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Relação com o campo – potencialidades, desafios e estratégias

3 PROPOSTA DE TRABALHO

3.7 Relação com o campo – potencialidades, desafios e estratégias

O local escolhido para o desenvolvimento desta pesquisa foi cenário de atuação da pesquisadora em momentos anteriores de sua trajetória profissional. Considera-se que essa ocorrência facilitou o deslocamento na unidade de saúde e, principalmente, o contato com o campo e com as equipes, a exemplo do seguinte trecho que relata o primeiro contato com a equipe de CP do CPC:

“Apresentei-me e comuniquei à equipe minha proposta de acompanhamento das reuniões e, eventualmente, do dia-a-dia da equipe. Fui muito bem recebida. A equipe tem a mesma configuração (com alguns membros novos) da época em que fui estagiária e residente do Hospital e isso pode ter facilitado o contato”.

Além disso, a proximidade com os profissionais permitiu uma inserção que não causou estranhamento e possibilitou o acompanhamento da rotina de maneira mais livre:

“Recebi o convite para acompanhar os atendimentos da médica Mulan e da enfermeira Florzinha”.

“Fui convidada pela psicóloga Elza para acompanhar a construção do projeto de CP do HIAS. Ela me passou os detalhes de como funcionaria a equipe”.

“Após o horário do almoço, a enfermeira Florzinha foi comigo ao setor das enfermarias, me apresentou à equipe e relatou algumas questões da rotina de cuidado”.

A autorização e o convite para participar dos atendimentos permitiu a aproximação com os pacientes acompanhados pelos profissionais, possibilitando o estabelecimento de relações da pesquisadora com estes:

“Ele me convidou para brincar: ‘Tia, vem brincar comigo?’. Brincamos de xadrez e brincamos de luta com os exércitos”.

“A mãe do Peão me chamou e fui visitá-los. Ela contou como tudo está acontecendo, falou do tratamento e da possibilidade do transplante”.

“Subi e fiquei com eles até o fim da manhã. Ele estava muito empolgado e animado com aniversário, falou o que desejava para o momento, o que queria e como ele esperava que fosse”.

Além de ter proporcionado a vivência de momentos extremamente marcantes, como a festa de aniversário de uma criança em cuidados paliativos:

“Foi um momento muito marcante. Emocionei-me bastante por conta de toda a mobilização realizada para acontecer a festa, do empenho nas pessoas, da alegria e da emoção dele”.

Demandando, a partir desses contatos, que os contornos das intervenções fossem fortalecidos para não extrapolar os limites éticos da pesquisa:

“Não foi realizado atendimento psicológico e não fiz perguntas sobre a pesquisa, já que a proposta aprovada pelo comitê de ética refere-se apenas aos profissionais”.

“Foi um diálogo mais superficial para eu não entrar nas questões emocionais dela, mas ao mesmo tempo me fiz presente”.

Além disso, também foi possível perceber relações de carinho e reconhecimento para com a pesquisadora por parte dos atores que compunham o campo:

“A enfermeira Florzinha me encontrou no corredor e trouxe o relato de um óbito que ocorreu no final de semana. Essa enfermeira tem muita proximidade comigo, pois foi minha

colega de residência. Éramos da mesma equipe e, na época, já convocava a equipe a atuar nesses casos. Por isso, ela se mostra sempre muito solícita e disponível e me procura quando algo acontece e ela quer me contar”.

“Encontrei com uma antiga supervisora de estágio que está acompanhando o sobrinho em um exame para realização do diagnóstico de câncer. Esta parabenizou-me pelo mestrado e fez indicação dos seguintes textos que podem ser úteis na escrita da dissertação: Daniel Kupermann – cuidado e hospital e Metafísica do Cuidado - Figueiredo”.

“Os profissionais despediram-se de mim como muito carinho”.

“Todos pediram que, quando a análise estivesse concluída, eu retornasse ao serviço para apresentar os resultados”.

A pesquisadora acompanhou as reuniões das equipes de Cuidados Paliativos que ocorriam às quartas-feiras pela manhã no auditório do CPC. A presença da mesma nessas reuniões não causou incômodo ou restrições por parte dos profissionais.

“A equipe foi muito aberta e receptiva”.

A receptividade e abertura da equipe possibilitou que a pesquisadora, ao participar das reuniões do grupo, estivesse presente em momentos singulares e bastante restritos:

“No final da reunião, os presentes saíram e um grupo seleto dos profissionais que estão na equipe há mais tempo conversou sobre a possibilidade de fechamento das reuniões. Eles não perceberam minha presença ou não atentaram para o fato de eu ser externa à equipe”. No entanto, em alguns momentos, a proximidade com o campo e com os atores dos processos dificultou no distanciamento das questões vividas.

“Senti que, por ter feito parte da equipe em outros momentos e pela intensidade das vivências que tive, considero algumas questões como naturais ou já conhecidas. Entendi que, neste momento, preciso compreender como se dão esses processos a partir de um outro lugar, de pesquisadora, não tomando nenhum dado como natural ou como já conhecido”.

“Minha fala (ou a percepção de que eu estava presente) incomodou um pouco, senti que eles ficaram desconfiados e encerraram logo esse momento, sem nenhuma decisão ou debate mais aprofundado. Irei me ater a não fazer comentários mais incisivos durante o acompanhamento das reuniões. Percebo que houve uma confusão minha entre lugar de ex- residente e de pesquisadora”.

Em alguns momentos essa proximidade também causou conflitos em relação ao lugar agora ocupado pela pesquisadora:

“Os profissionais comentam sobre minha presença: ‘Ainda bem que você voltou, estamos precisando de algum psicólogo para comandar a reunião’. ‘Sentimos falta de psicólogo para comandar a reunião’”.

Apesar da profundidade do contato com o campo e da participação em diversas atividades sem restrições, alguns acontecimentos não puderam ser acompanhados pela pesquisadora devido ao respeito às hierarquias da instituição ou à maior delicadeza de alguns momentos:

“Conversei com Elza para que eu pudesse participar (apenas como ouvinte) da palestra sobre CP para os médicos. Ela respondeu que eu não poderia e que ela também não iria, apesar de ter preparado todo o material da apresentação, pois a equipe médica é muito corporativista e que seria melhor que se falasse de médico para médico”.

“No final da reunião, Mulan comunicou a mim que infelizmente não poderei ir para a sessão clínica”.

“Estava ocorrendo conferência com a família do Bila para comunicá-la sobre o início da paliação, mas não pude participar por não fazer parte da equipe e ser um momento extremamente delicado”.

“Há limites para o que posso e não posso acompanhar”.

Dentre as complicações desse processo, destacam-se as dificuldades no contato com os profissionais das Unidades de Terapia Intensiva:

“Nas idas à UTI, percebo a dificuldade de inserção devido aos olhares de estranhamento e rejeição por parte da equipe ao entrar no espaço e falar da proposta. Com isso, não me senti muito à vontade para adentrar nesses cenários, senti a equipe pouco acolhedora e não aberta ao diálogo. Acordei de retornar em outro momento”.

Demandando que a pesquisadora planejasse ações de inserção que ocorressem na companhia de outros profissionais:

“Por conta da dificuldade de inserção, planejo voltar à UTI do HIAS com os residentes para facilitar o acesso. Estes, porém, estão de férias. Irei aguardar o retorno”.

“Os residentes responsáveis pelos atendimentos na UTI1, encontravam-se em um estágio de um (01) mês na Unidade Básica de Saúde e não estavam no Hospital. Por isso, não foi possível contar com a parceria deles para a inserção na Unidade”.

Ou até mesmo, abandonasse propostas inicialmente traçadas para a pesquisa: “Apresentei a proposta de acompanhamento do cotidiano de atuação da equipe, porém fui informada que, por esta ser um UTI pós-cirúrgica e com intensas preocupações quanto aos riscos de infecção, minha presença contínua no serviço não seria possível. Conversei brevemente com os profissionais e como se tratava de uma UTI muito específica pela demanda atendida e pelo pouco tempo de permanência dos pacientes, além da limitação quanto ao acompanhamento do cotidiano, decidi que esta UTI não comporia a pesquisa”.

“Esse referido roteiro é o mesmo sugerido para os grupos focais que estavam inicialmente propostos para a pesquisa, mas que não aconteceram devido à indisponibilidade de tempo dos profissionais, não existência de local adequado para a realização do encontro, grande diversidade nas agendas das equipes que impossibilitou a pactuação de um dia em comum no qual todos pudessem participar do momento e intenso contato com as questões coletivas a partir do acompanhamento do cotidiano”.

O contato com o campo, de uma maneira geral, demandou a criação de estratégias para aproximação com os profissionais, tais como participar de conversas cotidianas, partilhar lanche, estar presente em festas e comemorações, dentre outros, a fim de ganhar a confiança dos mesmos e poder estar presente no dia-a-dia sem causar incômodo nas equipes.

“Fiquei acompanhando a conversa das técnicas e senti que esse momento é importante para me aproximar e ganhar mais a confiança delas”.

“A equipe fez pausa para o café. Não fui convidada de início a participar no momento, mas no final da refeição a residente me convidou para lanchar”.

“A residente perguntou-me sobre o mestrado e começamos a comentar sobre o tema, da vontade que elas têm de se aperfeiçoar e dos seus possíveis projetos de pesquisa”.

“Participei da festa de aniversário para a Psicóloga Chefe”.

Além disso, exigiu o apuramento da percepção, da escuta, do olhar e dos afetos diante das realidades vividas:

“A experiência de estar-pesquisadora em um território já tão conhecido é, decerto, ocupar lugares familiares com olhos novos, olhos curiosos e atentos. Ouvidos prontos, coração e braços abertos. É, no contato com o campo, ter muito mais perguntas do que respostas. Muito mais pontos de partida do que de chegada. E, principalmente, é ter o corpo aberto para os afetos, para os encontros, para a diferença, para o Outro. É deixar-se-afetar por uma fala, um gesto, um rosto, um som, um cheiro, um sorriso, uma lágrima. E, assim, quase como por despropósito, se pegar pensando em coisas sobre vida, morte, amor, cuidado, saudade, coragem, beleza, esperança. E, claro, atentando para os sentidos que isso produz em mim”.

Diante do exposto, considera-se que a pesquisa no cotidiano mostrou ser uma estratégia bastante valiosa para as pesquisas na área da saúde, pois permitiu uma maior aproximação com o campo e possibilitou que o pesquisador fosse partícipe das ações que se desenrolaram no dia-a-dia das unidades estudadas.

A separação observador-campo foi dissolvida e foi possível a criação de vínculos com os profissionais e pacientes, além da autorização para que a pesquisadora fosse inserida em diversas atividades e pudesse compreender o campo a partir das suas impressões, percepções, afetações e sensações pela via da sensibilidade, das afetações, dos desejos e dos traumas irrompidos pelo contato com o outro (STECANELA, 2009). Esses processos produziram, portanto, uma compreensão compartilhada do fenômeno que levou em consideração os diversos atores envolvidos na pesquisa (SPINK, 2007).

As idas ao Hospital não ocorreram em dias fixos e variaram de acordo com a disponibilidade demanda da pesquisadora, das equipes e dos serviços. Além disso, destaca-se que a colaboração dos profissionais foi crucial para o desenvolvimento da pesquisa, demandando a criação de estratégias de inserção nas unidades e de criação de confiança e intimidade da pesquisadora com os trabalhadores; além de ser necessária a realização de importantes rearranjos na proposta inicial.

A pesquisadora manteve-se aberta e alerta aos fenômenos que aconteciam no cotidiano e utilizou-se da descrição detalhada no diário de campo como um importante instrumento. Inicialmente, a escrita no diário seguiu um fluxo mais informal e menos detalhado, pois havia a necessidade de registrar as informações durante a ocorrência dos acontecimentos para não ocorrer o risco de perdê-las. Posteriormente, as informações do diário escrito foram compiladas em meio digital e puderam ser esmiuçadas, organizadas e revisadas no intento de transmitir ao leitor informações mais compreensíveis.

Um grande desafio enfrentado na escrita inicial do diário foi a eleição de que informações eram relevantes para o registro. Com o avanço da pesquisa, porém, através da apropriação e familiarização com o campo, as informações tornaram-se mais organizadas e focalizadas nos objetivos da pesquisa, entendendo-se que esse era o critério para a inserção do material no diário (CARDONA, CORDEIRO; BRASILINO, 2014).

De modo geral, a entrada em uma realidade não mais partilhada pela pesquisadora, exigiu respeito pelo modo de funcionar do campo, pelas hierarquias, pelas normas de funcionamento dos setores, pelo tempo e pelos processos de cada unidade, pelas restrições e pelas aberturas ao longo do processo de pesquisa. Compreendendo, deste modo, que o campo se configura como uma unidade independente dos arranjos desta e que este não deve ser violentado para ser inserido em traçados pré-concebidos, permitindo, deste modo, o contato com a alteridade do campo.