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Coesão e Aspectos Retóricos do Salmo 49

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1. ANÁLISE TEXTUAL E LITERÁRIA DO SALMO 49

1.3. Análise Literária do Salmo 49

1.3.3. Coesão e Aspectos Retóricos do Salmo 49

Nesta última parte, pretendemos analisar o estilo e a arte retórica do autor do Salmo 49 destacando aspectos literários na construção de seu texto que o tornam mais claro e vívido para o leitor. Northrop Frye ajuda na compreensão do que esta pesquisa entender por arte retórica:

A retórica, desde o início, significou duas coisas: discurso ornamental e discurso persuasivo. Essas duas coisas parecem psicologicamente opostas uma à outra, como o desejo por ornamento é essencialmente desinteressado e o desejo por persuadir essencialmente o oposto. De fato, a retórica ornamental é inseparável da literatura, ou o que chamamos de estrutura verbal poética, cuja existência é autojustificada. A retórica persuasiva é literatura aplicada, ou o uso da arte literária para reforçar o poder de argumentação. A retórica ornamental atua sobre seus ouvintes estaticamente, levando-os a admirar sua própria beleza ou engenho; a retórica persuasiva procura levá-los cineticamente a um percurso de ação.346

Portanto, a crítica retórica implica a busca pelo entendimento dos recursos e estratégias literárias empregados no texto para persuadir ou influenciar o leitor e embelezar o texto, bem como a investigação dos objetivos ou efeitos gerais desses elementos retóricos.347

O fato de que os salmos são obras artísticas significa que eles revelam em plena medida e com maior frequência os elementos da forma artística, incluindo arranjos, esquema, unidade, harmonia e variação. Os salmistas eram imaginativos e criativos; eles consideravam seu trabalho artístico tão fundamental quanto seu conteúdo.348 Um dos elementos retóricos usados pelo salmista é a repetição, que serve para unificar as várias partes das duas estrofes.349 Alonso Schökel e Carniti350 notam o uso 346FRYE, 2014, p. 391-2. 347GORMAN, 2001, p. 13. 348ROSS, 1985, v. 1, p. 780. 349 RAABE, 1990, p. 86.

reiterado da raiz לשמ, que ocorre tanto na introdução quanto nos refrões do meio e do fim do salmo. O autor diz que inclinará seu ouvido “a uma parábola/comparação” (לָשָׁמְל) (v. 5), então, afirma que o “ser humano em esplendor” (רָקיִב)351

“é semelhante a” (ל ַשׁ ְמִנ) aos animais em dois aspectos: não “permanece” (ןיִלָי) (v. 13) nem “entende” (ןיִבָי) (v. 21). “Como se dissesse: vou propor uma comparação ou semelhança [...]: A que se assemelha o homem rico? — Parece-se com os animais que perecem”352

e não têm entendimento.

Chama a atenção a repetição da raiz verbal א ֵרָי (“temer”), que aparece na pergunta retórica do versículo 6: “Por que temerei...”, a qual é respondida em tom parenético no v. 17: “Não temas...”.353

A repetição também ocorre com a raiz verbal האָ ָר. Afirma-se que o homem é inefetivo em sua tentativa de dar a Deus o “substituto expiatório” (v. 8) para que “não veja a sepultura” (תַח ָשַהַ ה ֶא ְרִיַ אלֹ) (v. 10). De forma irônica, os ímpios ricos “não verão a luz” (ַ אלֹ רוֹא־וּא ְרִי) (v. 20), uma imagem para o cadáver dentro da sepultura.

O uso de “geração” (רוֹד) é muito significativo, pois o rico pensa que suas mansões permanecerão “de geração em geração” (רֹדָוַרֹדְל) (v. 12) até descobrir que suas posses não o poderão acompanhar quando for ter “com a geração de seus pais” (וי ָתוֹב ֲאַרוֹד־דַע) (v. 20). “Em vez de desfrutar de prosperidade perpétua, eles serão enviados para o mesmo destino não invejável de seus predecessores”.354

Outro uso proposital de repetição ocorre entre os versículos 8 e 16, em que ambos apresentam duas declarações básicas sobre a redenção com a mesma raiz verbal הדפ: “Um ser humano não redimirá de modo algum [ה ֶדְפִיַהֹדָפ־אלֹ] [seu] irmão” (v. 8), “mas Deus redimirá [ה ֶדְפִי] minha vida do poder do Sheol” (v. 16).355

O Salmo 49 também apresenta vários campos semânticos que estão

interrelacionados para costurar a coesão e transmitir a ênfase da mensagem do autor.356 Os substantivos para designar os conceitos de riqueza e morte ocorrem quatorze vezes ao longo da parte principal do salmo (v. 6-21), sete ocorrências dos termos do primeiro campo semântico, e seis ocorrências do segundo. As formas nominais para indicar riqueza são: ר ֶשֹע (v. 7b), לִיַח (v. 7a, 11c), דוֹבָכ (v. 17b, 18b), ר ָקְי (v. 13a, 21a). Os substantivos que descrevem a

350ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 669-70.

351Ver o uso de ר ָקְי em Ester 1.4; 6.3 (cf. GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 [edição kindle]). 352

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 670.

353ESTES, 2004, p. 59-60. 354ESTES, 2004, p. 60.

355GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49. 356

morte são: תֶו ָמ (v. 15b), לוֹא ְש (v. 15a, d, 16b), תַח ַש (v. 10b) e a cadeia de construto וי ָתוֹב ֲאַרוֹד (v. 20a).357

Outro campo semântico que também é bastante ressaltado em Salmo 49 é o da sabedoria, fazendo uso também do contraste com termos relacionados a seu oposto, a tolice. Logo na convocação de abertura do cântico (v. 2-5), quatro termos relacionados à sabedoria são empregados: הָמְכָח (“sabedoria”),358 הָנוּב ְת (“entendimento”),359 ל ָש ָמ (“provérbio”),360 הָדיִח (“enigma”).361 “Minha boca falará sabedoria, e a meditação do meu coração [transmitirá]

entendimento. Inclinarei a um provérbio os meus ouvidos, exporei com a cítara meu enigma.”

(v. 4-5). No versículo 11, os dois grupos que representam os polos opostos da sabedoria e da insensatez, ִַמָכֲחםי (“sábios”) versus רַעַַבָוַליִסְכ (“insensato e bruto”), vivenciam uma realidade comum à humanidade: “morrem ... são destruídos”.362 Por fim, o indivíduo que “não entende” (ןיִבָיַאלְֹו) e “é semelhante aos animais” (v. 21) estabelece um contraste com aqueles que dão ouvidos ao “entendimento” (תוֹנוּב ְת) (v. 4) proclamado no início do salmo e exposto ao longo do cântico.363

Outro elemento retórico bem empregado pelo autor do Salmo 49 é a assonância. Ocorre um jogo de palavras com assonância entre ם ָדאָ (“ser humano”) e ה ָמ ָד ֲא (“terra”). O primeiro termo é usado nos versículos 3, 13, 21 associando todas as pessoas por sua humanidade em comum. Os ricos dão “seus nomes às terras [תוֹמ ָד ֲא]” com a esperança de que durarão “para sempre” (v. 12), mas o “ser humano [ם ָדאָ] em esplendor não permanece” (v. 13).

A assonância também é vista entre o início do v. 8 e o do v. 16. No versículo 16, o autor começa com uma partícula de ênfase ךְ ַא (a , “mas [certamente]”)364 que remete ao som da palavra inicial חאָ ( , “irmão”) do versículo 8, ambas introduzindo duas linhas que fazem declarações com o termo הדפ e tratam, respectivamente, da impossibilidade ou possibilidade de redenção do Sheol (ver acima).365

357RAABE, 1990, p. 87. 358

Cf. o uso comum de ה ָמְכָח em textos sapienciais, e.g., Pv 1.20; 9.1; 24.7.

359Cf. as ocorrências de ַָנוּב ְתה em Jó 12.12; 26.12; Pv 5.1. 360Cf. ל ָש ָמ em Pv 10.1; 25.1; Ec 12.9.

361Cf. ה ָדיִח em Pv 1.6; Sl 78.2 362

ESTES, 2004, p. 61-2.

363Observe-se o comentário de CRAIGIE, 1983, p. 360.

364KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45; KEIL; DELITZSCH, 1996, v.

5, p. 353.

365

Alguns autores tentaram reconstruir o texto do versículo 21, como fizeram escribas de alguns manuscritos de textos hebraicos,366 alterando ןיִבָי (“entende”) para ןיִלָי (“permanece”), a fim de torná-lo idêntico ao versículo 13. No entanto, essa reconstrução destrói a assonância pretendida pelo autor entre ןיִבָי e ןיִלָי, que fornece as características complementares “[d]os que confiam em suas riquezas”:367

tal “ser humano” [ם ָדאָ] “não permanece” (ןיִלָי־לַב) e “não entende” (ןיִבָיַאלְֹו); nesses dois aspectos descritos por assonância, o tolo “é como os animais que perecem” (v. 13, 21).

Por ser um texto poético antigo, o Salmo 49 está repleto de imagens. Como Leland Ryken observou, “o princípio mais simples da linguagem poética é, talvez, o mais importante: poetas pensam em imagem”, pois enquanto “a prosa expositiva usa a sentença ou parágrafo como sua unidade básica, e a narrativa, o episódio ou a cena, a unidade básica da poesia é a imagem individual ou figura de linguagem”.368

O uso de símile369 está presente nos dois refrões do Salmo 49 (v. 13,21), em que o “ser humano em esplendor” (רָקיִבַ ם ָדאְָו) é comparado explicitamente “aos animais” (ַ לַשְמִנ תוֹמֵהְבַכ), cujo termo hebraico pode indicar tanto “animais selvagens” quanto “animais domésticos”,370

mas neste hino é definido especificamente como um “rebanho” (ןאֹצ) de ovelhas em outra símile que ocorre no versículo 15: “Como rebanho dirigem-se para o Sheol, Morte os pastoreará” ( ֵַע ְרִיַ תֶו ָמם וּתַַשַ לוֹאְשִלַןאֹצַכ). Os símiles estabelecem uma coesão e esclarecem o tipo de animal a que o salmista se refere.

Outra maneira figurada de falar das condições de indivíduos e do próprio ’E ao lidarem com a morte dos humanos ocorre pelo uso de termos cúltico-comerciais como a raiz verbal הדפ (“redimir”, “resgatar”) e o substantivo ןוֹי ְדִפ (“resgate”, “preço de redenção”) (v. 8- 9,16), empregados geralmente para se referir ao resgate cultual tanto de animais quanto dos filhos mais velhos dos israelitas (Êx 13.13,15; 34.20; Nm 18.15), em que um valor monetário poderia ser usado para esse fim (Lv 27.27; Nm 18.15b).371 O emprego de רֶפֹכ (“substituto ַ expiatório”, v. 8), que provém do contexto judicial das leis civis para indicar uma reparação

366

Ver a nota do aparato crítico do versículo 21 na Biblia Hebraica Stuttgartensia (ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131)

367ESTES, 2004, p. 69-70. 368RYKEN, 1992, p. 159-62. 369

Entende-se por símile uma figura de comparação explícita, que usa expressões “como”, “é semelhante a”, etc. Ver CORLEY; LEMKE; LOVEJOY, 2002. p. 26.

370KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 111-2.

371ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672-3; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON;

(Êx 21.30; Nm 35.31),372 também é usado como imagem para tratar da relação dos seres humanos com a morte.

Bortolini também observa o uso de “imagens e palavras fortes do âmbito do campo e da terra” para comunicar a mensagem do autor, listando uma série de termos: “cova (10), [...] a besta que morre (13,21), caminho (14), rebanho [...], a figura da nobreza que murcha como erva (15)...”.373

Em conclusão de nossa análise, podemos afirmar que o Salmo 49 fez parte da produção literária dos mestres do antigo Israel, tanto por sua linguagem sapiencial (“sabedoria”, “entendimento”, “parábola”, etc.), quanto por elementos formais da literatura (e.g., o chamado inicial; trechos em primeira pessoa) e por temas que aparecem nele (retribuição e riqueza e pobreza).

A melhor estrutura para estudar o salmo é aquela que mantém duas principais estrofes, que seguem a introdução e são seguidas por dois refrões semelhantes, mas não idênticos. Por fim, percebe-se uma ênfase na repetição de certos termos com o propósito de chamar a atenção para sentimentos (temor), comparações (“como os animais”) e para retratar, com certa ironia, a infeliz sina dos que confiam em riquezas transitórias ao serem incapazes de alterar o curso final da vida humana: a morte.

372MAAS, F., רפכ, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 626. 373

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