são “retos de coração” (בֵל־י ֵרְשִי, Sl 64.11[10]).564

Jeremias exorta cada cidadão de Judá a “gloriar-se” (לֵלַה ְתִי) em YHWH, não na própria força, sabedoria ou riqueza (Jr 9.22,23[23,24]). A segunda

558ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674. 559

KIDNER, 1980, p. 204.

560ALLEN, Ronald B. רַשָע, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 706. 561ESTES, 2004, p. 61.

562MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999, p. 148; PINTO, 1998, p. 63; ROSS, 2009, p. 137. 563

Para o uso de שֶפֶנ como circunlocução para “eu” ou “me”, ver WOLFF, 2008, p. 52-3.

564É interessante notar que sempre que o livro de Salmos faz referência a “gloriar-se” (ללה) em YHWH, o verbo

paralelo que o acompanha no dístico é “alegrar-se” (חמש), indicando que a glória do fiel é sua fonte de alegria (cf. Sl 34.3; 63.12; 64.11; 105.3; 106.5; cf. 1Cr 16.1). Ver também as observações sobre o uso de ללה no hitpael em Salmos feitas por WESTERMANN, Claus, ללה, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 374

parte do livro de Isaías anuncia um momento em que “toda descendência de Israel se

gloriará” (ל ֵא ָר ְשִיַערֶז־לָכַוּלְלַה ְתִיְו) em YHWH (Is 45.25).

Por isso, a atitude de “gloriar-se” em qualquer outro ser ou objeto que não YHWH, como fazem os ricos opositores do salmista, é retratada de maneira negativa em outros textos: os que se gloriam em ídolos serão envergonhados (Sl 97.7); gabar-se da vitória de uma batalha que nem começou é perigoso (1Rs 20.11), assim como não é recomendável gloriar-se no dia que virá porque não se sabe o que ele trará à luz (Pv 27.1). Comentando o uso de חטב e ללה no Salmo 49.7, Goldingay observa:

O verdadeiro risco em sua atitude [dos ricos] está implicado nos verbos do salmo. Ele fala de sua confiança e exultação (louvor). Esses são verbos que merecem ter Yhwh como seu objeto (e.g., 22.4,5[5,6]; 34.2[3]), mas aqui seus objetos são os recursos e a riqueza.565

O versículo 8 é formado por dois versetos complementares, em um paralelismo sintético566 ou progressivo.567 A primeira parte do dístico mostra a incapacidade de um ser humano de redimir um companheiro (שיִאַ הֶדְפִיַ הֹדָפ־אלַֹחאָ) enquanto a segunda completa a ideia, mostrando que tal resgate é impossível de ser dado a Deus (וֹרְפָכַםיִהלֹאֵלַן ֵתִי־אלֹ).

Na primeira parte de Salmo 49.8, uma construção sintática incomum é a presença do advérbio de negação antes do verbo no infinitivo, quando a regra é o advérbio precedendo o verbo finito, não o infinitivo.568

[verbo finito no imperf.] ה ֶדְפִי + [verbo infinitivo] הֹדָפ + [adv. negação] ־אלֹ

A raiz verbal הדפ (v. 8a) contém o sentido básico de “conseguir a transferência de propriedade de uma pessoa para outra mediante pagamento de uma quantia ou de um substituto equivalente”.569

O conceito de resgate estava muito presente na sociedade do antigo Israel. Pessoas que se endividavam e acabavam tornando-se escravas para quitar uma dívida poderiam ser “resgatadas” dessa condição por um parente ou um amigo próximo que tivesse condições de pagar a dívida ao credor (e.g., הּ ָדְפֶהְו em Êx 21.8; cf. talvez Jó 6.23).570

Mantendo a ideia básica de “resgatar”/“redimir”, הדפ foi um termo que marcou a libertação de Israel do Egito, da terra da escravidão, como se Deus estivesse comprando a

565

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).

566RYKEN, 1992, p. 182; CHISHOLM, 2016, p. 176-7.

567OSBORNE, 2009, p. 290; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3.

568JOÜON; MURAOKA, 2011, p. 395. Ver outras exceções em Amós 9.8 e Gênesis 3.4. Ver o texto de Levítico

7.24: [verbo finito imperf.] וּהֻלְכאֹת + [adv. negação] אלֹ + [verbo infinitivo] לֹכאְָו

569COKER, William B. הדפ. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 716.

570LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle); KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,

nação do faraó para si (cf. Dt 7.8; 13.6[5]; 1Cr 17.21; Mq 6.4).571 Um salmista pediu a Deus que fizesse no presente como havia feito no passado, rogando-lhe que resgatasse (הדפ) a nação de seu estado de sofrimento (Sl 25.22),572 pois cria que “YHWH resgata [הדפ] a vida [שֶפֶנ] dos seus servos, e dos que nele confiam nenhum será condenado” (Sl 34.22). Em outras partes da Bíblia Hebraica, a raiz verbal descreve a salvação/redenção de Deus da “vida” (שֶפֶנ) do fiel ou da nação de Israel de alguma opressão ou perseguição (Sl 55.18; Sl 69.18-19 [17-18]; 78.42; Jr 15.21) ou de sofrimentos/tribulações (Sl 25.22; 44.23-26[24-27]).573

Entretanto, o versículo 8a afirma que o “ser humano”574 (שי ִא) é incapaz de realizar essa redenção (ה ֶדְפִיַ הֹדָפ־אלֹ). A repetição da raiz verbal הדפ com o infinitivo absoluto (הֹדָפ) antes do imperfeito (ה ֶדְפִי) serve para acrescentar ênfase575 e seria adequadamente traduzida por: “não redimirá de modo algum...”. Como declarou A. Weiser:

Pela morte ergue-se ao homem um limite que por si mesmo não pode ultrapassar. O poder e as riquezas humanas não são suficientes para resgatar da morte. Pois na morte o homem enfrenta inexoravelmente o poder de Deus, por mais que de outras vezes tenha procurado evitá-lo e afirmar-se. E por se tratar de poder de Deus, todo poder humano que se levanta contra ele necessariamente fracassa. O poder de Deus e o poder humano situam-se em níveis diferentes. Sua diferença não é quantitativa, mas qualitativa.576

Na segunda parte do versículo 8, o autor do salmo desenvolve ainda mais a ideia de impossibilidade de resgate ao declarar: “Não dará a Deus וֹרְפָכ”. O termo hebraico é o substantivo רֶפֹכ acompanhado do sufixo וֹ (sufixo pronominal possessivo da 3ª. pessoa do singular: “dele”). A palavra רֶפֹכ não ocorre muitas vezes na Bíblia Hebraica577 e traz uma nuance um pouco mais restrita que o termo do verseto anterior.

Enquanto a raiz verbal הדפ está especialmente relacionada ao ato de resgatar alguém do poder de outra pessoa ou do lugar em que se é mantido sob um determinado poder (Êx

571BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 804.

572O uso da preposição ן ִמ indica o movimento para fora de um estado de existência, no caso de Sl 25.22, o

sofrimento (cf. GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 275. 2.a).

573

COKER, William B. הדפ. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 716.

574Ver esse sentido amplo de שי ִא em Jó 38.26; cf. KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,

1994-2001, p. 48.

575GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 122-3, 342: “O infinitivo absoluto ocorre com mais

frequência em relação imediata com o verbo finito da mesma raiz para, de várias maneiras, definir de modo mais acurado ou reforçar a ideia do verbo [...] O infinitivo usado antes do verbo para reforçar a ideia verbal, i.e., enfatizar dessa forma ou a certeza (especialmente no caso de ameaças) ou a eficácia e natureza completa de um evento” (p. 342, itálico do original). No Salmo 49.8a, o infinitivo absoluto enfatiza a certeza de que o homem é incapaz de redimir outra pessoa (cf. também PINTO, 1998, p. 79). CHISHOLM, 2016, p. 93 confirma esse uso enfático do infinitivo absoluto exposto por Gesenius e a presença dele antes do verbo finito.

576WEISER, 1994, p. 287.

577O HALOT alista todas as ocorrências em um total de 13 versículos (ver KOEHLER; BAUMGARTNER;

21.8; Lv 19.20; Dt 7.8; Sl 119.134; Is 35.10),578 o substantivo רֶפֹכ envolve o pagamento de algo com o propósito de propiciação ou expiação a fim de evitar um juízo ou morte iminentes (Êx 21.30; 30.12 com 2Sm 24; Nm 35.31,32).579 Como Goldingay ressaltou, “um discurso sobre redenção muitas vezes perde suas conotações monetárias, mas aqui elas são importantes. Os que atacam o salmista acham que podem comprar o futuro na vida e uma velhice feliz.”580

A lei hebraica previa casos em que a vida humana poderia ser resgatada da morte; uma delas era quando um homem, por descuido, deixava seu boi solto e este feria mortalmente uma pessoa que não era o proprietário do animal (Êx 21.28-32).581 Caso o dono soubesse do histórico violento de seu boi e não tivesse sido cuidadoso o suficiente para prendê-lo, tanto o animal quanto seu possuidor deveriam ser mortos (v. 28,29). No entanto, se um parente exigisse um resgate (רֶפֹכ) pela vítima fatal da agressão,582 o dono do boi pagaria essa indenização e não receberia a execução de morte (v. 30-32).583 O ֶַפֹכר substituía a “vida” (שֶפֶנ) do proprietário, funcionando como solução alternativa e atenuante para a pena capital.

Em Êxodo 21.30, o substantivo pe significa a quantia que substitui a punição violenta da pena de morte em um contexto de procedimento legal. [...] [a passagem apresenta] a suavização de uma punição severa.584

Entretanto, nem sempre havia a possibilidade do רֶפֹכ, como em um homicídio premeditado (Nm 35.31).585 O texto ordena aos israelitas: “Não tomeis רֶפֹכ pela vida [שֶפֶנ] do assassino”. Portanto, em Números 35.31, רֶפֹכ basicamente tem o sentido de um substituto sacrificial ou monetário que expia a culpa pela vida humana cujo sangue foi derramado.586 O código legal proibia o uso de רֶפֹכ em homicídio doloso, distinguindo esse tipo de crime daquele descrito em Êxodo 21; a única solução para o problema apresentado em Números

578YARON, 1960, p. 84-5. 579

SPEISER, 1958, p. 21-2.

580GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 [edição kindle]. 581STUART, 2006. p. 495-6.

582Deve-se ressaltar aqui que o “resgate” (רֶפֹכ) era uma possível solução para o problema do assassinato

cometido pelo animal, não era automática nem compulsória: “[o resgate] era uma possibilidade se a família da vítima livremente consentisse com ele. A família ofendida poderia preferir essa solução não sangrenta a solução da pena de morte” (SCHENKER, 1982, p. 33).

583NORMAN, Stan. Redeem, redemption, redeemer, in: BRAND, p. 1370; ver GOLDINGAY, 2006, Psalm 49

[edição kindle]; KRAUS, 1993, p. 736.

584SCHENKER, 1982, p. 37.

585ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 675. Walter Kaiser observa que o único crime merecedor de pena

de morte que não poderia ser atenuado por uma pena de morte era o assassinato doloso (KAISER, 2016, p. 168).

586

35.31 era a execução sumária do assassino: “mas certamente morrerá”.587

A pena capital para assassinos intencionais era uma demanda da antiga lei do talião, que é refletida em Gênesis 9.6: “O que derrama sangue do ser humano por meio do588

ser humano o sangue dele [do assassino] será derramado”.589

Portanto, ao seguir o mesmo princípio de Gênesis 9.6, a passagem de Números 35.31 declara que “só a morte de um homem podia fazer expiação pela morte”590

causada intencionalmente por ele.

Isto posto, a comparação entre os dois textos da legislação israelita revela que a “morte” de todo ser humano não tem um “pagamento expiatório” (רֶפֹכ) (cf. Nm 35.31), como no caso de Êxodo 21.30, para ser dado “a Deus” (םיִהלֹאֵל) (v. 8);591 ao contrário, todos, tanto o “sábio” quanto o “insolente”, “morrerão” (Sl 49.11).592

O versículo 8b, portanto, parece tratar a morte de todos os seres humanos como punição capital pela culpa que a humanidade carrega perante ’E .593 É provável que haja uma relação deste trecho com o relato de Gênesis 2 e 3, que descreve a morte como a punição contra os seres humanos ao comerem do fruto proibido. Existe semelhança entre a construção sintática da descrição da punição de Gênesis 2.17: “certamente morrerás” (תוּמ ָתַתוֹמ), e a da sentença de Números 35.31: “certamente será morto” (תָמוּיַתוֹמ). A morte é a sentença que todo ser humano experimentará um dia, e não é possível dar a Deus (םיִהלֹאֵּלַ ן ֵּתִי־אלֹ) um “pagamento expiatório” (רֶפֹכ) (Sl 49.8b), pois “não existe uma taxa ao alcance do homem”.594

O versículo 9 realça ainda mais o contexto legal como pano de fundo para este

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