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A Educação Física como prática pedagógica e sua relação com a ciência

3 O DEBATE EPISTEMÓLOGICO DA ÁREA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

3.1 O DEBATE EPISTEMOLÓGICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA BRASILEIRA: OU DE COMO ESTA DEFINE A SUA RELAÇÃO COM A CIÊNCIA

3.1.2 A Educação Física como prática pedagógica e sua relação com a ciência

A terceira posição acerca da relação da Educação Física com a ciência é defendida por Valter Bracht. Nesta, Bracht (2003) não reivindica a elevação da Educação Física a ciência/disciplina científica e considera esta pretensão inadequada – seja pela crise do paradigma científico moderno, seja por aquilo que a Educação Física/Ciências do Esporte “vem sendo”.

Bracht (2003) compreende que, primeiramente, a Educação Física deve ser entendida como prática pedagógica. Isto é, “definidor de sua identidade, como prática social, é a sua característica de ser uma prática de intervenção imediata, no caso, uma prática pedagógica.” (p. 126). Assim sendo, a Educação Física é “uma prática que tematiza com a intenção pedagógica as manifestações da cultura corporal de movimento.” (BRACHT, 2003, p. 16).

O objeto da Educação Física seria a “cultura corporal de movimento” – conceito que superaria tentativas de definir o objeto desta prática pedagógica sob o viés biológico (atividade física) e/ou sob o viés psicológico (movimento humano) e situaria o “movimentar- se” no plano da cultura95:

Nessas perspectiva, o movimentar-se é entendido como forma de comunicação com o mundo que é constituinte e construtora de cultura, mas, também, possibilitada por ela. É uma linguagem, com especificidade, é claro, mas que, enquanto cultura, habita o mundo do simbólico. A naturalização do objeto da EF, por outro lado, seja alocando-o no plano do biológico ou do psicológico, retira dele o caráter histórico e como isso sua marca social. Ora, o que qualifica o movimento enquanto humano é o sentido/significado do mover-se, sentido/significado mediado simbolicamente e que o coloca no plano da cultura. (BRACHT, 2003, p. 45).

Para Bracht (2003), a Educação Física não é uma ciência, mas está interessada na ciência ou nas explicações científicas para aprimorar a sua intervenção: “A EF é uma prática de intervenção e o que a caracteriza é a intenção pedagógica com que trata um conteúdo que é configurado/retirado do universo da cultura corporal de movimento. Ou seja, nós, da EF, interrogamos o movimentar-se humano sob a ótica do pedagógico.” (p. 33). O “campo acadêmico” da Educação Física constituir-se-ia a partir da teorização sobre esta prática pedagógica com o apoio das demais disciplinas científicas, que podem contribuir com o aperfeiçoamento da intervenção pedagógica com a “cultura corporal de movimento”.

Bracht (2003) caracteriza a relação da Educação Física como a ciência como “ao mesmo tempo de aproximação e distanciamento” (p. 11): “Isto significa que as identidades dos ‘parceiros’ não se confundem. Só com esta condição a relação parece ser produtiva. Isto significa refletir sobre as possibilidades, mas também, sobre as limitações da ciência, exatamente para não tomá-la como um dogma.” (BRACHT, 2003, p. 11). Outro aspecto articulado à reticência de Bracht (2003) sobre a relação entre a Educação Física e a ciência assoma na suposta limitação da racionalidade científica atribuída pelo autor. Este limite seria o despedimento da dimensão ético-normativa e estética de que necessariamente padeceria este modelo racional:

É preciso considerar os limites da própria racionalidade científica, quanto ao fornecimento dos fundamentos de nossa prática. Como sabemos, a própria prática pedagógica envolve sempre uma dimensão ética de caráter normativo, ou seja, se a ciência se atêm ao fático, a prática pedagógica opera também no plano do contrafático (do dever-ser). Outra dimensão importante presente no âmbito pedagógico é a dimensão estética. Sem me alongar no assunto, diria que o teorizar na EF precisa ultrapassar as limitações da racionalidade científica, para integrar no seu teorizar/fazer a dimensão do ético e do estético. Assim, o apelo para a

95 Apesar de empregados de forma corriqueira como sinônimos em nossa área (o que consideramos equivocado),

“cultura corporal de movimento” e “cultura corporal” encontram-se fundadas em parâmetros teórico- metodológicos distintos.

cientifização da EF é problemática porque a racionalidade científica (tradicional) é limitada em relação às necessidades de fundamentação de sua prática – o que

indica a superação do modelo tradicional de racionalidade científica (por exemplo, com o projeto da razão comunicativa de J. Habermas) – e sofre, ao mesmo tempo, o

abalo da nova filosofia da ciência que é relativista no sentido de não reconhecer superioridade na racionalidade científica de frente às outras formas de conhecer a realidade. (BRACHT, 2003, p. 39, grifo nosso).

A teorização em Educação Física, neste sentido, deve ultrapassar, para Bracht (2003), o próprio “teorizar científico”. A teorização possível a partir das “categorias epistêmicas da ciência tradicional” não atenderiam às necessidades da Educação Física: “Precisaríamos teorizar de forma a contemplar o biológico, o psicológico e o social, mas também ético e o estético, numa perspectiva de globalidade – portanto numa nova construção do nosso objeto.” (BRACHT, 2003, p. 70). Para que pudesse fornecer fundamentação para a teorização da Educação Física, a ciência deveria amparar-se em um novo modelo de racionalidade, nomeadamente, a razão comunicativa – o qual seria capaz, em seu entendimento, de “estabelecer as pontes entre o fático e normativo sem abdicar da pretensão à racionalidade para as suas assertivas.” (BRACHT, 2003, p. 124).

Bracht (2003) sustenta uma postura cética perante a ciência – por esta razão caracteriza a relação da Educação Física com a ciência como de distanciamento e de aproximação. No âmbito do embate entre os paradigmas científicos, afirma os limites de uma ciência que entende como dogmática e homogeneizadora, que se pretende neutra e que enfatiza o objeto em detrimento do sujeito. Esta ciência seria aquela adjetivada de “moderna”. O autor generaliza (homogeneíza) os paradigmas científicos e desconsidera as especificidade do paradigma materialista histórico-dialético e do paradigma fenomenológico hermenêutico, cuja caracterização não corresponde, em nossa compreensão, àquela indicada por Bracht (2003). Como paradigma superador, apresenta a racionalidade comunicativa, o qual permitiria, por suposto, compreender a Educação Física em uma perspectiva de “globalidade”.

Consideramos que é errôneo converter a ciência em um dogma, absolutizando-a como instrumento ilimitado e incondicionado para o conhecimento da realidade e, por conseguinte, para a intervenção nesta mesma realidade. Entretanto, do mesmo modo, é errôneo relativizá-la e, beirando a sua negação – ou negando-a completamente –, afirmá-la como incapaz de servir de instrumento para conhecer a realidade e fornecer subsídios para a intervenção consciente nela. A ciência, assim como outras formas em que o conhecimento pode se expressar (mito, religião, filosofia, senso comum, etc.), é resultado das experiências incorporadas pela

humanidade no e pelo processo de produção da existência e da concretização da necessidade de conhecer a realidade durante este processo.

Reconhecer que as diferentes formas de conhecimento concorrem para a finalidade de refletir a realidade (afinal, estas formas se realizam de dentro e a partir do real e procuram expressá-lo na forma de ideias correspondentes ou não com a realidade) não deve vir desarticulado de algumas questões fundamentais, a partir das quais sustentamos que a ciência é a expressão mais desenvolvida da capacidade humana de conhecer a realidade que a humanidade construiu ao longo da história como condição e consequência da contínua produção do viver: (a) a da determinação histórica do conhecimento, ou seja, o conhecimento da realidade desenvolveu-se e desenvolve-se determinado pelo processo de produção da existência realizado pela humanidade – daí é que compreendemos a gênese e desenvolvimento do mito, da religião, da filosofia e da ciência não como fatos fortuitos, mas como resultados necessários do grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção (ANDERY et al. 2012)); (b) a ciência se desenvolve, em determinadas condições materiais, como a atividade humana que apresenta maior grau de sistematicidade e de rigorosidade (expresso nos métodos científicos) e que expressa, internamente, este grau de desenvolvimento; (c) a necessidade epistemológica da ciência radica na não correspondência imediata entre fenômeno (o que nos afeta imediatamente por meio dos sentidos ou da representação) e a essência (“aquilo que fundamentalmente caracteriza um processo determinado como sua entidade ou ‘razão’” (BARATA-MOURA, 1997, p. 74); (d) o atendimento desta necessidade epistemológica não pode se dar adequadamente por formas de conhecimento menos sistemáticas ou assistemáticas.

Apontamos estas questões para indicar, por um lado, que o reconhecimento dos limites e das possibilidades do conhecimento científico precisam ser buscados na sua conexão objetiva, material, com o modo de produção da existência e, por outro, que a defesa que realizamos da ciência como forma mais desenvolvida de conhecer a realidade não consiste somente de uma posição política no interior da luta de classes, mas, precipuamente, da expressão, no plano científico, da condição objetiva de sobrevivência da humanidade que passa pelo conhecimento da realidade. Nesta posição, estamos a considerar tanto o papel da ciência como força produtiva no atual modo de produção, quanto a ciência como instrumento de desvelamento das tendências do movimento deste modo de produção e cujo resultado pode adquirir força política e ideológica no processo de sua superação revolucionária, o qual,

tendencialmente, será levado a cabo pela classe trabalhadora nas condições materiais de um modo de produção em crise.

No âmbito do trabalho pedagógico com a cultura corporal, sustentamos a imprescindibilidade do conhecimento científico como fundamento e como conteúdo da atividade sistemática de formação humana. A produção da humanidade em cada indivíduo singular (SAVIANI, 2012), a partir da mediação da cultura corporal, demanda o trato com este conhecimento de forma a superar a experiência imediata, cotidiana que as crianças, os jovens e os adultos têm com este conteúdo. Neste ponto, a ciência tem um papel fundamental tanto no que diz respeito aos conhecimentos no âmbito da cultura corporal produzidos historicamente pela humanidade de forma sistematizada (os quais superam, por incorporação, a experiência imediata e cotidiana) e que são transmitidos e acessados no processo do trabalho pedagógico, quanto ao desenvolvimento da atitude científica como posição individual e coletiva frente à realidade.

3.1.3 Os novos campos epistemológicos e a ciência: a Educação Física e a reversão do