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Os novos campos epistemológicos e a ciência: a Educação Física e a reversão do circuito do conhecimento

3 O DEBATE EPISTEMÓLOGICO DA ÁREA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

3.1 O DEBATE EPISTEMOLÓGICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA BRASILEIRA: OU DE COMO ESTA DEFINE A SUA RELAÇÃO COM A CIÊNCIA

3.1.3 Os novos campos epistemológicos e a ciência: a Educação Física e a reversão do circuito do conhecimento

Diferentemente das proposições sobre a relação da Educação Física e a ciência já abordadas neste capítulo, Sánchez Gamboa (2010) caracteriza a Educação Física dentro dos “novos campos epistemológicos” “como um tipo específico de educação” (p. 35) e caracteriza-a, no quadro epistemológico, como um novo campo epistemológico, assim como seriam a Pedagogia, a Educação Artística, a Política, a Ética, etc. Estes campos, ressalvadas as suas especificidades, têm em comum o fato de que os seus objetos de pesquisa são “a ação, a prática, a práxis” (p. 33). O autor, neste sentido, ao tomar como base a definição de que os “novos campos epistemológicos” tem a “ação e a prática” como ponto de partida e de chegada da produção de conhecimentos, aponta que os seus estatutos científicos são melhor definidos quando entendidos como “ciências da prática ou da ação” (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 35, grifo do autor).

Estes encontrar-se-iam próximos da definição de seus campos epistemológicos no quadro geral das ciências, entretanto, devido à sua especificidade, desafiam a tradicional classificação das ciências, que as divide em básicas e aplicadas, naturais e humanas. Sánchez Gamboa (2010) considera que, no quadro da tradicional classificação das ciências entre ciências básicas e aplicadas, a Educação Física não se sustenta como ciência básica ou como

ciência aplicada. Do mesmo modo, por tratar de fenômenos simultaneamente que são físicos e humanos, este campo epistemológico não pode ser enquadrado apenas nas “ciências físicas” ou nas “ciências humanas” ou flutuar do predomínio de uma para a outra. Assim: “Precisamente, apontamos as flutuações como um dos indicadores de sua indefinição epistemológica. Daí a necessidade de procurar uma nova categoria classificatória para localizar nela as especificidades desses novos campos epistemológicos” (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 33).

No caso específico da Educação Física, o autor considera que a discussão epistemológica instalada na área, embora recente, representa o avanço das preocupações com as questões instrumentais, técnicas e metodológicas das pesquisas para as teóricas e epistemológicas. Esta preocupação expressa “a busca de uma nova forma de fazer pesquisa, ultrapassando a fase de ‘ciência aplicada’ caracterizada pela apropriação simples de métodos e referências desenvolvidas em outras áreas” (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 30). E esta é uma etapa salutar da revisão crítica da relação da Educação Física com a ciência.

Sánchez Gamboa (2010) sustenta que a superação do problema do “colonialismo epistemológico” é a articulação de um campo interdisciplinar cujo eixo seja a natureza e a especificidade da Educação Física. Neste campo, articular-se-iam a contribuição das várias disciplinas científicas para a elaboração de explicações mais ricas e complexas em torno de um eixo central, “seja este, a motricidade humana, as ações e reações da corporeidade, a conduta motora, ou a cultura corporal” (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 32).

A articulação de campos interdisciplinares tencionados por um eixo (a natureza e a especificidade de cada campo), neste sentido, reverte o circuito do conhecimento:

A superação da fase de colonialismo epistemológico ou de ciências aplicadas exige, em primeiro lugar, reverter o circuito do conhecimento. Tomando-se, então, como ponto de partida e de chegada, a prática educativa, os atos morais e políticos ou a cultura corporal e, como instrumental explicativo ou compreensivo, as teorias das várias disciplinas, mas, organizadas com base na especificidade da prática, seja educativa, política ou ética. Isso implica a articulação de um campo interdisciplinar que tem como eixo a natureza e a especificidade dos novos campos epistemológicos que articulam a contribuição das várias teorias científicas e elaboram explicações mais ricas e complexas na medida em que tece, em torno de fenômenos concretos, interpretações presas e tencionadas pelo eixo central, sejam os atos educativos, morais ou políticos, ou, no caso da Educação Física, a motricidade humana, as ações e reações da corporeidade, a conduta motora ou a cultura corporal. (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 63, grifo do autor).

No caso da Educação Física, o circuito do conhecimento partiria das problemáticas significativas provenientes do objeto da Educação Física, a cultura corporal, e as teorias científicas oriundas da Psicologia, Sociologia, Fisiologia (etc.) contribuiriam com suas

hipóteses, teses e abstrações na explicação e compreensão destas problemáticas. O circuito do conhecimento continua no retorno às problemáticas significativas, explicando-as e perspectivando possibilidades de sua transformação.

Relativamente à natureza da Educação Física (critério a partir do qual o autor situa-a no quadro das “ciências da prática e da ação”), Sánchez Gamboa (2010) considera que esta, na condição de um “tipo específico de educação” (p. 35), consiste em um “trabalho não material” cujo produto se dá e é consumido no mesmo processo da atividade, do exercício, do fazer, da realização da motricidade. Este trabalho não material é atividade que desenvolve tanto a “natureza biofísica do homem” quanto, fundamentalmente, a sua “natureza humana”. Ambas, entretanto, não são separáveis, constituem uma unidade concreta na ação humana direta e intencional (o trabalho) que, sobre a natureza biofísica, constrói a natureza humana (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010). O autor vale-se da argumentação de Saviani (2012) sobre o trabalho, na qual este situa-se no âmbito da produção dos bens materiais necessários à existência. Esta é a primeira condição do processo de produção da existência humana – “condição fundamental de toda a história”, conforme Marx e Engels (2007). Na produção dos meios necessários à subsistência, concorrem o conhecimento das propriedades da realidade (a ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte). Saviani (2012, p. 12) destaca, portanto, que tais aspectos:

[...] na medida em que são objeto de preocupação explícita e direta, abrem a perspectiva de uma outra categoria de produção que pode ser traduzida pela rubrica ‘trabalho não material’. Trata-se aqui da produção de ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se da produção do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana.

A educação situar-se-ia na categoria do trabalho não material (SAVIANI, 2012). Baseado no “Capítulo VI” (inédito) de O Capital, Saviani (2012) distingue, no trabalho não material, duas modalidades: (a) as atividades que o produto se separa do produtor (autonomia entre o produto e o ato de produção) como, por exemplo, os livros e os objetos artísticos e; (b) as atividades em que o produto não se separa do ato da produção – produção e consumo imbricam-se. A educação situar-se-ia nesta segunda modalidade:

[...] se a educação não se reduz ao ensino, é certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, participa da natureza própria do fenômeno educativo. Assim, a atividade de ensino, a aula, por exemplo, é alguma coisa que supõe, ao mesmo tempo, a presença do professor e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula é inseparável da produção desse ato e de seu consumo. A aula é, pois, produzida e consumida (produzida pelo professor e consumida pelos alunos). (SAVIANI, 2012, p. 12).

A compreensão da Educação Física como “um tipo específico de educação” (p. 35) leva Sánchez Gamboa (2010) a demonstrar a proximidade da problemática abordada pela Educação Física com as ciências da Educação. Ambas têm em comum o:

[...] compromisso da formação da natureza humana dos homens, a partir da natureza biofísica, num continuum em que a Educação tem prioridade nessa formação da natureza humana, por estar mais próxima das articulações do biológico e o humano nas suas inter-relações individuais e sociais. (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 43). No entendimento do autor, portanto, a Educação Física é definida como uma “ciência prática, ciência da e para a prática da motricidade humana, ou da cultura corporal, por exemplo” (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 42, grifo do autor), ou seja, forma um novo campo científico. Aceita esta especificidade, de acordo com o autor, as abordagens de pesquisa na área priorizam as referências teórico-metodológicas que, por sua lógica, servem de modo mais adequado para responder a estas categorias. O autor, neste sentido, destaca que as diferentes tendências teóricas (empírico-analítica, fenomenológico-hermenêutica e crítico- dialética) que servem de referência para a produção do conhecimento na área apresentam categorias que contribuem no desenvolvimento deste novo campo epistemológico. Entretanto, é enfático ao indicar que:

Porém, as especificidades de cada abordagem dificultam ou propiciam a compreensão da dinâmica e da riqueza da ação e da prática na sua complexidade humana e social. Os instrumentais oferecidos pela hermenêutica e a dialética parecem ser ricos em desdobramentos e apontam para uma heurística mais promissora. A dialética, particularmente, por ter como referência central à práxis, ou a articulação prática-teoria-prática oferece um referencial que articula diretamente a compreensão da e para a prática transformadora da Educação Física, nesse sentido as abordagens dialéticas oferecem um potencial maior de compreensão, uma vez que partem da unidade contraditória entre teoria e prática [...]. (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 43, grifo do autor).

No âmbito da Educação Física, no processo de reversão do circuito do conhecimento, articular-se-ia um campo interdisciplinar cujo eixo é a natureza e a especificidade da área. Neste sentido, o circuito do conhecimento tem como ponto de partida os “fenômenos da Educação Física, do esporte e o lazer, na forma concreta da ação, da prática, do movimento, da motricidade, ou da cultura corporal” (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 83), passa pelas teorias das diversas disciplinas científicas e retorna para os referidos fenômenos na forma da sua explicação e compreensão (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010).

Outro aspecto a ser ressaltado é que Sánchez Gamboa (2010) não se mostra reticente quanto a ciência e à relação desta com a Educação Física. Pelo contrário, sustenta que esta relação é fundamental para consolidação da Educação como campo epistemológico. De acordo com o autor: “É difícil admitir que a consolidação de novos campos científicos

aconteça sem a pesquisa, sem o aprimoramento dos processos de produção dos conhecimentos e sem a sistematização permanente e criteriosa de seus resultados.” (SÁNCHEZ GAMBOA, 2010, p. 199).

Observamos que, a partir do debate em torno da natureza e da especificidade da educação realizada por Saviani (2012), Sánchez Gamboa (2010) analisa a natureza e a especificidade da Educação Física, situando-a no quadro do que denomina de ciências da práxis – em cujo processo de produção de conhecimento o circuito inverte-se: tem como ponto de partida e de chegada as problemáticas significativas da Educação Física no que se refere ao trabalho educativo (compreensão da Educação Física como um “tipo específico de educação”). Tratar-se-ia de um novo campo científico que procura legitimar-se no interior de um meio deveras conservador em que somente há espaço para a ciência básica e a ciência aplicada.