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A DISPUTA DE PROJETOS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA

3 O DEBATE EPISTEMÓLOGICO DA ÁREA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

4 EMBATE DE PROJETOS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA E A OPÇÃO PELA LICENCIATURA AMPLIADA

4.3 A DISPUTA DE PROJETOS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA

A formação de professores de Educação Física não permanece incólume às disputas engendradas pelas classes em luta no modo de produção capitalista. Distintos projetos de formação humana e projetos históricos disputam os rumos da formação destes professores.

Nosso intento nesta seção é recuperar, em linhas gerais, aspectos desta disputa, situando a proposta da Licenciatura Ampliada como projeto alinhado com os interesses e a experiência história da classe trabalhadora no seio da luta de classes.

Considerando que o projeto hegemônico de formação de professores de Educação Física adquire a sua forma mais desenvolvida a partir da reforma da educação brasileira na década de 1990, com a homologação das DCN, iniciamos nossa exposição com este aspecto – sem desconsiderar, entretanto, os embates que marcam historicamente a educação brasileira127.

No decurso da década de 1990, a educação brasileira passa por um generalizado processo de reforma conduzido pelo Estado. Esta reforma consiste no ajuste da política educacional brasileira às “orientações” dos organismos internacionais, geridos pelas grandes potências econômicas mundiais (países imperialistas), que impõem aos países “em desenvolvimento” ajustes estruturais (TAFFAREL, 1998; SILVA, 2002; MELO, 2004). Silva (2002) alude a este processo de ajuste referindo-se à indução dos organismos internacionais sobre a política educacional brasileira e ao consentimento do Estado brasileiro. Em Frigotto (2011), este consentimento é expresso na menção à não disputa dos governos Lula e Dilma por um projeto antagônico de educação. Ressaltamos, ainda, que o conteúdo desta reforma, do ponto de vista pedagógico, consiste na inserção das “aprender a aprender” concepções balizadoras da formação da classe trabalhadora.

Após a homologação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9394/1996), iniciam-se reformas em todos os níveis e modalidades de ensino, as quais viriam a se consolidar no decurso da década de 2000, como é o caso da reestruturação curricular dos cursos de licenciatura, induzida pelas DCN para a formação de professores da Educação Básica (Resolução CNE/CP 01/2002) e pelas DCN específicas a cada área de conhecimento – no caso da Educação Física, a Resolução CNE/CES 07/2004128. Estas reformas expressam alterações no processo de escolarização na Educação Básica, na formação de professores e na formação profissional em geral e abrem caminho ao recrudescimento das disputas, sempre contraditórias, entre os projetos de formação correspondentes às classes em luta.

Ademais, constata-se que esta reforma é materializada desde a década de 1990, com o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e, em caráter de continuidade, com os governos de Lula e de Dilma a partir da década de 2000. Tal continuidade é destacada por Frigotto (2011) que, ao realizar um balanço da educação no Brasil na primeira década do século XXI, pontua que tanto o governo Lula quanto o governo Dilma (governos de coalizão), eximem-se de disputar “um projeto societário antagônico à modernização e ao capitalismo dependente e, portanto, à expansão de capital em nossa sociedade” (p. 241), concentrando-se em um projeto desenvolvimentista com foco no consumo e no desenvolvimento de políticas e programas compensatórios. Ao não disputar um projeto societário antagônico, também não disputam um “projeto educacional antagônico, no conteúdo, no método e na forma” (FRIGOTTO, 2011, p. 241).

Sob a justificativa da necessidade de alterações na formação dos brasileiros, considerando as mudanças contemporâneas de um mundo “globalizado”, marcado por constantes e rápidas transformações e pelo avanço da tecnologia em todas as esferas sociais, o Estado brasileiro orquestra esta reforma pautada fundamentalmente nas “pedagogias do aprender a aprender”. Esta é referência institucionalizada pelos documentos legais que apresentam as diretrizes a orientarem as mudanças na educação brasileira.

A formação de professores para a Educação Básica é concebida, no bojo da reforma educacional brasileira, como via estratégica para a materialização do projeto hegemônico, alinhado ao capital. O Parecer CNE/CP 09/2001 expressa esta relação ao estabelecer que:

128 Em 2015, são homologadas novas DCN para os cursos de Licenciatura: a Resolução CNE/CP 02/2015, de 01

de julho de 2015. Estas DCN perspectivam uma formação de professores baseada, entre outros princípios, na “sólida formação teórica e interdisciplinar” (p. 5) dos profissionais do magistério e na articulação entre ensino, pesquisa e extensão. As DCN relativas à formação dos professores de Educação encontra-se em revisão e tem abril de 2016 como prazo previsto para a sua homologação.

A proposta de diretrizes nacionais para a formação de professores para a educação básica brasileira busca também construir sintonia entre a formação de professores, os princípios prescritos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDBEN, as normas instituídas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação infantil, para o ensino médio, e suas modalidades, bem como as recomendações constantes dos Parâmetros e Referenciais Curriculares para a educação básica elaborados pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2001, p. 5). No interior deste processo, no plano da formação de professores, tem-se a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena (expressas no Parecer CNE/CP 09/2001 e nas Resoluções CNE/CP 01/2002 e 02/2002). Para a formação de professores de Educação Física, além da indicação de observância destas diretrizes, são homologadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Educação Física em nível superior de graduação plena, expressas no Parecer CNE/CES 058/2004 e na Resolução CNE/CES 07/2004. Estes documentos legais mantêm-se coerentes com o “receituário” da reforma educacional brasileira com vistas ao ajuste ao projeto de “mundialização da educação” (MELO, 2004). Instituições privatistas e corporativistas, tal como o Conselho Federal de Educação Física (Confef) e seus Conselhos Regionais (Cref), participam diretamente do processo de elaboração das DCN, alinham-se à sua proposta de formação e realizam a sua defesa, na medida em que este converge com os seus interesses corporativos; neste caso, sobretudo, a divisão da formação entre licenciatura e bacharelado.

Este é um processo que não se dá sem disputas pela direção da formação. As críticas dirigidas às DCN, conforme Taffarel e Lacks (2005), envolvem três aspectos fundamentais: o processo, a concepção e o conteúdo.

No tocante ao processo, embora os debates engendrados e a própria elaboração destes marcos regulatórios expresse a disputa de projetos de formação humana em correspondência com luta de classe no modo de produção capitalista, na correlação de forças, os projetos que correspondem aos interesses da classe trabalhadora têm o seu espaço de resistência e de reivindicação reduzido devido à centralização do processo de elaboração destes documentos nas Secretarias do Ministério da Educação (MEC) e do Conselho Nacional de Educação (CNE). O resultado é a homologação de documentos legais que legitimam o projeto hegemônico de formação da classe trabalhadora, dos professores em geral e dos professores de Educação Física.

Para a formação de professores em geral, destaca-se a desconsideração do projeto elaborado pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope),

pautado na base nacional comum como referencial orientador da formação dos professores, “visando uma organização curricular que favoreça a articulação entre os componentes do currículo, constantes do projeto político e pedagógico de cada curso e de cada instituição formadora, assim como defende a docência como base da identidade de todo profissional da educação” (BRZEZINSKI, 2011, p. 9). Para a formação de professores de Educação Física, ressalta-se a desconsideração do projeto da Licenciatura Ampliada, elaborada pelo grupo Lepel/Faced/Ufba e pelo Movimento dos Estudantes de Educação Física (Meef) (MORSCHBACHER, 2012).

No plano da concepção, Taffarel e Santos Júnior (2010) referem-se à Resolução CNE/CES 07/2004, em uma análise passível de extensão à Resolução CNE/CP 01/2002, como “a expressão contingente de uma necessidade histórica do capitalismo de garantir a hegemonia na direção do processo de formação humana” (p. 30). Existe um projeto mundial de educação fundado no controle do processo de formação humana tendo em vista a manutenção de hegemonia do capital. Empregabilidade, flexibilidade, aprender a aprender, desenvolvimento de competências, supervalorização da prática (apreendida sob um conceito reduzido de saber fazer), negação do acesso ao conhecimento científico, entre outros, articulam-se às teses pós-modernas do fim da história, da negação da ciência, da razão e das metanarrativas, da ênfase no espontaneísmo, no efêmero e no diverso e são advogados por intelectuais, pelos organismos internacionais e pelo Estado burguês como os conceitos mais avançados e adequados às necessidades concretas do atual tempo histórico.

Consideramos que este projeto resulta na desqualificação da formação da classe trabalhadora, processo que se expressa no rebaixamento teórico da educação. Este projeto assenta-se no propósito de redução da capacidade de explicação e intervenção da classe trabalhadora na realidade com base na orientação teleológica de superação da sociedade de classes. Em um período histórico em que se acirra a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, de modo que a classe trabalhadora é continuamente aviltada em sua condição de vida a limites insuportáveis, o projeto de desqualificação da formação apresenta- se vital à burguesia para a manutenção da produção da existência sob a lógica do capital. No tocante ao conteúdo, cabe ressaltar os principais pontos de contrariedade às DCN e que desencadeiam e desencadearam inúmeros debates e embates na área da Educação Física: (a) Desenvolvimento de competências como marco referencial desses ordenamentos legais (o que expressa a referência do neoescolanovismo, do neoconstrutivismo e do neotecnicismo como bases fundantes);

(b) Divisão da formação entre licenciatura e bacharelado;

(c) Estrita vinculação da formação com o mercado de trabalho, dissociado da sua crítica e explicação radical;

(d) Intensificação da cisão entre teoria e prática, na medida em que a prática (tomada do ponto de vista do cotidiano e da experiência imediata) é exacerbada – valorização do saber fazer e do aprender a aprender;

(e) Trato fragmentado e a-histórico com o conhecimento;

(f) Orientação idealista e relativista dos referenciais teórico-metodológicos dos currículos; (g) Desvalorização do conhecimento historicamente produzido e acumulado que, levada às últimas consequências, incorre na negação da cognoscibilidade da realidade e na negação da ciência;

(h) Negligência em relação à pesquisa e extensão como lócus relevante da formação dos professores;

(i) Concepção de Educação Física e do objeto da Educação Física reduzida a uma perspectiva biologizante129.

Estes componentes, que permeiam o debate sobre a formação de professores de Educação Física desde o processo de elaboração das DCN (que se iniciou no final da década de 1990) até o período pós homologação e reestruturação dos currículos dos cursos de graduação em Educação Física (marcado pela abertura de cursos de bacharelado em Educação Física, sobretudo no setor privado do Ensino Superior), são retomados neste último período (2015-2016) com o processo de revisão das DCN (Resolução CNE/CES 07/2004) a partir de uma nova composição da correlação de forças estabelecida entre os projetos e formação em disputa e os seus signatários.

Há uma Comissão da Câmara de Educação Superior (CES) do CNE responsável pela elaboração da proposta de revisão das DCN para os cursos de graduação em Educação Física. Em 11 de dezembro de 2015, em Brasília/DF, ocorreu audiência pública para apresentar e discutir o documento de revisão das referidas DCN. De acordo com Taffarel (2015), a tendência destacada pelos representantes do CNE é a revisão das DCN na perspectiva da proposição da formação unificada na licenciatura em Educação Física. Os argumentos que

129 Cf. Lacks (2004), Taffarel e Lacks (2005), Santos Júnior (2005), Cruz (2009), Taffarel e Santos Júnior

sustentam esta tendência são: (a) os pareceres dos conselheiros do CNE indicam que os cursos não podem estar submetidos à ingerência de conselhos profissionais que não formam profissionais, mas que são responsáveis somente pela regulação do exercício da profissão; (b) a concepção sobre a caracterização da atuação dos professores de Educação Física nos campos de trabalho (o trabalho pedagógico com a cultura corporal); (c) o conhecimento tratado é o mesmo em todos os campos de atuação e nos cursos de graduação da área, tanto na licenciatura quanto no bacharelado; (d) a necessidade de superar os limites impostos na formação profissional pela ingerência do sistema Confef/Cref, que exerce forte pressão para a manutenção da divisão da formação entre licenciatura e bacharelado e, com este, o rebaixamento teórico na formação dos professores de Educação Física pela negação do conhecimento tanto aos estudantes dos cursos de bacharelado, quanto dos cursos de licenciatura; (e) a possibilidade de que a Educação Física venha a estruturar um “currículo de caráter ampliado”; (f) os resultados de estudos e pesquisas que comprovam a existência de um único objeto de estudo no qual é possível acumular o conhecimento que é tratado na intervenção profissional da área. A previsão para a definição e homologação das novas DCN é o ano de 2016 em decorrência das metas estabelecidas pelo PNE 2014-2024.

Embora o projeto hegemônico de formação da classe trabalhadora e, em particular da formação de professores em geral e dos professores de Educação Física, apareça na forma institucionalizada (via DCN), este encontra o seu contraponto no projeto elaborado a partir dos interesses da classe trabalhadora e que tem como diretrizes fundamentais a luta pelo acesso à escolarização e ao Ensino Superior e pelo acesso ao conhecimento historicamente produzido e acumulado pela humanidade, sem o qual a elevação da formação da classe trabalhadora a patamares qualitativamente superiores não é possível. Estes projetos, que encontram correspondência com a luta de classes travada no interior do modo de produção capitalista, adquirem contornos mais ou menos explícitos, a depender do grau de acirramento da correlação de forças entre as classes, sobretudo no âmbito da atual crise do capital (TAFFAREL; SANTOS JÚNIOR, 2010).

Na formação de professores de Educação Física, estes projetos expressam-se em duas proposições antagônicas: o projeto hegemônico, baseado na divisão entre licenciatura e bacharelado e na vinculação irrestrita da formação ao mercado de trabalho, e o projeto fundado a partir das necessidades e interesses históricos da classe trabalhadora no que se refere à superação do modo de produção capitalista, de base materialista e dialética e denominada, no âmbito da Educação Física, de Licenciatura Ampliada.