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Epígrafe do salmo (v 1)

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2. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO SALMO 49

2.1. Epígrafe do salmo (v 1)

49.1Para o dirigente de música, um salmo concernente aos coraítas.

O Salmo 49 inicia com a informação de que foi composto ַַחֵצַנ ְמַל (“para o dirigente de música”; “para o mestre de música” [NVI]; ou “ao regente do coro” [A21]). Segundo o BDB, “[a expressão] ַַחֵּצַנְמַל, em títulos de salmos, tem, provavelmente, o sentido semelhante a

dirigente de música ou regente de coro”.374

O último vocábulo (רוֹמְז ִמ) é uma designação bastante comum nos títulos da salmódia israelita e também aparece ao final da epígrafe em outros salmos dos filhos de Corá (Sl 47.1; 84.1; 85.1; 87.1).375 O sentido básico de רוֹמְז ִמ é o de “salmo”,376 mas parece indicar “uma música cantada com o acompanhamento de um instrumento musical” (cf. Sl 33.2; 71.22; Sl 98.5; 147.7; 149.3).377 Geralmente, a LXX traduz essa palavra hebraica por ψα ς (“cântico de louvor”, “salmo”, “música tocada com um instrumento”).378 Hans-Joachim Kraus explica que a diferença básica entre רוֹמְז ִמ e רי ִש (“canção”;379 outro termo bastante comum nos títulos dos salmos) é que o segundo “designava provavelmente de modo original e dominante a

374

Ver BROWN.; DRIVER.; BRIGGS, 1977, p. 664. Ver apoio para essa compreensão do termo em HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS, 2003, p. 562.

375CLINES, 1998, v. 4 p. 209.

376KIRST et al., 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189; SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição

eletrônica); KIDNER, 1980, p. 51.

377KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, p. 566. 378LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete ψα ς (edição eletrônica). 379BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 1010.

execução vocal e recitada de um salmo”, ao passo que o primeiro indicava, “antes de tudo, o canto com acompanhamento de instrumentos”.380

A expressão hebraica ח ַרַֹק־יֵנְבִל pode ser entendida tanto como uma indicação de que o salmo foi escrito por um dos descendentes de Corá quanto que ele foi escrito para ser cantado por esses levitas.381 A grande problemática repousa na definição do uso semântico da preposição ְַל,382 que pode ser traduzida de diversos modos, como “para”, “de”, “concernente a”, “em relação a” ou “dedicado a”.383

Wilhelm Gesenius entendia o uso do ְַל nos títulos dos salmos como um lamed

auctoris, ou seja, um indicativo de autoria, por exemplo, em Salmo 3.1: דִו ָדְלַ רומְז ִמ “salmo pertencente a Davi como o autor”, com base em línguas semíticas (em especial, o árabe).384

No entanto, o uso da preposição le em ugarítico, como nos ciclos de Baal, por exemplo, na expressão b‘ , não indica autoria, mas a tabuleta “pertencente a[os textos] de Baal” ou o texto que fala “a respeito de Baal”.385 Clines classifica o uso dessa preposição nos salmos com o

sentido de posse, com as traduções “de”, “pertencente a”, “concernente a”, em vez de definir

se a ideia é de origem ou destinatário (e.g., “de Davi” ou “para o mestre de música”).386

Em usos específicos em títulos de cânticos ou poemas da Bíblia Hebraica, a preposição ְַל parece ter o sentido de origem ou autoria (Hc 3.1: “oração de Habacuque” em resposta à revelação divina dos caps. 1—2; cf. Is 38.9; Sl 18.1). Em outros casos pode indicar a quem o salmo se destina ou de qual coleção faz parte (“para o / da coleção do mestre de música” em Sl 4.1; 11.1), bem como o momento em que deveria ser cantado ou lido (“para [o

uso n]o dia de sábado” (Sl 92.1).

Na verdade, é muito provável que os coraítas não apenas fossem responsáveis pelo louvor em Israel (“para os coraítas”) (2Cr 20.19), mas também compusessem músicas (“dos coraítas”), como os Salmos 42—49; 84—85; 87—88.387 Hemã talvez seja representativo dessa situação: ele era líder dos coraítas, dirigindo o canto no santuário de YHWH (1Cr 6.31-

380KRAUS, 1993, p. 29.

381Ver a discussão sobre o lamed auctoris em CRAIGIE, 1983, p. 33-35. 382

ALTER, Robert, Salmos, in: ALTER; KERMODE, 1997, p. 264; GOULDER, 1982, p. 2.

383FRANCISCO, Edson F. Antigo Testamento Interlinear: os Escritos, v. 4, Salmo 3.1: preposição lamed (no

prelo); BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 510-517; VANGEMEREN, 1991. v. 5., p. 19. KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2000, p. 507-510.

384GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 419-20, §129.c. 385CRAIGIE, 1983, p. 34; ver WEISER, 1994, p. 64

386CLINES,1998, v. 4, p. 479-80, sentido 1. 387BUSS, 1963, p. 382-92.

38, esp. v. 33,37; 15.17,19) ao mesmo tempo que aparece como autor do Salmo 88388 (ַן ָמיֵהְל ִַח ָרְזֶאָה

י – de [lamed auctoris] Hemã, o ezraíta), que tem a indicação ח ַרֹק־יֵנְבִל (“concernente aos filhos de Corá”).

Embora seja provável que canções pertencentes aos coraítas fossem compostas por levitas relacionados ao templo e à adoração,389 como parece ser o caso do Salmo 49,390 talvez a questão central não seja definir o sentido exato de ְַל, mas vê-lo como indicador de que cada salmo com o título ח ַרֹק־יֵנְבִל (“concernente aos filhos de Corá”) pertencia a uma coleção atribuída aos “coraítas” antes de ser inserida no Saltério mais amplo.391

“Mais do que qualquer outro grupo, o pessoal ligado ao serviço do culto [...] tinha o maior interesse na coleção, conservação [...] do antigo patrimônio dos cânticos”.392

Quem eram os coraítas? A tradição bíblica os retrata como descendentes de Corá, antigo líder de uma família levítica que teria se revoltado contra a liderança de Israel no deserto.393 Corá ben Isar era um homem rico, primo de Moisés e fazia parte do clã dos Coatitas (Êx 6.18-21; Nm 27.58-59; 1Cr 6.18-22[33-37]; 32.12-13). Ele se rebelou contra Moisés e Arão com alguns rubenitas (Datã, Abirão e Om) e mais 250 levitas. Datã e Abirão foram tragados vivos com suas famílias pela terra que se abriu e desceram ao Sheol (Nm 16.30-33). Isso também ocorreu com Corá, seus bens e os homens que o serviam.

No entanto, o texto de Números afirma que os filhos de Corá foram poupados394 por YHWH e redimidos do Sheol: “... Mas os filhos de Corá não morreram” (Nm 26.10,11).395 O evento foi tão marcante na vida dessa família que ela o guardou na memória ao atribuir nomes a seus descendentes que recordavam o evento, conforme indicado por David C. Mitchell:

Elcana (“Aquele a quem Deus redimiu”, ou mesmo “Deus Zeloso”, Êx 6.24; 1Cr 6.8-12[23-27]; cf. v. 19-22[34-37]), Abiasafe (“Pai do Ajuntamento” ou mesmo paronomasticamente: “Ele recolheu meu pai", Êx. 6.24; 1Cr 6.22 [37]). E os seus descendentes eram Naate (“Afundado” [...] 1Cr 6.11[26],19[34]); Zufe (“Submergido”, 1Cr 6.20 [35]); Aimote (“Irmão da morte”, 1Cr 6.10[25],20 [35] ); e Taate (“Mundo inferior”, 1Cr 6.9[24],22[37]).396

388KIDNER, 1980, p. 48-9; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 77; LONGMAN III, 2014, Introduction

2a (edição kindle).

389GOULDER, 1982, p. 2; BUSS, 1963, p. 382-92.

390Ver análise no cap. 3 sobre a relação entre o templo e os sábios no antigo Israel. 391MITCHELL, 2006, p. 368. 392WEISER, 1994, p. 65. 393 SARNA, 1993b, p. 37. 394KIDNER, 1980, p. 48. 395MENDONÇA, 2012, p. 26-8. 396MITCHELL, 2006, p. 369-70, 372-3.

A importância do Sheol e os horrores da morte assumiram grande ênfase em vários salmos dos coraítas:397 “e a minha vida se aproxima do Sheol” (Sl 88.4[3]); “atirado entre os

mortos; como os feridos de morte que jazem na sepultura” (88.6[5], ARA); “e me livraste a

vida do mais profundo poder do Sheol” (86.13); “para nos esmagares onde vivem os chacais; e nos envolveres com as sombras da morte” (44.20[19]).398 O Salmo 49, que é o foco desta pesquisa, enfatiza ainda mais o tema da morte, do Sheol e do livramento deste:

Certamente, verá que os sábios morrem, insensato e bruto juntos são destruídos. (v.11) Mas um ser humano em esplendor não permanece, é semelhante aos animais [que] perecem. (v. 13) Como rebanho dirigem-se para o Sheol, Morte os pastoreará. De manhã, os justos dominarão sobre eles. O Sheol

engolirá suas formas. (v. 15)

Mas Deus redimirá minha vida do poder do Sheol; certamente me tomará. (v. 16)

O cronista apresenta informações importantes sobre esse grupo de levitas. Eles são retratados como porteiros do santuário (1Cr 9.19; 26.19), responsáveis pelo preparo de bolos das ofertas de sacrifício (1Cr 9.31) e por entoar louvores na casa de Deus, conduzindo o louvor da congregação de Israel sob a liderança de Hemã (1Cr 6.31-38; 2Cr 20.19).399

Embora se questione o quadro histórico apresentado pelo autor bíblico como uma projeção da época do segundo templo sobre um período anterior, os dados parecem confirmar a atuação desse grupo no período pré-exílico. Em primeiro lugar, o livro de Esdras-Neemias, ao relatar os grupos levíticos que voltaram do cativeiro, menciona apenas os asafitas (Ed 2.41; Ne 7.44; ), que também atuaram na cerimônia de fundação do templo pós-exílico (Ed 3.10). No entanto, Hemã, Etã e os coraítas, personagens e grupos levíticos que aparecem em Crônicas (1Cr 6.31-38; 9.19,31; 15.17,19; 26.19; 2Cr 20.19) não recebem menção alguma. Se eles eram levitas atuantes no segundo templo, por que não existe referência alguma a eles em outros textos pós-exílicos? Por que o cronista teria inventado grupos leviticos que nunca existiram?400

O segundo fator que corrobora a atuação do coraítas na Judá pré-exílica foi a descoberta do templo em uma fortaleza em Tel-Arad, no sul de Judá, com estrutura arquitetônica semelhante à de Jerusalém.401 No estrato VIII, que remonta ao século VIII A.E.C. e apresenta indícios da destruição causada por Senaqueribe, rei da Assíria, foram 397MENDONÇA, 2012, p. 28-9. 398MITCHELL, 2006, p. 374-6. 399KRAUS, 1993; KIDNER, 1980, p. 48. 400SARNA, 1993a, p. 21-2. 401 SIQUEIRA, 2012, p. 44-51.

encontrados oito óstracos, um deles fazendo referência a Pasur, personagem sacerdotal referido em 1Crônicas 9.11. Nesse mesmo nível da escavação, descobriu-se na base de um vaso polido referência aos pagamentos ou às porções de alguns grupos, dentre eles os “filhos de Corá”.402

Segundo o relato arqueológico, o templo desse estrato continha também um altar demolido, que pode remontar à reforma de Ezequias — destruição de todos os altares concorrentes em Judá (2Cr 32.11-12; 2Rs 18.22; Is 36.7) e a eventual transposição de levitas e sacerdotes para o templo de Jerusalém (2Cr 29.1-17).403

Vários estudiosos têm reconhecido a antiguidade dos salmos dos filhos de Corá,404 em especial os capítulos 42—49, por ser uma coleção menor dentro de outra coleção do livro de Salmos, a coleção Elohista.405 Se os coraítas já estavam em Arad, no sul do Judá no século VIII A.E.C., a tese de que eles serviam no santuário de Dã, ao norte, e depois migraram para o sul após a destruição de Samaria é bastante improvável.406 A lista antiga de Números 26.58 que cita os coraítas juntamente com outros grupos da região de Judá parece reforçar a tese de que eles atuavam no Reino do Sul.407 A importância de Jerusalém e do culto nos salmos dos coraítas (46.5,6; 48.3,4,9; 87.5) e a saudade do templo sentida pelo levita exilado (Sl 42.1-4) reforçam essa tese.408 Portanto, parece adequado propor a origem do Salmo 49 nesse ambiente cultual do sul de Judá

2.2. Introdução: convocação sapiencial (v. 2-5)

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