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3 O DEBATE EPISTEMÓLOGICO DA ÁREA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

3.1 O DEBATE EPISTEMOLÓGICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA BRASILEIRA: OU DE COMO ESTA DEFINE A SUA RELAÇÃO COM A CIÊNCIA

3.1.4 A abordagem crítico-superadora

A abordagem crítico-superadora é sistematizada por um Coletivo de Autores (professores Carmen Lúcia Soares, Celi Nelza Zülke Taffarel, Maria Elizabeth Varjal Medicis Pinto, Lino Castellani Filho, Micheli Ortega Escobar e Valter) na obra “Metodologia do Ensino de Educação Física” publicada em 199296. Esta tornou-se uma importante referência

no campo da produção do conhecimento em Educação Física e, inclusive, da educação.

Considerando o objetivo de apresentar a abordagem crítico-superadora como abordagem teórico-metodológica a partir da qual a relação da Educação Física com a ciência é respondida, nos atemos a explicitar a definição de Educação Física e a delimitação de seu objeto de estudo como pontos centrais de nossa exposição. Isto não significa, entretanto, obnubilar a elaboração teórica contida na abordagem crítico-superadora sobre o currículo, o trabalho pedagógico e o trato com o conhecimento com a cultura corporal, mas reconhecer e ressaltar que, a partir de uma determinada teoria do conhecimento, desenvolve-se uma abordagem teórico-metodológica mediante a qual os componentes acima são definidos (Educação Física, objeto de estudo, princípios curriculares e metodológicos para o trabalho pedagógico com a cultura corporal, os ciclos de escolarização, etc.). Esta teoria do

96 Após 14 reimpressões da primeira edição, em 2012 a Editora Cortez publicou a segunda edição desta obra,

acrescentada do depoimento dos autores, sistematizados pelo Grupo de Pesquisa Estudos Etnográficos em Educação Física e Esporte (Ethnós) da UPE.

conhecimento é, nomeadamente, a dialética materialista. Cabe ressaltar a necessidade de não perder de vista a articulação entre teoria do conhecimento, teoria da aprendizagem e do desenvolvimento, teoria pedagógica e abordagem metodológica – neste caso, a articulação entre a dialética materialista, a psicologia histórico-cultural, a pedagogia histórico-crítica e a metodologia crítico-superadora – e destes componentes com um dado projeto histórico (na abordagem teórico-metodológica em questão, o socialismo como transição ao comunismo).

A Educação Física é definida, a partir da abordagem crítico-superadora, como a reflexão pedagógica sobre o patrimônio acumulado historicamente e desenvolvido socialmente no âmbito a cultura corporal – jogos, danças, lutas, esporte, ginástica, etc. (COLETIVO DE AUTORES, 2012). Na escola, a Educação Física configura-se como “disciplina que trata, pedagogicamente, na escola, do conhecimento de uma área denominada aqui de cultura corporal.” (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 62). O objetivo fundamental do trato com o conhecimento da cultura corporal é explicar criticamente a “especificidade histórica e cultural dessas práticas e participar de forma criativa, individual e coletiva, na construção de uma cultura popular e progressista, superadora da cultura de classes dominantes” (ESCOBAR, 2012, p. 128). Os conteúdos da cultura corporal (jogos, ginástica, esporte, lutas e dança) foram/são elaborados em determinadas épocas históricas (determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção) como respostas a determinadas necessidades humanas.

Neste sentido, no que tange à relação da Educação Física e a ciência, a primeira não é uma ciência (nos moldes da pretensão das Ciências do Esporte ou da Ciência da Motricidade Humana), antes, é uma disciplina que reflete pedagogicamente da cultura corporal. E, enquanto reflexão pedagógica sobre a cultura corporal, fundamenta-se no conhecimento científico das demais disciplinas científicas e, em seu interior, desenvolve-se e consolida-se a partir da produção do conhecimento científico.

O objeto de estudo da Educação Física é definido pela abordagem crítico-superadora, portanto, como a cultura corporal. Esta é conceituada como:

[...] o acervo de formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizadas pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser identificados como formas de representação simbólica de realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas. (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 39).

Este acervo, que resulta do modo de produzir e reproduzir a vida, do viver concreto dos seres humanos que se produz na relação com a natureza, com os outros seres humanos e

consigo mesmo, que resulta de “conhecimentos socialmente produzidos e historicamente acumulados pela humanidade que necessitam ser retraçados e transmitidos para os alunos na escola” (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 40). Conforme Escobar (2012):

Ao fundamentar como objeto de estudo da disciplina Educação Física as atividades que configuram uma ampla área da cultura, provisoriamente denominada de cultura corporal, o Coletivo de Autores defendeu a visão histórica que traz a atividade prática do homem, o trabalho e as relações objetivas materiais reais do homem com a natureza e com outros homens, para o centro do sistema explicativo. Trouxemos a prática do homem para a explicação do que é a Educação Física. (p. 124).

Em suma, traz-se, como fundamento ontológico da definição de cultura corporal, o trabalho como atividade vital humana. Deste modo, a cultura corporal corresponde a um acervo de conhecimentos que se expressa na forma de atividades corporais que “materializam as relações múltiplas entre experiências ideológicas, políticas, filosóficas e sociais e os sentidos lúdicos, estéticos, agonistas, competitivos ou outros, relacionados à realidade, às necessidades e as motivações do homem.” (ESCOBAR, 2012, p. 127). Ressaltamos que a definição de cultura corporal elaborada em 1992 apresenta a “expressão corporal” como a forma pela qual as atividades corporais se exteriozam e exteriozam sentidos e significados. O conceito recebe maior precisão em textos posteriores (tais como Taffarel e Escobar (2009) e Escobar (2012)), na medida em que as atividades corporais que compõem o patrimônio denominado cultura corporal são definidas como a materialização das experiências ideológicas, políticas, religiosas, filosóficas, etc. Conforme Taffarel e Escobar (2009, grifo nosso):

MARX, (1986), nos diz que o homem representa, ele próprio, frente à natureza, o papel de uma força natural. Ele põe em movimento, pelas suas pernas, braços, cabeça e mãos as forças de que seu corpo é dotado para se apropriar das matérias e dar lhes uma forma útil à sua vida. Vê-se, então, que essas atividades não objetivam a “expressão corporal” de idéias ou sentimentos. Elas são a materialização de experiências ideológicas, religiosas, políticas, filosóficas ou outras, subordinadas às leis histórico sociais que originaram formas de ação socialmente elaboradas e, por isso, são portadoras de significados ideais do mundo objetal, das suas propriedades, nexos e relações descobertos pela prática social conjunta.

O geral destas atividades (sejam criativas ou imitativas) é que o seu produto não é material e nem é separável do ato de sua produção (produção e consumo estão imbricados) e recebe dos seres humanos um valor de uso particular “por atender aos seus sentidos lúdicos, estéticos, artísticos, agonísticos, competitivos e outros relacionados à sua realidade e às suas motivações.” (TAFFAREL; ESCOBAR, 2009).

A compreensão da cultura corporal como atividade não material não significa dissociá- la da sua raiz: o modo de produzir e produzir a vida que se opera com características

peculiares de acordo com o grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção nos diferentes períodos históricos. De acordo com Taffarel e Escobar (2009):

Sua complexa natureza, sua subjetividade e as contradições entre os significados de natureza social e os sentidos de natureza pessoal que as envolvem, impede defini-las e explicá-las como “ações motoras”. Além do mais, a inadequação dessa forma de abordagem objetiva esconder as relações entre a produção de conhecimento e o processo produtivo e as finalidades do seu uso no âmbito escolar.

A abordagem crítico-superadora demarca a produção do conhecimento científico no âmbito da Educação Física a partir da base teórica dialética e materialista. A sua contribuição teórico-metodológica ultrapassa o trato com o conhecimento da cultura corporal na Educação Básica e perpassa a produção do conhecimento sobre o currículo, as políticas públicas de educação, esporte e lazer, a formação de professores de Educação Física e a produção do conhecimento da área. Em nosso entendimento, este aspecto, associado ao vínculo científico, epistemológico, pedagógico e político com a classe trabalhadora e sua luta pelo projeto histórico socialista e à radicalidade que exige do conhecimento produzido e daqueles que a utilizam como referência teórico-metodológica, colocam no centro do debate epistemológico atual na Educação Física o embate entre a referência marxista e os “giros linguísticos” – tema da próxima seção.

3.1.5 A especificidade do atual debate epistemológico na área da Educação Física a