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4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1 Vivificação da morte e mortificação da vida

4.1.10 Abertura ao outro: gratificação e sofrimento em relação

Nas falas dos profissionais, foi possível compreender como se dá o estabelecimento da relação destes com os pacientes em finitude, destacando-se as noções de gratificação e de sofrimento. Cabe-nos esmiuçar, no entanto, de que modo essas duas perspectivas conflitantes podem constituir os relacionamentos entre esses atores.

Os escritos de Lévinas propõem pensar a abertura ao outro a partir da hospitalidade e do acolhimento. Para Derrida (2008), o acolhimento ao outro expressa simultaneamente passividade e atividade, pois situa a relação com o outro fora as dicotomias de passividade e atividade, a priori e a posteriori. O acolhimento em Lévinas “dá e recebe outra coisa, mais do que eu e mais que uma outra coisa” (DERRIDA, 2008, p.35), pois diz respeito a receber o outro para além da capacidade do eu, indicando o poder do hóspede sobre o hospedeiro, de um eu que é hóspede na própria casa, pois o lugar já é do outro antes mesmo de ele chegar.

Florzinha destaca as nuances da atuação com os pacientes em finitude: ‘Apesar de muito sofrido, muito ruim, foi bom para mim, eu senti que isso foi bom para mim; mas não estou bem, passei o outro dia muito mal. Estou me trabalhando para conseguir não ficar tão mal, mas mesmo assim é muito difícil. Mas nesses dias fiquei mais confortável por que teve outro óbito que não consegui acompanhar, não consegui mesmo, não tinha estrutura, mas depois fiquei sentindo que eu precisava daquele fechamento, nesse eu consegui. Eu consegui estar perto e fiz as coisas que faziam sentido para mim, para eu fazer nesse momento. Poder proporcionar paz e conforto. Foi bom para mim’.

Para a profissional, o fato de ter acompanhado o óbito de um paciente foi bastante sofrido a ponto de causar-lhe intenso pesar. Apesar disso, ela considera que foi um momento muito bom para si, pois representou um fechamento e possibilitou que ela proporcionasse paz e conforto ao paciente e aos familiares dele. Lamenta não ter conseguido executar tais ações em um caso anterior e se alegra de ter realizado esse suporte com o paciente em questão. O que chama a atenção na fala da paciente é uso da expressão: ‘Apesar de muito sofrido, muito ruim, foi bom para mim’, pois a mesma põe em diálogo a perspectiva ruim e boa do contato com os pacientes em finitude. Tal significado se repetiu nas falas de outras profissionais:

Valente: ‘Mas é muito bom, é muito sofrido, mas é muito bom. O pessoal trabalha aqui por que gosta mesmo. E lá fora também, eu tenho pouco conhecimento, mas tem gente lá

em cima que trabalha na oncologia, você vê o carinho, o cuidado, a dedicação... às vezes não é aquela pessoa mais mansa, mas que briga para fazer um exame...o empenho. Todo mundo trabalha nesse espírito de ajudar o paciente’.

Mesmo afirmando que o trabalho é bastante sofrido, a ponto de os profissionais só permanecerem no serviço devido ao fato de gostarem muito, Valente destaca que a atuação com os pacientes é boa e que percebe o carinho, o cuidado e a dedicação de todos da equipe. Decorrente dessas falas, cabe-nos pensar no jogo estabelecido entre o ‘sofrido’ e o ‘bom’ trazido pelas profissionais. Como algo pode ser sofrido e bom ao mesmo tempo? O que acarretaria sofrimento? O que consegue transpor tal questão para se tornar bom?

De acordo com Kovásc (2010, p.424), “trabalhar na área de saúde, como cuidador, apresenta de imediato a seguinte constatação: a dor e a morte estão presentes no seu cotidiano” acarretando tristeza, frustração e sofrimento, e exigindo, desta forma, que o profissional encontre e, ou, crie recursos para lidar efetivamente com tais situações. Para Chagas e Abrahão (2017, p.860) no processo de cuidar das pessoas na morte, os profissionais, “de forma inesperada, expressam vida, vivências, apostas, desejos, sofrimentos” deles mesmos e dos outros. Os autores ressaltam que esses sentimentos ocorrem de forma inesperada, pois, a priori, não deveriam existir e podem ser considerados como causadores de transtornos nos serviços. Demarca-se, segundo Lima e Cavalcante (2016), que o trato com a morte dos pacientes ocasiona sentimentos de bastante pesar nos profissionais, mas, alguns momentos, estes conseguem transpor tal sofrimento para cuidarem e empenharem-se em promover qualidade de vida e dignidade de morte aos pacientes, orgulhando-se dos seus feitos.

Em uma perspectiva derridiana a chance da ética tem lugar na hospitalidade. Existe nesta, porém, a possibilidade de violência, na qual o acolhimento ao outro, ao estrangeiro, seria também dar boas-vindas e permitir a entrada de algo inesperado e desconhecido que tem poder de habitar na minha casa, por ser dono dela. “Esta é a primeiríssima abertura da minha relação com o Outro: abrir meu espaço, meu lar – minha casa, minha língua, minha cultura, minha Nação, meu Estado e eu mesmo” (BENNINGTON, 2004c, p.245-246). Para Derrida (2008) o acolhimento ao outro expressa simultaneamente passividade e atividade, situa a relação com o outro fora as dicotomias de passividade e atividade, a priori e a posteriori, pois essa abertura não acontece de maneira autônoma e preparada, “porque já está aberto, está aberto antes mesmo de eu tomar uma decisão sobre abrir ou não; então, tenho de manter aberta a abertura ou tentar mantê-la aberta incondicionalmente” (BENNINGTON, 2004c, p.246).

Essa abertura incondicional torna-se algo apavorante, pois permite que qualquer um chegue, e quem chega tem o total poder de me violentar e me destruir. Derrida, de acordo com

a entrevista concedida à Bennington (2004c), ressalta que estarmos abertos para o melhor e para o pior do outro. Deste modo, os profissionais do hospital, ao se abrirem ao cuidado, estão vulneráveis à chegada do outro em pleno sofrimento e isso pode feri-los, machucá-los e produzir aflição, dor e tristeza.

“Para a Princesa Jujuba, acompanhar esse processo é pesado, mas é isso que dá razão para o trabalho, pois sabe que tudo foi feito com muito cuidado, com muito carinho, muito zelo e muita dedicação e que isso a fortalece para continuar na atuação”.

Florzinha destaca: ‘Eu consegui participar [do acompanhamento de um óbito], fico toda arrepiada, fico muito emocionada. Eu já estava indo embora, não era mais a hora do meu plantão, mas a mãe pediu pra que eu ficasse e eu....fiquei (respirou fundo). Eu sabia que ia ser muito difícil, mas eu tinha que participar, a mãe tinha me pedido. E eu fiquei feliz por que consegui ajudar, fazer com que os pais se despedissem dele’.

A profissional foi convocada a participar de um momento ímpar na história da família atendida. De acordo com a concepção levinasiana, o outro nos convoca e a única resposta possível é EIS-ME AQUI. Para Derrida (2008), a resposta destinada ao outro deve ser emitida através de um grau máximo de responsabilidade e independente das características que ele contém: “(...) ele precisa [ser] exatamente acolhido, e sobretudo de maneira imediata, urgente, sem esperar, como se as qualidades, atributos, propriedades reais (...) retardavam, mediatizavam ou comprometiam a pureza desse acolhimento” (DERRIDA, 2008, p.131).

No caso em questão, o outro acolhido foi uma família na iminência de perder um filho e um paciente nos momentos finais de vida. Tais situações se mostram bastante complexas e trazem uma intensa carga de sofrimento, porém, como destacado pelos autores, não há a possibilidade de fugir a tal convocação e não há a possibilidade de escolher ou de eleger quem é esse outro, demandando um acolhimento puro, verdadeiro e integral, no qual a profissional por inteiro acolhe inteiramente o paciente e sua família.

Algo que se destacou na fala dos participantes da pesquisa foi o sentimento de gratidão e gratificação em poder acompanhar os pacientes no momento da finitude.

Lindinha: ‘Olha, eu acho um pouco doloroso, tenho a dúvida, mas ao mesmo tempo eu acho assim gratificante, pelo fato de eu me achar com a graça de Deus, de eu ter uma cabeça de administrar a situação e ajudar as famílias, sabe? Dar aquele suporte em todos os momentos, então eu acho importante assim a gente fazer parte de uma equipe (...) e elas sabem que pode contar com a gente’.

Betty Boop: ‘Eu sinto muita gratificação. Apesar de ser muito doloroso quando a gente está do lado na maioria das vezes quando o paciente vem a óbito, mas é gratificante a

gente saber que naquele momento de maior necessidade, a gente conseguir dar conforto para a família, para a própria criança em termos de alívios de dores, então eu acho que a gratificação, você se sentir gratificado com o que faz, acho que é o mais importante’.

A dor e a gratificação e gratidão decorrente da atuação com crianças em finitude surgem em relação, e não em oposição, destacando que, apesar de ser um processo doloroso, é também um momento gratificante pelo fato da assistência proporcionar suporte às famílias e permitir uma morte mais digna aos pacientes. A gratificação refere-se ao ato ou efeito de gratificar, a uma recompensa voluntária que se dá além do pagamento, a um brinde ou gorjeta, o pagamento adicional não condicionado à obrigação contratual concedido a um funcionário como gratidão à sua colaboração ou como prêmio aos resultados do trabalho, uma recompensa a mais pelo trabalho. Para Verdade (2008, p.187) as “gratificações são relacionadas ao enriquecimento da subjetividade, principalmente à capacidade de assumir riscos, inerentes às mudanças mais estruturais, favorecendo a ampliação e diversificação do repertório de experiências”. Nesse sentido, os bons sentimentos em torno da assistência aos pacientes em finitude são algo para além da relação puramente salarial e laboral, demarcando a existência de uma gratificação de outra ordem, pois permitem a ampliação das experiências de atuação dos profissionais e aludem ao componente afetivo e emocional que compõe o fazer em saúde. Dimensões estas que, por serem tão importantes e cruciais, não devem ser esquecidas ou negligenciadas.

A gratidão, deste modo, diz respeito ao reconhecimento pelo bem que algo ou alguém nos fez, ao ato de ser grato, ao agradecimento por algo. Os profissionais sentem-se gratos aos pacientes pela oportunidade de efetivarem o cuidado a eles e de vivenciarem momentos emocionantes que marcam profundamente suas trajetórias de vida e de trabalho. Algo que, decerto, vai além do salário ou dos indicadores de produtividade e que produz um cuidado efetivo, afetivo e ético.

No entanto, a efetivação desse cuidado nem sempre acontece desse modo.

Valente: ‘Muitas vezes as pessoas falam “aff, não sei como tu consegue trabalhar ali” eu digo, “gente, a recompensa é tão grande que compensa todas as outras coisas, apaga tudo, passa por cima”, mas a gente sabe que tem gente que não consegue, já tiveram plantonistas excelentes aqui, enfermeiras que não conseguiram ficar, técnica mesmo que às vezes ou é mesmo da pessoa de sentimento ou às vezes não tem o cuidado suficiente, não tem aquela delicadeza suficiente’.

Para a profissional, a recompensa do trabalho ultrapassa os percalços e as dificuldades do cuidado. Relata que profissionais excelentes já passaram pela unidade, mas não

conseguiram permanecer, pois não tinham recursos para lidar com os sentimentos advindos da relação com os pacientes ou, apesar da excelência técnica ou de conduta, não tinha cuidado e delicadeza suficientes. Nessa fala, a profissional ressalta que nem todos os profissionais estão aptos ao trabalho e indica, deste modo, que a delicadeza e o cuidado são pré-requisitos para atuar na UTI, além da disponibilidade para elaborar o sofrimento.

Lisa Simpson: ‘Tem muito paciente comatoso, mas tem leito rotativo que entra paciente e morre, entra e morre, entra e morre’. Questionei como eles lidam com isso. ‘A gente não pensa muito nisso, automatiza, robotiza, não vincula muito’.

A profissional enfatiza o grande número de óbitos que ocorrem na unidade em curtos intervalos de tempo; porém retrata que a equipe não pensa muito nessa questão, não reflete sobre a vivência das suas práticas e efetiva suas atuações de maneira automatizada e robotizada, automatizam o serviço, robotizam-se, tornam-se robôs, mecânicos, cumprindo funções sem vinculação com os pacientes e sem possibilidade de troca de afetos. De acordo com Chagas e Abrahão (2017, p.861) “para cuidar inteiramente de uma pessoa, é preciso estar presente como pessoa inteira, é preciso ter desenvolvido e integrado, em si, as dimensões racional, sensitiva, afetiva e intuitiva”, demandando muito além de conhecimento técnico e convocando os profissionais a uma abertura ao outro. Percebe-se que, por vezes, há um distanciamento das equipes em relação aos pacientes e isso suscita-nos a discutir as oposições entre esses dois tipos de conduta: envolvimento, apesar do sofrimento, e distanciamento.

Nas falas dos profissionais destaca-se a utilização de um termo específico: ‘eu sinto muita gratificação, apesar de ser muito doloroso’, ‘eu acho um pouco doloroso, tenho a dúvida, mas ao mesmo tempo eu acho assim gratificante’, ‘acompanhar esse processo é pesado, mas é isso que dá razão para o trabalho’, ‘é muito sofrido, mas é muito bom’, ‘apesar de muito sofrido, muito ruim, foi bom para mim’. Os termos “mas” e “apesar” indicam oposição quando enfatizam que trabalhar com a morte não é algo comumente bom e gratificante e indicam também adição quando conseguem conceber a possibilidade de lidar com a morte para além do sofrimento, permitindo o acolhimento e o cuidado do outro.

Nos jogos de oposição estabelecidos nesse tópico não há como definir ou delimitar as características ou as condutas necessárias para que um profissional de saúde consiga cuidar de crianças e adolescentes em processo de finitude, porém destaca-se que aqueles que irrompem o uso do “mas” em suas falas e práticas, que conseguem pensar e atuar com a morte para além do sofrimento, dotando-a de sentido e tomando para si a responsabilidade de dignificar esse momento dão um passo a mais em relação aos que não o fazem. Mostrando que, de certa forma, deve-se investir em propostas que possibilitem essas reflexões e essas modificações de

pensamento para que haja mudanças no modo como os profissionais lidam com essa questão e, consequentemente, na assistência prestada aos pacientes.

No intento de complementar a discussão, tomemos o momento em que Derrida (2008) discorre sobre a hospitalidade e o acolhimento através do sim dado ao outro. Para o autor, a hospitalidade diz respeito a uma tensão em relação ao outro, uma intenção e atenção, um voltar-se ao outro, dizer-lhe sim. “O sim ao outro já responderá ao acolhimento do outro (...), ao sim do outro. (...) Esta resposta responsável é certamente um sim, mas um sim a precedido pelo sim de outro” (DERRIDA, 2008, p.41). De acordo com Chagas e Abrahão (2017, p.862), porém,

este processo dependerá da disponibilidade de cada pessoa, da decisão de entrar em contato consigo e com o ‘eu’ do outro, mas, caso decidam por isto, caso decidam entrar em um diálogo mais profundo com os pacientes, irão confrontar-se cotidianamente com a vulnerabilidade humana, e terão de lidar com a dualidade que lhes foi imposta por meio do modelo biomédico.

O sim ao outro é, portanto, fruto de uma disponibilidade ética que o toma como soberano e permite fragilizar-se diante dele e demanda que sejam construídos novos saberes e novos modos de relação no fazer em saúde, opondo-se ao modelo biomédico e decidindo por uma postura de ser para e com o outro.