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O protagonismo do trabalho do professor no processo educativo evoca, nas políticas educacionais, reflexões sobre seu significado, suas atribuições e o seu papel na educação. Por isso abordarei, neste tópico, os contornos dados ao trabalho

docente em textos oficiais publicados a partir da década de 1990. Considera-se aqui como texto oficial “[...] aquele produzido a partir de fonte oficial e que se caracteriza por expressar posições pedagógicas e políticas de órgãos públicos reguladores da política educacional.” (FRADE; SILVA, 1998, p.97).

Nos anos de 1990 o Brasil vivenciava intenso processo de redemocratização, este instaurado desde a Constituição de 1988. O cenário político era favorável à concretização de ideias educacionais há muito tempo defendidas. Esse foi também um período caracterizado por um processo de globalização econômica, cultural e social e de redefinição das relações de trabalho. Em 1996, a promulgação da Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996), ocorreu em um longo processo de articulações entre grupos políticos e a sociedade civil, marcado por inúmeras pressões de educadores progressistas.17 Ainda que o texto final não tenha legitimado por completo as propostas desses educadores, a lei garantiu importantes avanços no campo educacional. As concepções de educação e ensino e as atribuições dos entes federativos e das instituições escolares foram então consideravelmente redefinidas no plano legal. No tocante aos estabelecimentos de ensino, a Lei apontava a possibilidade de mudança na estrutura e na organização das instituições escolares, tanto em termos administrativos quanto pedagógicos; um envolvimento maior dos docentes na gestão da escola; a possibilidade da organização em ciclos como forma de qualificação do tempo e espaço escolar; a flexibilização nas formas de avaliação (menos quantitativas e mais qualitativas).

Em contrapartida, a mesma lei sistematizava a implantação de instrumentos de controle para avaliar os resultados da educação, que tem sido pensada cada vez mais em termos de metas quantitativas pelas políticas de governo. Esses aspectos já indicavam redirecionamentos de tradições pedagógicas e, consequentemente, do trabalho do professor. Neste período, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso desencadeou intensa campanha nos meios de comunicação sobre a qualidade da educação básica, apontando que a situação de crise instalada no sistema de ensino era provocada, dentre outros fatores, pela má formação dos

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Assim como Santos (2012, p. 34), neste trabalho utilizo as expressões “educadores progressistas” ou “educadores críticos”, para me referir aos profissionais e intelectuais cujas propostas pedagógicas enfatizam o compromisso político da educação, defendem a escolarização das camadas populares e consideram o processo educacional como oportunidade de emancipação dos segmentos e grupos marginalizados e discriminados econômicamente, social e culturalmente.

professores e sua desmotivação no trabalho. (LÜDKE, 2004). Os parâmetros e as diretrizes curriculares foram alguns dos encaminhamentos para se sair da crise apontada.

Em seguida à promulgação da LDB de 1996, o governo federal publica os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), documento que visava a renovação e a reelaboração curricular e defendia concepções amplamente divulgadas na década sobre o papel da escola para a construção da cidadania, bem como a importância de se construir um Projeto Político-Pedagógico coletivo e a necessidade de tornar a aprendizagem mais significativa para os alunos. De acordo com o documento, o trabalho docente deve mediar a relação entre conhecimento e aluno, apresentando conteúdos e atividades de aprendizagem que o levem a compreender por que aprende e para que aprende (BRASIL, 1997). O trabalho desenvolvido pelo professor em sala de aula deve transitar entre a lógica individual e coletiva da aprendizagem, atendendo as necessidades específicas dos alunos e atentando para os fatores sociais, culturais e históricos que permeiam essas necessidades. Cabe ainda ao professor, segundo o documento, ampliar as atividades em grupo, apresentando tarefas que estimulem a interação e a cooperação entre os estudantes e mudando, assim, a tradição de organização da sala de aula. Assim como a LDB de 1996, os Parâmetros reforçam a importância da participação dos professores na definição do Projeto Político-Pedagógico das instituições escolares, entendendo que o trabalho docente engloba atividades que vão além da sala de aula.

Ao final da década de 1990 e durante a primeira década de 2000, uma série de diretrizes foi formulada no Conselho Nacional de Educação, a fim de orientar a educação em seus diferentes níveis e modalidades de ensino. Destaca-se aqui o discurso construído para o trabalho docente nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1998); Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da Educação Básica, nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena (BRASIL, 2001); Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia (BRASIL, 2005); e Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (BRASIL, 2010). Nos três documentos, podemos observar a incorporação de valores, orientações e ideias relativas ao papel das instituições de ensino e ao papel do professor frente às demandas do novo século.

As Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1998) explicitam os princípios éticos, políticos e estéticos norteadores da ação pedagógica deste nível de ensino. Espera-se que o trabalho realizado nas escolas introduza os alunos na vida em sociedade, que, segundo o documento, “busca a justiça, a igualdade, a equidade e a felicidade do indivíduo e para todos.” (BRASIL, 1998, p. 4). O incentivo às práticas de pesquisa em sala de aula, com o registro de experiências e descobertas, sinaliza o perfil esperado para o docente – de professor pesquisador, capaz de desenvolver o espírito investigativo dos alunos. Também é perceptível a intenção de que a atividade docente invista nas relações entre conhecimento, linguagem e afeto, destacando o papel das múltiplas formas de diálogo (verbais e não verbais) no processo de ensino e aprendizagem. No texto das Diretrizes, há o argumento de que grande parte do baixo desempenho dos alunos se deve à falta de diálogo e de metodologia de trabalho diversificado na sala de aula, o que justifica a defesa de que a ação pedagógica estabeleça conexões entre os conteúdos disciplinares e o modo de vida dos alunos.

De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (BRASIL, 2010), o trabalho docente deve refletir o conhecimento teórico- metodológico e teórico-prático indispensável ao desempenho de suas funções. Considera-se como “domínios indispensáveis para o exercício da docência” aqueles descritos na Resolução CNE/CP n. 1, de 15 de maio de 2006, a saber:

o conhecimento da escola como organização complexa que tem a função de promover a educação para e na cidadania; a pesquisa, a análise e a aplicação dos resultados de investigações de interesse da área educacional; a participação na gestão de processos educativos e na organização e funcionamento de sistemas e instituições de ensino. (BRASIL, 2010, p. 54).

As Diretrizes incentivam ainda o uso das tecnologias de informação e comunicação para se criar novos métodos didático-pedagógicos adequados ao perfil dos alunos atualmente presentes na escola, alunos nascidos “na era digital”.

O documento, ao explicitar as características das diversas modalidades de educação (indígena, quilombola, especial, profissional e tecnológica, à distância, do campo), aponta a necessidade de formação específica para o corpo docente que atua nessas modalidades. Por sublinhar o desenvolvimento de práticas educacionais inclusivas, as diretrizes enfatizam a articulação entre os trabalhos do professor da

classe comum, responsável pela regência no ensino regular, e do professor do atendimento educacional especializado, responsável pelo atendimento de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação no contra-turno escolar.18 Analiso que essa foi uma forma encontrada para auxiliar os professores da classe comum na educação das crianças com necessidades de atendimento diferenciado, ampliando as possibilidades de desenvolvimento dessas crianças.

Nas Diretrizes Curriculares para a formação dos professores da Educação Básica (BRASIL, 2001), os aspectos que definem a atuação dos cursos de formação sinalizam a intenção de preparar o professor para exercer uma atividade reflexiva e criativa, não limitada a um saber-fazer. Espera-se que o futuro docente seja capaz de mobilizar os conhecimentos aprendidos e transformá-los em ação, o que significa desenvolver competências para o exercício da docência. Nesses termos, parece que o grau de qualidade do trabalho do professor está relacionado à capacidade que este possui de desenvolver competências para o exercício de sua atividade profissional, tanto em termos de ensino quanto de gestão e organização do trabalho fora da sala de aula.

Nota-se nos documentos citados a tentativa de indicar atividades inerentes ao trabalho docente, bem como sua natureza. A disputa por significados do que vem a ser este trabalho tem reflexos também nos cursos de formação e desperta a preocupação de pesquisadores que buscam identificar os conhecimentos profissionais docentes necessários à ação de ensinar. No caso da formação das professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, essa definição suscitou, no contexto brasileiro, embates acadêmicos em torno do papel dos cursos de Pedagogia, principalmente a partir da década de 1980. Nesse período, as críticas intensas às diversas habilitações oferecidas pelo curso mostraram a cisão entre aqueles que defendiam a docência como base da formação do pedagogo e aqueles que defendiam a clara distinção entre trabalho docente e trabalho pedagógico; o trabalho pedagógico sendo entendido como a atuação do profissional em um amplo

18 Na rede municipal de Belo Horizonte esse atendimento é feito por um professor capacitado pela

Secretaria Municipal de Educação, em uma escola polo e em uma sala com estrutura física e recursos materiais adequados às necessidades dos estudantes. (Quanto a isso, ver o Decreto n. 7611, de 17 de novembro de 2011, que dispõe sobre a educação especial, o atendimento educacional especializado e dá outras providências.)

leque de práticas educativas e o trabalho docente, como uma forma peculiar que o trabalho pedagógico assume na sala de aula. (LIBÂNEO, 2005, p. 39).

As Diretrizes Curriculares do curso de Pedagogia (BRASIL, 2005), que definem como atividade docente não somente a regência de classe, mas também as atividades de planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de experiências educativas escolares e não escolares, bem como a produção e difusão do conhecimento científico-tecnológico do campo educacional, ainda permanecem objeto de questionamentos diversos no meio acadêmico. Diante do exposto, verifica-se que, nos projetos em disputa pela formação de professores e professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, a definição do que é trabalho docente também está em jogo.

Os textos legais expressam, sob a forma de um discurso normativo, ideias presentes na literatura educacional, como a reorganização da estrutura tradicional da escola, a gestão democrática, a visão do professor pesquisador e o reconhecimento da cultura do aluno como constituinte de identidades e de diferenças e permeada por elementos a serem trabalhados na escola. Nesses textos o trabalho docente é visto como atividade multifacetada. O professor planeja aulas, ensina e avalia; faz a gestão de tempos e espaços da ação pedagógica desenvolvida; lida com individualidades e coletividades na sala de aula e na escola como um todo; interage com os demais programas e projetos desenvolvidos na escola voltados para a inclusão, para o aumento de tempo de permanência dos alunos na escola, para questões de saúde; faz a articulação entre conhecimentos acadêmicos, interesses da comunidade escolar e interesses governamentais; é recomendado que ele trabalhe em equipe, interprete e utilize a linguagem e vários instrumentos produzidos ao longo da evolução científica, tecnológica e econômica.

Evidentemente, o perfil descrito acima é difícil – senão impossível – de ser encontrado em sua globalidade dentro das escolas, por diversos fatores. Alguns, relacionados às condições de trabalho e a uma formação insatisfatória diante do volume de conhecimento produzido no campo educacional e das exigências governamentais; outros, a uma distância entre a pesquisa educacional e a prática da escola.

Os sentidos atribuídos ao trabalho docente incluem um conjunto de ideias que abarcam discursos governamentais, acadêmicos e oriundos dos próprios docentes, todos constituindo-se e consolidando-se em determinados contextos históricos,

sociais, políticos e econômicos. No entanto, há uma distância considerável entre as recomendações oficiais e as concepções educacionais, de um lado, e a prática educativa desenvolvida nas escolas, de outro. O caráter abstrato de muitas teorias e a implementação de reformas educacionais pensadas para a escola e não com ela são fatores que reforçam esse distanciamento. Além disso, se, por um lado, os textos oficiais indicam a importância do professor no processo de socialização dos conhecimentos escolares, da transmissão da cultura e na dinâmica social, percebe- se, por outro, uma desvalorização crescente nos aspectos que poderiam garantir a profissionalização docente, tais como carreira, salário, autonomia e prestígio social.

A pesquisa educacional muito tem contribuído para estimular novas formas de pensar a educação, para colocar os educadores e as práticas pedagógicas em constante processo de reflexão sobre seu papel socializador e para auxiliar a entender a escola como uma instituição em constante transformação. Entretanto, esse debate não chega aos professores na proporção desejável, conforme argumenta Lüdke:

Sua formação, seu papel, sua carreira, seu destino são intensamente discutidos pela academia e apenas uma pequena parte das discussões chega até eles, ainda assim filtrados pelas obras didáticas, ou pelas propostas enviadas pelos órgãos governamentais. Estas já apresentam também o produto de uma filtragem das ideias oferecidas pela literatura em favor das metas consideradas prioritárias para a reforma proposta. (LÜDKE, 2004, p. 185).

Além disso, o conhecimento produzido que chega ao professor vem acompanhado de poucos apontamentos que o auxiliem a traduzir a linguagem acadêmica para lidar com a complexidade do cotidiano escolar. Essa crítica já foi elaborada por Apple (1995) na década de 1980, ao questionar a linguagem para poucos utilizada pela teorização crítica, reproduzindo a separação entre concepção e execução que está no centro da divisão do trabalho. Nesta mesma perspectiva, Moreira argumenta:

A teorização curricular crítica e pós-crítica tem sido acusada de restringir-se à linguagem da denúncia e da desconstrução, abstendo-se de fornecer princípios que orientem o professorado em ações mais efetivas nas escolas e nas salas de aula. Em outras palavras, poucas vezes os autores críticos e pós-críticos têm sido pródigos na proposição de alternativas. (MOREIRA, 2004, p. 38).

Ao professor resta, então, a criatividade e a inventividade para aliar demandas do Estado, demandas acadêmicas, da comunidade local e do cotidiano escolar, traduzindo-as numa prática que dê conta da heterogeneidade de sua turma, de alunos que não recebem cuidados básicos (físicos e emocionais), de uma carga horária sufocada por um currículo ainda bastante fragmentado.

Por um lado, observa-se que a implementação de reformas no estilo top-down (de cima para baixo), que desconsideram as reais condições de trabalho do professor e não oferecem orientações mais objetivas à prática, também tem repercutido pouco no chão da escola. Muitas dessas reformas incorporam discussões das teorias educacionais como forma de legitimar os modelos de regulação que pretendem impor, na medida em que utilizam conceitos e ideias oriundas dos movimentos sociais e da comunidade acadêmica a serviço de políticas de caráter mercadológico. Nessas reformas, o lado árduo do trabalho docente é mascarado pela descrição de uma atividade, no máximo, desafiante e transformadora.

Por outro lado, alguns textos legais parecem incorporar o discurso legitimado nos trabalhos e pesquisas acadêmicas até os limites que lhes convêm; são menos diretivos e sua elaboração conta com maior participação da comunidade educacional, que opina em fóruns, seminários, encontros, congressos, etc.. Nesses textos é concedida autonomia para que o professor direcione e construa sua prática, já que este é um profissional crítico e reflexivo, mas ainda é frágil o esclarecimento dos meios para se construir um trabalho de real qualidade.

Há, portanto, um descompasso entre as novas configurações do trabalho docente e as condições nas quais esta atividade se concretiza, deixando a sensação de que, para dar conta de todas as demandas, o professor precisa ser um “super- herói”. No contexto brasileiro, esse descompasso tem levado muitos pesquisadores a denunciar os processos de intensificação do trabalho do professor, à medida que novas funções são incorporadas às atividades docentes (gestor, estimulador de programas paralelos dentro da escola, membro de conselhos, colegiados, etc.) e novas concepções e tarefas são incorporadas à educação escolar (atenção às diferenças, diversidade cultural, social, questões de gênero, raça, etnia, sexualidade). É importante lembrar que várias dessas dimensões ligadas à maior participação do docente nos processos de gestão escolar e à necessidade de trabalhar considerando a diversidade cultural do aluno e do seu entorno fazem parte

do discurso dos educadores considerados críticos e progressistas. No próximo tópico apresento esse debate.