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Abordagem do ciclo de políticas – referencial para o estudo da relação entre

A abordagem do ciclo de políticas é o referencial teórico-analítico que utilizarei para discutir a elaboração da política curricular da rede municipal de Belo Horizonte e suas repercussões no trabalho das professoras. Elaborada por Richard Bowe, Stephen Ball e Anne Gold, essa abordagem tem sido divulgada no Brasil principalmente nos estudos de Jefferson Mainardes (2006, 2010), como um referencial analítico útil para pesquisas sociais e educacionais. Segundo Mainardes (2006), o ciclo de políticas é uma abordagem

[...] que destaca a natureza complexa e controversa da política educacional, enfatiza os processos micropolíticos e a ação dos profissionais que lidam com as políticas no nível local e indica a necessidade de se articularem os processos macro e micro na análise de políticas educacionais. (MAINARDES, 2006, p. 49).

Tais características vão ao encontro da forma com que desejo investigar a relação entre currículo e trabalho docente, sem desvinculá-los do tecido social no

qual se configuram. O ciclo de políticas é constituído inicialmente por três contextos principais: contexto de influência, contexto da produção de texto e contexto da prática (BOWE; BALL; GOLD, 1992). Posteriormente, Ball (1994) a ele incorpora o contexto de resultados ou efeitos e o contexto de estratégia política.25 Esses contextos são referenciais que nos permitem discutir a relação entre currículo e trabalho do professor, articulando ambos à realidade global, nacional e local.

O contexto de influência é onde normalmente se inicia a política pública e onde são construídos os discursos políticos realizados por diferentes grupos de interesses, que lutam “[...] para influenciar a definição e os propósitos sociais da educação, do que significa ser educado”26 (BOWE; BALL; GOLD, 1992, p. 19, tradução livre). As arenas de ação desse contexto são baseadas nas redes sociais dentro e em torno de grupos políticos, do governo e do processo legislativo, estabelecendo-se conceitos políticos chaves que adquirem legitimidade e fornecem os discursos para a iniciação da política. Os discursos em formação às vezes são apoiados e às vezes contestados por reivindicações mais amplas, as quais exercem influência nas arenas públicas de ação, particularmente nos meios de comunicação. Além disso, influências podem ser também articuladas em arenas públicas mais formais, tais como comissões, entidades nacionais e grupos representativos. Esse contexto é marcado por influências globais, internacionais, nacionais e locais, que, por sua vez, são sempre recontextualizadas e reinterpretadas nos micro-contextos (Estados, municípios, escola, sala de aula, etc.).

As influências globais e internacionais no processo de formulação de políticas nacionais ocorrem de duas maneiras. A primeira consiste no fluxo de ideias através de redes políticas e sociais (circulação internacional de ideias, o processo de “empréstimo de políticas”, a venda de “soluções” no mercado político e acadêmico por meio de periódicos, livros e conferências e “performances” de acadêmicos que disseminam suas ideias em vários lugares do mundo, etc.); a segunda, na influência de organismos multilaterais como o Banco Mundial, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que patrocinam ou propõem (em alguns

25 Context of influence, context of policy text production, context of practice, context of outcomes,

context of political strategy.

26

casos impõem) “soluções” aos dilemas nacionais. (BALL,27 1998, apud MAINARDES, 2006).

No contexto de influência, foram discutidos quais grupos, quais atores, enfim, que vozes pressionaram a Secretaria Municipal de Educação para a elaboração de um currículo para a rede, bem como as posições defendidas, os argumentos utilizados e as relações de poder de grupos que discutiram a necessidade ou não do currículo. Segundo Ball (1994, p. 20, tradução livre) “políticas postulam tipicamente uma reestruturação, redistribuição e rompimento das relações de poder, de modo que diferentes pessoas podem ou não podem fazer diferentes coisas [...]”.28 As relações de poder evidenciam então a complexa relação entre intenções políticas, textos, interpretações e reações. (BALL, 1994). O autor nos mostra que os discursos dizem respeito ao que é a política, mas também à legitimação e redistribuição de vozes, indicando quem pode falar, quando e com qual autoridade. Essa é uma constatação que tive ao construir o histórico do processo de elaboração das Proposições Curriculares da rede municipal. A produção do texto do documento e sua publicação em 2007 justificam-se pela necessidade de oferecer aos professores orientações mais pontuais sobre os conteúdos a serem trabalhados na sala de aula. Entretanto, chama a atenção o atraso temporal com que esta resposta veio, já que, sete anos antes, os professores já reivindicavam tais orientações, conforme pude constatar em Dalben e Batista (2000). Parece que essas vozes foram ignoradas por certo tempo, sendo, em um dado momento, destacadas como o principal motivo para se reordenar o currículo. A elaboração das proposições curriculares é um processo que coabita com os resultados insatisfatórios da rede nas avaliações externas, conforme discutirei mais adiante.

O contexto de produção do texto envolve o processo de produção dos textos políticos (regulamentações oficiais, propostas curriculares, comentários sobre as propostas, vídeos), que são articulados com a linguagem do interesse público mais geral. Os textos políticos apelam para alegações do senso comum e para razões políticas, sendo resultados de disputas e acordos entre os grupos que competem para controlar a representação da política. (BOWE; BALL; GOLD, 1992). Muitos textos são produzidos para clarear, explicar, reforçar a política oficial, o que não

27 BALL, S.J.. Big policies/small world: an introduction to international perspectives Comparative

Education, Penn State, v. 34, n.2, p.119-130. 1998

28 Policies typically posit a restructuring, redistribution and disruption of power relations, so that

significa que sejam coerentes entre si. Bowe, Ball e Gold (1992) apresentam dois pontos importantes sobre o conjunto de textos que representam a política. No primeiro, argumentam que os textos políticos não guardam, necessariamente, coerência e clareza entre si, podendo até se contradizerem. Representam idealizações do “mundo real” e não cobrem todas as eventualidades, devendo ser lidos em relação ao tempo e lugar de sua produção e em confronto com outros textos. O segundo argumento é de que, sendo resultados de lutas e negociações entre grupos que trabalham em diferentes lugares de produção do texto, o que está em jogo são as tentativas de controle dos significados que representam a política.

Bowe, Ball e Gold (1992) consideram importante analisar a política como textos que dão ao leitor, seus “implementadores”, neste caso educadores que atuam nas escolas, papéis diferenciados. Esses papéis podem ser identificados a partir de dois estilos de textos utilizados por Roland Barthes, nos quais Bowe, Ball e Gold (1992) apoiam suas análises sobre o texto político – o texto readerly (ou prescritivo) e o texto writerly. O primeiro oferece o mínimo de oportunidade para a interpretação criativa do leitor, havendo uma crença na inocência deste, pressupondo que o mesmo tem pouco a contribuir com o texto produzido. O texto writerly convida o leitor para cooperar, interagir e ser coautor, instigando-o a colocar seus conhecimentos em confronto com o novo. Ambos os textos são produtos do processo de formulação das políticas, devendo ser vistos a partir dos diferentes contextos nos quais são utilizados. Além disso, conforme destacam os autores, é fundamental uma análise política e social para se descobrir os processos pelos quais tais textos são gerados.

Analisando a política como discurso, Bowe, Ball e Gold (1992) entendem que a mesma é constituída de possibilidades e impossibilidades, um conjunto de declarações sobre como o mundo poderia e deveria ser, ancorada ao conhecimento, por um lado, e à prática, por outro. Em seus estudos etnográficos sobre a formulação de políticas, os autores buscaram explorar os processos de disputa de valores e as influências materiais que sustentam a formação dos discursos políticos, bem como analisar os processos de interpretação ativa e a construção de significados dos textos políticos na prática.

Segundo Ball (1994), o discurso incorpora os significados e o uso das palavras, ordenando-as, combinando-as de formas particulares, deslocando ou excluindo outras combinações. Neste “jogo de palavras”, campos de conhecimento são sustentados, fortalecidos ou mudados, tornando as políticas “regimes de

verdade”. (BALL, 1994). As lutas para interpretação e materialização29 das políticas fazem parte de um quadro discursivo em movimento que articula e contrasta as possibilidades de interpretação e materialização, levando-nos a responder pela política em determinadas circunstâncias discursivas. Ball (1994) destaca a necessidade de se analisar e reconhecer os discursos dominantes existentes dentro de uma política social, ainda que se concorde que os “conhecimentos subjugados” não possam ser totalmente excluídos das arenas de implementação política.

Ball (1994), ao questionar o uso do termo política com diferentes significados em um mesmo estudo, defende a importância de que os estudos explicitem com mais clareza o que se compreende como política. Para o autor, políticas podem ser vistas

[...] como representações que são codificadas de formas complexas (por meio de lutas, negociações, interpretações e reinterpretações publicamente dominantes) e decodificadas [também] de formas complexas (pela interpretação e atribuição de significados dos atores em relação as suas histórias, experiências, habilidades, recursos e contextos). (BALL, 1994, p.16, tradução livre).30

Os textos políticos são produtos de negociações firmadas em vários estágios e contextos do processo de elaboração, ilustrando o esforço de seus autores pelo controle dos significados para garantir uma leitura “correta” da política. (BALL, 1994). Mas textos políticos não são necessariamente claros ou completos, sendo produtos de múltiplas influências e agendas. Sobre essa característica o autor faz uma consideração importante, mostrando que não se trata de reafirmar uma epistemologia do pluralismo, pois “somente algumas influências e agendas são reconhecidas como legítimas, somente algumas vozes são ouvidas em qualquer momento.” (BALL, 1994, p. 16, tradução livre).31 Isso não exclui ainda as possibilidades de dissenso entre as próprias vozes legitimadas, resultando, por vezes, em uma indefinição de significados dentro do texto, o que provoca a disseminação de dúvidas.

29 Originalmente Ball utilizou o termo encatment, e aqui utilizo a tradução de Mainardes e Marcondes

(2009). Segundo os autores, Ball emprega o termo em um sentido teatral, considerando que um ator pode representar e interpretar o texto de diferentes maneiras. Em relação às políticas, Ball indica que são interpretadas e materializadas de diferentes formas pelos seus atores (no caso, os professores).

30 [...] as representations wich are encoded in complex ways (via struggles, compromises, authoritative

public interpretations and reinterpretations) and decode in complex ways (via actors’ interpretations and meanings in relation to their history, experiencies, skills, resources and context).

31 Only certain influences and agendas are recognized as legitime, only certain voices are heard at

Segundo Ball (1994), alguns textos nunca são lidos em primeira mão pelos seus “implementadores”. O autor cita exemplos de estudos sobre determinadas políticas curriculares e de avaliação, realizados no início da década de 1990, que indicavam que muitos professores nunca haviam lido os documentos oficiais ou até demonstravam considerável incompreensão sobre suas premissas e métodos. Constatei esse fato durante a observação em campo na Escola Arco-íris, quando as coordenadoras pedagógicas da escola comentavam sua percepção, durante as reuniões com a Secretaria Municipal de Educação, do desconhecimento de muitas colegas sobre as Proposições Curriculares, ou o fato de as terem ignorado até aquele momento, só tomando conhecimento quando a cobrança tornou-se mais intensa. Nas entrevistas, o relato das professoras indicou formas variadas de contato com o texto das proposições, além das incompreensões geradas devido a uma linguagem considerada técnica e abstrata.

O contexto da prática, para o qual a política está destinada, é aquele em que esta produz efeitos e consequências que podem transformar a política original. (BOWE; BALL; GOLD, 1992). Neste contexto, o texto político não é simplesmente recebido e interpretado pelos sujeitos que nele atuam, mas pode ser reinterpretado e recriado, influenciando consideravelmente o processo de implementação da política pública. (BOWE; BALL; GOLD, 1992). Isto, principalmente, porque os sujeitos confrontam a política com suas histórias, experiências, valores e propósitos, expressando diferentes interesses e interpretações em relação à política proposta. Bowe, Ball e Gold (1992) destacam que interpretação é uma questão de luta. O contexto da prática mostra que os autores não controlam os significados dos seus textos, uma vez que partes do texto serão rejeitadas, destacadas ou incompreendidas, já que os sujeitos serão influenciados pelo contexto discursivo dentro do qual a política é construída.

A política é uma intervenção textual na prática e normalmente não indica o que fazer, mas cria circunstâncias para se definir uma gama de objetivos e resultados ou para aproximar e transformar uma gama de opções disponíveis sobre o fazer (BALL, 1994). Na prática, a política confronta-se com outras circunstâncias e realidades, mudando algumas, sendo impotente para outras. Ball (1994) chama atenção para a importância de se atentar para as formas pelas quais a política mantém as coisas do mesmo jeito ou provoca mudanças diversas em diferentes contextos, evidenciando relações de poder.

A abordagem do ciclo de políticas nos leva a considerar de forma interdependente o processo de elaboração e implementação da política curricular, e não como momentos distintos e separados, corroborando o que disse Goodson (2011) em relação ao currículo escrito ou oficial e o currículo em ação. Bowe, Ball e Gold (1992) argumentam que essa distinção serve a propósitos ideológicos poderosos, os quais reforçam a separação entre teoria e prática, sendo a primeira privilegiada. Os autores argumentam sobre a impossibilidade do controle exclusivo do Estado no texto político, embora se reconheça o desequilíbrio de forças entre os diversos agentes envolvidos no processo de elaboração da política. Chamam também a atenção para o trabalho de recontextualização da política que ocorre nas escolas.

A figura a seguir ilustra a interdependência entre os três contextos, que serão focalizados nesse estudo, e o fluxo de informação multidirecional estabelecido entre eles.

Figura 1 – Contextos do processo de elaboração de uma política

Fonte: Bowe, Ball e Gold, 1992, p.20, tradução livre.

Ao aprofundar suas análises sobre o processo de elaboração de políticas, Ball (1994) acrescenta ao ciclo outros dois contextos: o contexto de resultados ou efeitos e o contexto de estratégia política. No contexto de resultados ou efeitos, as políticas são analisadas em termos dos seus impactos sobre as desigualdades existentes e as formas de injustiça. A análise do contexto dos resultados ou efeitos preocupa-se com as questões de justiça, igualdade e liberdade individual. Ball (1994) faz uma distinção entre efeitos de primeira ordem e efeitos de segunda ordem:

Os efeitos de primeira ordem são mudanças na prática ou estrutura (sendo evidentes em locais particulares ou no sistema como um todo). Os efeitos

Contexto de influência

Contexto da prática Contexto de produção do

texto político production

de segunda ordem são o impacto dessas mudanças nos padrões de acesso social, oportunidade e justiça social.32 (BALL, 1994, p. 25, tradução livre). Por último, o contexto de estratégia política volta-se para o combate das desigualdades geradas pela política, por meio de um conjunto de atividades sociais e políticas organizadas para esse fim. Na análise de Mainardes (2006, p. 60), este contexto exige “que o pesquisador assuma responsabilidade ética com o tema investigado, apresentando estratégias e atividades para se lidar mais eficazmente com as desigualdades identificadas na política.” O autor argumenta que o aspecto essencial desse contexto é o compromisso do pesquisador em contribuir para o debate em torno da política e para sua compreensão crítica.

Cumpre aqui ressaltar, assim como o faz Mainardes (2006), o caráter não linear, não sequencial destes contextos. Não se trata de etapas ordenadas, mas de uma abordagem onde esses contextos se dialogam, se inter-relacionam. Ball esclarece esta relação em entrevista concedida à Mainardes e Marcondes:

Assim, dentro do contexto de prática, você poderia ter um contexto de influência e um contexto de produção de texto, de tal forma que o contexto de influência dentro do contexto da prática estaria em relação à versão privilegiada das políticas ou da versão privilegiada da atuação. Assim, podem existir disputas ou versões em competição dentro do contexto da prática, em diferentes interpretações de interpretações. E, ainda, pode haver um contexto de produção de texto dentro do contexto de prática, na medida em que materiais práticos são produzidos para utilização dentro da atuação. (MAINARDES; MARCONDES, 2009, p. 307).

Essa característica é a que se faz mais pertinente para esta pesquisa, na medida em que se propõe a compreender como o trabalho docente se estrutura e se organiza frente à construção flexível, inacabada e constantemente ressignificada do currículo no chão da escola.

32 First order effects are changes in practice or structure (which are evident in particular sites and

across the system as a whole), and second order effects are the impact of these changes on patterns of social access, opportunity and social justice.

5 O CAMPO DE ESTUDO

Neste capítulo faço breves considerações sobre a rede municipal de ensino de Belo Horizonte e apresento a Escola Arco-íris, descrevendo sua história, os principais aspectos de sua organização pedagógica e administrativa, os recursos humanos e materiais disponíveis, o cotidiano do 2º turno e a organização do 1º ciclo de formação humana.