• Nenhum resultado encontrado

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1 Vivificação da morte e mortificação da vida

4.1.1 Dignidade de morte

Como um importante elemento acerca das discussões que compõem essa dissertação, o movimento de reumanização do processo de morrer tem como principal expoente a dignidade de morte, na qual acredita-se que a finitude deve ser vivenciada com controle da dor, conforto, respeito pela autonomia e assistência aos aspectos biopsicosocioespirituais dos pacientes. “Dignidade de morte” refere-se, segundo Pithan (2004, p.78), à “reivindicação por vários direitos e situações jurídicas, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia, a consciência, os direitos de personalidade. Refere-se ao desejo de se ter uma morte natural, humanizada, sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil”.

De acordo com Menezes (2004), possibilitar a ocorrência de uma morte digna é permitir que o sujeito no final da vida construa um modo de morrer personalizado e individualizado favorecendo o processo de reapropriação deste em relação à morte. “Dignidade de morte” é, desta forma, o respeito à dignidade da pessoa humana e à autonomia do paciente, além da consideração pela individualidade e historicidade de cada processo de morrer, validando e considerando a capacidade de escolha dos sujeitos; sendo exercida com base no atendimento humanizado (DREHER, 2009). Para Kovásc (2012, p.113), “as pessoas, mesmo num processo de agravamento da doença, têm uma história de vida e características de personalidade e são sujeitos de suas vidas”, devendo, deste modo, terem uma assistência singularizada e que leve em consideração esses aspectos.

Nos discursos dos profissionais, percebe-se a preocupação com esse quesito através de ações como: organização de toda a equipe para levar o paciente à praia, planejar e realizar uma grande festa de aniversário, proporcionar a realização de batismos, presentear uma paciente com deformação na face com uma maleta de maquiagem pedida por ela, organizar o cronograma de consultas de modo que o paciente permaneça mais tempo no interior com a família, possibilitar que o paciente seja internado somente após um jantar de despedida com os amigos, articular a rede de saúde para que a paciente que morava em outro estado pudesse voltar

para casa, dentre outras ações que demarcam a dimensão da vitalidade no processo de morrer. Iremos nos deter, então, em alguns destes momentos com base nos escritos do diário de campo.

“A médica percebe nos atendimentos as outras questões que os pacientes trazem para além da doença e do prognóstico. ‘O bom disso é que mesmo sabendo que eles vão morrer, eles querem viver, querem sair, passear, namorar e é nisso que se foca nosso trabalho’”.

Aqui a profissional põe vida e morte em relação, pois acredita que os pacientes mesmo sabendo que irão morrer, querem viver, aproveitar, sair, passear, namorar. Ou seja, querem ter uma vida próxima do normal para suas faixas etárias e não tomam a impossibilidade de cura como um limitador para isso. Além de se ater aos aspectos físicos e biológicos dos pacientes, componentes da sua atuação como médica, a percepção para as outras dimensões do paciente permite que haja o entrelaçamento entre vida e morte, entre o corpo que está morrendo e o sujeito que ainda quer viver, possibilitando novos modos de lidar com esse processo.

“Os profissionais conversam acerca do paciente Fantoche: ele está bem, está brincando. Princesa Jujuba destacou: ‘Esse é o nosso propósito, nosso propósito é esse, é dar qualidade de vida para ele’. Mulan: ‘Quero dar qualidade de vida, mandar ele para casa, para morrer em casa. O pai dele disse para mim: ‘quero dar o melhor para ele, mandar ele para casa, se ele for para casa vai ficar muito melhor’”. “Mulan disse que vai fazer de tudo para liberar a paciente para ele poder ir para casa”.

Nos casos citados, o investimento da equipe para que os pacientes faleçam em casa, coadunando com o desejo dos pais e da própria criança, demonstra a apuração da escuta para perceber as reais necessidades dos usuários. Permitindo, deste modo, que a equipe seja destituída do seu lugar de “dona do paciente” e assuma o lugar de facilitadora na realização dos desejos da família e dos pacientes, possibilitando que estes se apropriem dos seus processos de morrer.

A realização do último desejo tem um significado deveras importante para a atuação em cuidados paliativos. Último refere-se, segundo o dicionário Aurélio, à conclusão, resultado, fechamento, ao fim e ao cabo, afinal, no fim das contas, por último, finalmente. Trata-se do que se encerra; no caso, da vida que se encerra. Para o paciente Soldadinho de Chumbo, a ida à praia foi sua despedida das pessoas que ama e da sua própria vida.

“Ele conseguiu realizar seu último desejo de ir à praia. Mônica agradeceu à Sininho da Associação por ter agilizado a ida à praia. Princesa Jujuba comentou sobre o momento: ‘Foi mágico, a gente sentiu que ele estava se despedindo mesmo, da irmã, do amigo. Ele estava bem contemplativo, foram todos (da família)’”.

“Princesa Jujuba continuou: ‘O Soldadinho de Chumbo agradeceu muito. Ontem [no dia que ele morreu] fui lá e disse para ele lembrar da alegria que eles tiveram’. Mônica destacou que é essa memória que eles vão ter, a lembrança desse último dia na praia. Princesa Jujuba reforçou: ‘Vamos continuar fazendo isso porque isso faz a diferença’”.

A realização do último desejo foi um alento ao paciente em seus momentos finais, pois foi possível que ele lembrasse da alegria que teve. A equipe acredita que a família ficará com essa última lembrança do paciente e que isso poderá facilitar a vivência do luto após o óbito. É algo que, segundo os profissionais, faz a diferença no processo do óbito do paciente e na vivência futura da família em relação à perda.

Cabe-nos, no entanto, o questionamento: faz diferença em relação a o quê? Aqui a profissional destaca duas nuances: as intervenções foram cruciais para o bom andamento do caso e mostraram-se como o diferencial em relação às situações em que essas ações não são realizadas, demarcando uma distinção entre as condutas e, consequentemente, nas repercussões destas na trajetória dos usuários.

Já no caso do Adoleta, houve a possibilidade de o paciente passar mais um tempo em casa para realizar os últimos desejos: a visita a uma praia especial e o jantar de fechamento com os amigos. Mulan relatou ‘Os pais perguntaram quanto tempo ele ainda podia ficar em casa. Fizemos o possível para ele só vir depois de um jantar que teria com todos os amigos dele na sexta-feira. Nesses três dias que ele teve, foram viajar para ver o mar em uma praia que ele tinha uma lembrança muito forte da infância e teve o jantar na sexta com todos os amigos, faltaram dois e no sábado antes deles virem para o hospital, os pais passaram na casa de cada um desses que faltaram para que ele se despedisse, um desses era até a paquerinha dele’.

A equipe fez o possível para que ele pudesse passar três dias em casa para realizar esses desejos. O que é o possível referido pela profissional? O possível é o que pode ser, existir, acontecer, aquilo que é praticável, que se pode fazer. Portanto, ter permitido que o paciente passasse esses três dias em casa foi algo que pôde acontecer, que não o pôs em risco e não foi algo irresponsável. Fazer o possível também representa empenho, diligência, esforço; denotando que os profissionais se esforçaram bastante para a realização dessa ação.

Em outro destaque acerca dessa fala, quando a profissional ressalta que, inclusive, um dos amigos visitados era uma paquera do paciente, novamente a dimensão da vida é resgatada, daquilo que ainda move, que está incluso na vida do paciente, que a compõe. Denotando, desta maneira, que o campo do amor, da paquera e do afeto continuam mobilizando o paciente, apesar da proximidade com a finitude. O uso do termo “apesar” não aconteceu por

acaso. O que se diz quando se usa essa expressão para se referir aos pacientes em cuidados paliativos? Destaca-se outro trecho para endossar a discussão.

“A médica Mulan chegou e fui acompanhar seus atendimentos. Comentou que os pacientes estão bem, apesar de estarem em Cuidados Paliativos”.

Apesar faz oposição a algo dito antes, assim nega que os pacientes estão bem, fazendo a seguinte correlação: se está em cuidados paliativos, não está bem. O termo, porém, indica oposição a uma outra ideia exposta, mas que não é impeditiva; ou seja, dizer que um paciente está em cuidados paliativos não exclui a possibilidade de dizer que ele está bem, pois uma ideia não exclui a outra. Aqui já há, portanto, outra relação, uma relação de adição: ele está em cuidados paliativos e está bem. O que ocorreu no caso citado anteriormente, no qual o paciente estava em cuidados paliativos e nutria um afeto diferenciado por uma colega.

Ainda interessados nos vários sentidos do termo e nas suas possibilidades de uso nos discursos, apesar inclui o pesar, a tristeza, a pena, condição de dar pena. O fato dos pacientes estarem em cuidados paliativos é algo que dá pena, que pesa no bom estado deles, que pesa na possibilidade de cura, de longevidade, de inscrição no futuro. Por isso, utiliza-se o termo para demarcar que a condição de paliação causa sofrimento, mesmo com o cuidado aos outros aspectos importantes na vida do paciente.