• Nenhum resultado encontrado

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1 Vivificação da morte e mortificação da vida

4.1.9 Nuances do instituído e da invenção

Como um importante componente que decorre dessa “protocolização” das práticas em saúde e da atuação em cuidados paliativos, mostra-se pertinente discutirmos acerca das nuances existentes entre o que é instituído e a possibilidade de invenção de novos possíveis e impossíveis.

Tais elementos referem-se aos momentos em que, no cotidiano do fazer em saúde, os profissionais tiveram que extrapolar a dimensão do instituído para inventarem novos modos de cuidado. De acordo com os trabalhadores, a instituição não consegue abarcar a multidimensionalidade do processo de morrer e este não pode ser enclausurado em processos puramente institucionais, com o risco de produzir formas de atuação descontextualizadas e despersonalizadas que não tomam o sujeito em sua singularidade.

Florzinha: ‘Não pode trazer criança para visitar o hospital, mas em uma hora dessas eu acho importante trazer os irmãos para se despedir’.

“A paciente Boneca de Pano quer investir em medicamentos mais fortes na esperança de reverter o caso. Ela será internada na quimioterapia sequencial. Mulan disse: ‘Estou até indo contra a vontade da equipe porque eu estou pegando uma vaga de um possível curado para colocar um paciente que não tem mais cura, mas vou mandar, ela vai subir’”.

Mulan: ‘Em relação à dieta, a nutrição burlava as regras para que o Adoleta recebesse todas as refeições nos horários em que ele podia comer, pois ele dormia de dia e passava a noite acordado. Ele comeu tudo que quis: kalzone, picolé de limão...Teve todos os desejos atendidos’.

Os profissionais trouxeram a necessidade de burlar as regras, ultrapassar e romper com as normas do hospital para estar de acordo com as demandas do paciente, além disso indicaram que há pacientes que extrapolam os protocolos, que não se encaixam nos scripts pré- estabelecidos e necessitam ser ouvidos em sua singularidade, por mais que isso signifique ir de encontro às condutas que são apregoadas para o caso.

Acerca disso, a Psicóloga Magali faz uma importante reflexão: ‘Saber fazer uma leitura do quanto a morte não pode ser aprisionada nos processos institucionais, ela não pode ser institucionalizada simplesmente, aderida a todas as regrinhas de hospital, então, a percepção

disso é muito básica pra, de repente, você não tá dizendo “eu não autorizo isso por que não pode”, então “o que será que não pode no momento desse?”. Há muita pouca coisa que não pode. Quando você tem uma equipe, membros de uma equipe formados mais amplamente, você percebe essa visão’.

A profissional lança o questionamento acerca do que pode e não pode ser admitido no momento da morte e ressalta que há poucas coisas que não podem ser feitas e permitidas, pois nesse momento pode-se quase tudo. Destaca, ademais, a importância de os profissionais serem sensíveis a essa questão e que possam ser flexíveis e extrapolar a dimensão do instituído.

Para Bennington (2004a, p.16), o dever é algo extremamente necessário e a invenção existe a partir dele, mas o ultrapassa, vai para além dele, “no sentido de inventar algo que se encontra fora da esfera daquilo que o dever, presumidamente, poderia ditar ou prescrever”. De acordo com o autor, agir segundo leis ou regras é tudo, menos ético, sendo apenas algo meramente moral, pois o ético reconhece o outro e atribui suas decisões a partir dele. Deste modo, a transgressão é, em determinados momentos, mais ética do que o cumprimento das regras, pois um ato inventivo age “como resposta e responsabilidade para com o outro” (BENNINGTON, 2004a, p.17).

O autor continua e destaca a dimensão da ética no campo das tomadas de decisões e da responsabilidade:

se pretendemos falar inteligivelmente a respeito de decisões e responsabilidades, então devemos reconhecer que elas têm lugar através do outro, e que o seu lugar tem em mim nos diz algo a respeito do outro (já) em mim, de forma que, seguindo um outro axioma do pensamento desconstrucionista, eu sou apenas na medida que já abrigo (acolho) o outro em mim (BENNINGTON, 2004a, p.27).

Aponta-se/Aposta-se (n)a invenção como uma alternativa para os modos instituídos, e por vezes enclausurados, de cuidado em saúde. Esta se dá a partir das regras e normas existentes, mas as extrapolam e compreende que a dimensão ética se dá com base no outro, no encontro com o outro, com a alteridade, com a diferença, com aquilo que escapa e não pode ser englobado. Para que ela ocorra, demanda-se um corte, uma quebra das relações de poder existentes entre a equipe e os usuários, para assim, permitir a emergência desse encontro.

Magali relata o que que percebe das intervenções dos profissionais de saúde e afirma que quando estas se dão de modo padronizado, com um script e um passo a passo do que fazer, sem envolvimento e sem singularização do cuidado, há a produção de solidão e de abandono: ‘Eu sempre fico pensando assim “como é que as profissões ficam diante da morte?”, então tem todo um script, geralmente da parte biomédica. O médico chega, fica escutando os

sinais vitais, constata a morte e sai de cena, aí vem a enfermagem, faz o ultimo eletro, que é um critério técnico para realmente atestar a morte, limpa o corpo, prepara esse corpo, e aí também sai de cena, e muitas vezes eu vejo só o profissional dos serviços gerais, o maqueiro sozinho com o corpo. Já cheguei a ajudar a colocar o corpo numa maca por que eu noto que todo mundo saiu de cena e fica ali naquela mora solitária”.

A profissional ainda discorre sobre a alternativa existente para que os profissionais consigam de fato cuidar dos pacientes que estão morrendo: ‘Fico pensando “não é um momento meu, não é um momento pessoal”, mas “o que eu esperaria de um profissional aqui?”, então eu acredito que esse profissional esteja muito mais como o médico que o Rubem Alves fala: o médico que esteja à disposição, esteja ali compartilhando, meditando, pensando junto, mas também com o sentimento de eu também não me agarrar demais àquilo e não saber a hora de sair, não reconhecer a hora que a família já está bem e sair. Então é uma sensação muito grande de observação, de aprendizado o tempo todo. Sempre estar atenta para poder aprender, nunca estar no piloto automático, sempre estar atenta’.

Para ela, o que se pode esperar de um profissional no momento da morte e no acompanhamento da família no pós-óbito é que ele esteja à disposição, compartilhando, meditando, pensando junto e regulando-se para saber seus limites, não estar no automático, estar atento, consciente, em observação, em aprendizado. Isso ocorre quando há a possibilidade de encontro, de abertura, de entrega através da invenção.

Para Saramago (2004, p.135), “toda invenção (...) deve perturbar, romper, desprezar o instituído, o estatuído, senão não seria uma invenção (...)”. De acordo com a autora, Derrida reflete sobre as invenções que costumeiramente ocorrem nas eras pré-modernas e modernas respectivamente: invenção desveladora que descobre algo que já estava lá e uma invenção produtiva que é invenção do mesmo. Estas seriam, deste modo, invenções que se encerram sempre na origem de onde partiram, sendo da ordem do calculável. O autor reivindica, portanto, uma outra forma de invenção: a invenção do impossível. “A invenção como invenção do outro, do impossível, não nos traz nada, pois isto seria ainda o possível, ela apenas acolhe e exibe um gesto paradoxal, que consiste em desafiar e exibir a estrutura precária de suas regras” (SARAMAGO, 2004, p.137).

Deste modo, a invenção trazida como uma alternativa ética diante da normatização e homogeneização das práticas deve apontar para o impossível, ser uma invenção do impossível, sobre o qual recai o peso da absoluta responsabilidade. Esta “é a relação ética que implica sempre responsabilidade diante daquilo que não se mostra como já decidido, responsabilidade como resposta a um outro que já se mostra, desde sempre insuperável”

(SARAMAGO, 2004, p.74-75), possibilitando ao homem pensar para além da moral e tomar decisões tomando o Outro como norteador e se responsabilizando por tais escolhas.