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A literatura educacional sobre as repercussões de algumas reformas implementadas a partir da década de 1990 no trabalho docente tem levantado questionamentos importantes para se compreender criticamente a relação entre o trabalho do professor e o currículo. No Brasil, os estudos em geral denunciam a presença, em grande parte dessas reformas, de ideias ligadas aos conceitos de produtividade, eficácia, excelência e eficiência, bem como a padronização e massificação de alguns processos pedagógicos sob o discurso da universalidade. Além disso, indicam o impacto dessas reformas nas relações de trabalho desses profissionais, nos processos de trabalho na escola e nos procedimentos normativos que determinam a carreira, a remuneração e a autonomia dos professores. (DUARTE, 2010).

Se anteriormente a prática docente contava com estruturas hierárquicas mais estáveis, onde as regras eram claras e definidas, atualmente ela fundamenta-se em formas burocráticas de controle, mais instáveis, mais vulneráveis e menos conhecidas. (OLIVEIRA, 2007). O trabalho do professor incorpora um rol de atividades que não se restringem ao seu desempenho na sala de aula, envolvendo a gestão dos processos escolares mais amplos, como a definição do Projeto Político- Pedagógico, a discussão do currículo, a participação no colegiado escolar, etc. Desta forma, supera-se a ideia de docência restrita às atividades de sala de aula:

[...] o trabalho docente compreende não só aquele realizado em sala de aula, como também o processo que envolve o ensino e a aprendizagem e, ainda, a participação do professor no planejamento das atividades, na elaboração de propostas político-pedagógicas e na própria gestão da escola, incluindo formas coletivas de realização do trabalho escolar e de articulação da escola com as famílias e a comunidade. (DUARTE, 2008, p.222).

A produção acadêmica voltada à análise das implicações das reformas no trabalho do professor demonstra alguns aspectos paradoxais do discurso da gestão democrática presente nas reformas educacionais, pois, ao mesmo tempo em que se defende a maior participação dos professores e da comunidade na gestão

educacional, verifica-se que essas atividades têm intensificado o trabalho docente, repercutindo nas condições de trabalho, na construção da identidade profissional e na saúde do professor.

Vieira (2002), ao discutir o desenvolvimento de políticas públicas educacionais a partir da década de 1990, enfatiza que as mesmas são elaboradas com base em princípios neoliberais, marcados por orientações mercadológicas e pelo discurso da gestão empresarial, criando na educação e nas escolas uma cultura de avaliação que leva à padronização e ao controle do trabalho docente. Segundo o autor,

[...] os discursos e as propostas educacionais estabelecem controles cada vez mais rígidos sobre o processo de trabalho docente, na garantia de que a educação e seus agentes possam trabalhar para o mercado. E mesmo que o professor seja convocado a participar das decisões sobre a educação, sua participação já está determinada: deve restringir-se ao estudo da cognição, dos métodos e das didáticas que melhor ensinem as habilidades e as competências exigidas pela sociedade globalizada. (VIEIRA, 2002, p. 125).

Para Oliveira (2004, p. 1132), as reformas educacionais da década de 1990 desencadeiam um processo de desqualificação e desvalorização do trabalho docente, pois “[...] tendem a retirar [dos professores] a autonomia, entendida como condição de participar da concepção e organização de seu trabalho.”. Segundo a autora, tais reformas demarcam uma nova regulação de políticas educacionais e instauram novas formas de organização e gestão escolar, que, por sua vez, implicam novas demandas para o professor no exercício de sua atividade profissional, alterando a natureza e a definição do trabalho docente.

Segundo Hypólito, Vieira e Pizzi (2009, p. 109), as reformas curriculares “tendem a favorecer uma intensificação do trabalho docente, com características diferentes dependendo do contexto em que ocorrem.”.

Em um contexto mais conservador os processos de intensificação tendem a ser mais próximo do conceito clássico, com aumento de trabalho em sala de aula, práticas menos criativas, muitas tarefas realizadas fora da escola e piores condições de trabalho. Nos moldes mais gerencialistas, que temos vivenciado mais recentemente, os processos de intensificação tendem a apresentar maior distanciamento do conceito clássico, e podem aparentemente ter maior tempo de preparo fora da sala de aula, maior possibilidade de práticas curriculares mais criativas, condições de trabalho organizadas a partir de modos de gestão mais abertos [...]. Contudo, o que podemos estar vivenciando são evidências cada vez maiores de um

processo de auto-intensificação do trabalho docente. (HYPÓLITO; VIEIRA; PIZZI, 2009, p. 109).

Hypólito, Vieira e Pizzi (2009, p. 101) apontam, ainda, que reformas educativas e curriculares trazem modificações para o trabalho docente, em termos de “maior ou menor controle sobre o trabalho pedagógico, maior ou menor autonomia do professorado sobre o seu fazer e pensar e em termos de aumento do grau de intensificação do trabalho realizado.”. Para os autores, os efeitos de tais reformas sobre o trabalho do professor repercutem diretamente sobre as práticas curriculares, tornando inseparáveis os processos de controle da ação docente dos processos de controle do currículo, como evidenciam as políticas de avaliação.

Ao discutir os mecanismos de regulação educacional acionados pelo Estado neoliberal, Hypólito (2010) aponta a centralidade dos aspectos econômicos e mercadológicos em detrimento de aspectos políticos e sociais, trazendo efeitos consideráveis ao trabalho do professor. Neste processo, como coloca o autor, ocorre a fabricação de uma determinada identidade docente, necessária para se garantir a normatização do que vem a ser a docência dentro do modelo gerencialista: um profissional que articula suas experiências, sua formação e a organização do seu trabalho pedagógico às metas e resultados a serem alcançados; um profissional preparado para colaborar com a implementação local das políticas curriculares, estimulado pelo discurso do trabalho coletivo e pelo envolvimento nos processos de tomada de decisão da escola. Em contrapartida, conforme nos mostra Hypólito (2010), um profissional com a responsabilidade de preencher mais relatórios e registros escolares, com menos tempo de planejamento e estudo e com responsabilidades e tarefas extras.

Os autores têm analisado a intensificação do trabalho docente diante da ampliação das tarefas administrativas e burocráticas no processo de ensino e aprendizagem, mas também em relação às representações dos docentes quanto à própria profissionalidade. Estar diante de tantas propostas de reformas educacionais, sentindo-se despreparado para efetivar a mudança esperada e desejada por eles próprios, termina por provocar um processo de autointensificação do trabalho. Em relação às professoras dos anos iniciais do ensino fundamental, esse processo é reforçado pela presença da noção do aspecto de cuidado, aspecto este identificado na pesquisa de Garcia e Anadon:

As novas exigências no processo de trabalho escolar e docente resultam na intensificação do trabalho pelo menos sob dois aspectos: a intensificação pela ampliação das demandas profissionais na vida das professoras, impelidas desde uma perspectiva administrativa e burocrática; e a autointensificação, pela exploração do sentimento de profissionalismo das professoras e de suas autoimagens calcadas no cuidado e no zelo que caracterizam historicamente a educação da infância. (GARCIA; ANADON, 2009, p. 69).

Assunção e Oliveira (2009) discutem o processo de intensificação do trabalho docente no contexto das reformas educacionais, tendo em vista os indicadores de saúde do professor revelados nas pesquisas da área. Para as autoras, os resultados dessas pesquisas permitem levantar hipóteses sobre a relação entre a sobreposição de tarefas e o aumento do cansaço físico, vocal e mental do docente. O professor, esgotado com a intensificação do trabalho, teria sua saúde mais fragilizada, tornando-se mais susceptível ao adoecimento. Neste sentido, as autoras ressaltam que

[…] o sofrimento no trabalho, associado ao adoecimento em estudos específicos, está sempre ligado a um conflito entre a vontade de bem fazer o seu trabalho, de acordo com as novas regras implícitas da profissão, e a pressão que os leva a certas regras para aumentar a sua produtividade. (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009, p. 366).

As autoras concluem que, além de comprometer a saúde dos docentes, o processo de intensificação do trabalho pode comprometer também a qualidade da educação e os fins da escola, pois, diante de um contexto de sobrecarga e demandas cada vez mais crescentes, os professores se veem na situação de eleger o que é primordial e o que é secundário na realização de sua atividade.

As pesquisas realizadas entre 1990 e 2003 sobre o trabalho docente na rede municipal de Belo Horizonte também identificam o fenômeno da intensificação a partir da implementação da Proposta Político-Pedagógica Escola Plural19, conforme podemos verificar em Duarte (2009). Tais pesquisas argumentam que, nesta proposta, as reconfigurações das relações de trabalho dos profissionais da educação, pautadas na organização do trabalho coletivo, foram de encontro às condições de trabalho necessárias para responderem à proposta. Assim, trabalhar com projetos multidisciplinares e desenvolver um Projeto Político-Pedagógico próprio e em sintonia com a comunidade escolar não foram ações acompanhadas

de mudanças nas condições de trabalho, envolvendo, por exemplo, o tempo para planejamento, para a elaboração de materiais didáticos e para a formação dos docentes. A dupla jornada da mulher, que acumula às atividades profissionais as tarefas domésticas, além da extensão de jornada (a “dobra”) foram outras formas de intensificação encontradas nos estudos. Segundo Duarte (2009), as pesquisas discutiram a intensificação em relação tanto ao trabalho na sala de aula quanto fora dela.

Em relação ao primeiro [sala de aula], trata-se da heterogeneidade das turmas, ou seja, crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais; com dificuldades de aprendizagem; provenientes de diferentes culturas e etnias; vindas de classes sociais desfavorecidas, com demandas sociais diversas, que ultrapassam os objetivos da escola e que não têm como ser atendidas por ela. Em relação ao trabalho, além da regência de classe, indicam o aumento de atividades e responsabilidades assumidas pelos professores dedicados a reuniões, planejamentos conjuntos, avaliação processual dos alunos, participação em instâncias coletivas, encontros com pais e comunidade, formação profissional continuada. (DUARTE, 2009, p. 234).

Os estudos sobre intensificação têm contribuído para denunciar o descompasso entre o perfil profissional desejado e as condições precárias de exercício da profissão. Apesar dessas críticas à Proposta Escola Plural, Santos (2012) considera que esta e outras propostas, como a Escola Cidadã (Porto Alegre), a Escola Candango (Distrito Federal) e a Escola Cabana (Belém), foram elaboradas a partir de critérios bem diferentes da visão economicista e gerencialista que orientaram outras reformas no mesmo período. Ao lado disso, a autora argumenta que é preciso reconhecer o caráter híbrido de algumas reformas analisadas apenas pelo viés econômico, já que grande parte delas mescla o discurso gerencialista da educação com aspectos ou medidas difundidas pelo discurso crítico ou progressista; enquanto aquele se fundamenta em aspectos econômicos, este pensa a educação como um processo de formação humana. (SANTOS, 2012).

Diante dessa constatação, julgo que o debate polarizado da intensificação pode levar à desvalorização de atividades importantes ao exercício profissional, ao invés de fortalecer a luta para a conquista das condições de realizá-las. É importante considerar que ensino e cuidado fazem parte da agenda dos educadores críticos. Da mesma forma, a participação do docente nas atividades de gestão, na definição do Projeto Político-Pedagógico da escola, de seu segmento e de decisões curriculares integra o discurso dos educadores progressistas. O problema nesses discursos é

que, ao defenderem certos aspectos da docência, muitas vezes se esquecem de conjugar tais demandas ou posições com a análise das condições em que o trabalho docente se realiza. É importante, portanto, considerar que dificilmente uma proposta educacional estará orientada por ideias apenas produtivistas ou apenas progressistas, pois geralmente é marcada pelo hibridismo de ideias em que ideais de diferentes orientações se mesclam na busca de legitimidade. (SANTOS, 2010).

Considerando o exposto e corroborando o que diz Roldão (2007a, 2007b) sobre a ação de ensinar enquanto aspecto caracterizador da atividade docente, entende-se que outros conflitos e tensões instauram-se na definição da natureza do trabalho do professor, além daqueles já anunciados pela autora em relação à noção de ensino. O redimensionamento da atividade docente para além da sala de aula nos leva a repensar a atividade do “profissional do ensino” (ROLDÃO, 2007a, 2007b) em outros espaços, e em relações socioprofissionais que envolvem seus pares e outros agentes da educação além do aluno. Este redimensionamento instaura, a meu ver, uma linha tênue entre aspectos que refletem uma intensificação do trabalho do professor e aqueles que são inerentes à função de ensinar, tais como processos de planejamento e avaliação. Em relação a esses processos, podemos questionar se a participação do docente na definição do Projeto Político-Pedagógico e nas instâncias de decisões coletivas não o ajudaria a definir e planejar seu trabalho e realizá-lo em consonância com seus pares.

O problema do aumento das funções docentes é não ter sido acompanhado da ampliação da carga horária e do aumento salarial do professorado. Neste sentido, indaga-se: qual seria a medida, os aspectos distintivos entre intensificação e atividades próprias do exercício profissional, a fim de que não percamos, ante um processo de intensificação, a compreensão daquilo que é inerente ao trabalho docente? Torna-se necessário, portanto, aprofundar a discussão sobre a natureza do trabalho docente, em um momento em que é cada vez mais urgente reforçar sua função de ensinar. No entanto, é reconhecida aqui a importância de sua atuação na gestão das instituições escolares, na elaboração de propostas curriculares e na luta pela melhoria das condições de trabalho. O debate sobre a profissão professor, com base na literatura da sociologia das profissões, nos oferece alguns aportes teóricos para essa reflexão.