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2 BASES TEÓRICAS E CONCEITUAIS

2.1 Lévinas e a perspectiva da alteridade radical

2.1.8 O sofrimento inútil que chama à responsabilidade

Segundo Maia (2013) como consequência da responsabilidade absoluta e inalienável do eu, Lévinas nos provoca a pensar acerca da dimensão ética do sofrimento de outrem. O filósofo lituano preocupa-se com o ultraje do eu que sofre e com o chamamento ético em relação ao sofrimento no Outro, compondo este o próprio nó da subjetividade. Na defesa dessa concepção, Lévinas (1997) demarca a diferença do sofrimento em mim e o sofrimento por outrem: o sofrimento em mim é tão radicalmente meu que não poderia tornar-se assunto de alguma pregação; já o sofrimento expiatório do justo sofrendo pelos outros é o sofrimento que ilumina, é este que nos interessa.

À vista disso, a agonia do eu não é significativa, mas passa assim a sê-la somente quando o eu toma a responsabilidade pelo sofrimento do Outro (HUTCHENS, 2004). Nas palavras do próprio Lévinas (1997, p.133):

Nesta perspectiva, faz-se uma diferença radical entre o sofrimento em outrem no qual é, para mim, imperdoável e me solicita e me chama, e o sofrimento em mim, minha própria aventura do sofrimento, cuja inutilidade constitucional ou congênita pode tomar um sentido, o único de que o sofrimento seja susceptível, tornando-se um sofrimento, mesmo inexorável, de alguém. Atenção ao sofrimento de outrem que, através das crueldades do nosso século – apesar destas crueldades, por causa delas – pode afirmar-se como o próprio nó da subjetividade humana ao ponto de se ver elevado a um supremo princípio ético [...].

Maia (2013) destaca que, tendo em vista o atual contexto de violência e indiferença do homem para com o homem, as provocações de Lévinas tornam-se fundamentais ao eleger o

eu o responsável por ouvir e atender aos apelos de outrem, apelos estes que, continua Maia (2013), podem vir em forma de um suspiro, um gemido, um grito, um choro. De acordo com Lemos (2012, 78-79),

se quisermos agora nos reportar à ideia da experiência de algum sofrimento intenso ao extremo vivenciado por outrem, possivelmente, utilizando a via afetiva, seremos tomados por alguns sentimentos a priori, tais como compaixão, medo, vergonha, culpa, repúdio, entre outros. Certamente este exercício superficial não nos dará a dimensão exata do que desejamos refletir – a responsabilidade ética ante o sofrimento do outro – mas nos permitirá ter uma fresta de luz para adentrarmos com maior propriedade nesta discussão.

A dor do outro está acima da minha compaixão, minha dor é a dor por sua dor, essa dor é toda para mim. O sofrimento fundamental e o único para o qual devemos olhar é, então, o sofrer pelo sofrer do outro (HUTCHENS, 2004). Explica-nos Lévinas (1997, p.193): “o sofrimento do sofrimento, o sofrimento pelo sofrimento inútil de outro homem, o justo sofrimento em mim pelo sofrimento injustificável de outrem, abre sobre o sofrimento a perspectiva do inter-humano”.

O inter-humano diz respeito à não indiferença do eu para com o sofrimento dos outros, à tomada de responsabilidade de uns para com outros e à providência de uns em socorro de outros. O eu não pode se fazer indiferente à dor do Outro, é essa dor que importa, o eu torna- se, então, seu responsável e toma para si as atribuições de cuidar dessa dor, de tomar suas providências. “É na perspectiva inter-humana de minha responsabilidade pelo outro homem, sem preocupação, sem reciprocidade, é no meu apelo a seu socorro gratuito, é na assimetria da relação de um ao outro que procurei analisar o fenômeno da dor inútil” (LÉVINAS, 1997, p.142). É nessa referência de ser responsável pelo sofrimento de outrem que conseguimos avançar alguns passos na nossa exposição acerca do sofrimento.

Na sua análise acerca do sofrimento inútil14, Lévinas (1997) aponta para a concepção de dores-doenças, quais sejam, aquelas cuja dor torna-se o fenômeno central do estado mórbido. Nessas dores-doenças não há possibilidade de alívio e a angústia e o abandono são acrescentados à crueldade do mal que compõe inevitavelmente cada dor. Nessa seara, o autor aponta que o sofrimento inútil dessas dores suscita o problema ético e inevitável da

14 Em Lévinas (1997), o sofrimento no outro é aquilo que não faz sentido, pois nenhuma explicação pode dar conta

e justificar o padecer, por isso, é tido como sofrimento inútil. O único sofrimento significativo é o do eu quando em resposta ao sofrimento de outrem. Em relação à busca de justificar os sofrimentos pela ideia centrada em Deus ou pelas filosofias ocidentais, o autor é categórico: “Para uma sensibilidade ética [...] a justificação da dor do próximo é, certamente, a fonte de toda imoralidade” (LÉVINAS, 1997, p.138).

medicação. Essa medicação refere-se metaforicamente ao chamado do eu à responsabilidade do alívio da dor de outrem e diz respeito à

abertura original em direção daquele que socorre onde vem se impor – através de um pedido de analgesia mais imperioso, mais urgente no gemido que um pedido de consolação ou do adiamento da morte – a categoria antropológica do medical, primordial, irredutível, ético. Para o sofrimento puro, intrinsicamente insano e condenado, sem saída, a si mesmo, se delineia um além no inter-humano (LÉVINAS, 1997, p.131).

Aqui, Lévinas nos chama mais uma vez à responsabilidade para com outrem, ao outro que sofre, que padece, que morre. Ao outro que nos pede socorro, afago, remédio, cuidado. Que solicita que não o deixemos só em seu sofrimento. A resposta “eis-me aqui” à dor do outro é a mais correta relação com ele, a mais profunda aventura da subjetividade (MAIA, 2013).

Em linhas gerais, o pensamento de Lévinas não propugna uma determinada moral – de certo e errado – acerca dos fenômenos que acontecem, mas traz a possibilidade de uma simples colocação diante do outro: “eis-me aqui”, tornando-o, deste modo, o primeiro, o soberano e aquele a quem tudo devo.

Acredita-se, deste modo, que as proposições de Lévinas, aqui discutidas, podem servir de base para pensar a ética nas práticas de saúde a partir da noção de hospitalidade, abertura ao outro, responsabilidade pelo outro e fratura egóica do eu, quando a função do eu passa a ser receber, acolher e servir ao Outro através da escuta. Lévinas traz a relação com o outro que se dá pela via da vulnerabilidade, exposição, sensibilidade e passividade e, com isso, mostra-nos possibilidades de caminhos no campo do cuidado que permitam ao eu deslocar-se do seu lugar de soberania para dar lugar ao outro. Apontando-nos, portanto, horizontes de atuação que não sejam indiferentes ao sofrimento do outro, que se responsabilizem pelos processos dos sujeitos vulneráveis necessitados de cuidado e tomem providências para não deixar o outro só em seu sofrimento e na sua morte, respondendo à dor do outro: EIS-ME AQUI.

É com base, pois, nas discussões traçadas nesta sessão de capítulo que buscaremos compreender a perspectiva ética do cuidado na morte e no morrer, utilizando-nos da primazia do outro diante de mim.