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Abordagem do estudo: a ciência como construção e o olhar qualitativo 33

I. OS BASTIDORES DA PESQUISA 33

1. Abordagem do estudo: a ciência como construção e o olhar qualitativo 33

Segundo Sautu et al (2005) e Esteban (2003) o primeiro nível, mais geral e abstrato, de toda pesquisa se refere à compreensão de ciência assumida pelo pesquisador, ao conjunto de crenças fundamentais (epistemológicas, axiológicas e éticas) não problematizadas no estudo, pois representam a forma de ver e de fazer ciência que guiou o percurso investigativo. Ao tornar público tais crenças o pesquisador desvela as condições de produção de seu trabalho. Condições não apenas materiais, mas também teóricas.

Desta forma, importa assumir que o estudo ora apresentado, negando os modelos objetivistas5 e subjetivistas6, defende o caráter construtivo do conhecimento científico. Como explica Esteban (2003), essa postura epistemológica nega a existência de uma verdade objetiva esperando ser descoberta, afirmando que a verdade, o significado do fenômeno, emerge da interação do pesquisador com a realidade estudada, em um processo de construção intencional do conhecimento. Enquanto construção, o conhecimento, aí incluído o científico, é também contingente às práticas humanas e aos contextos sociais, não sendo produto de uma racionalidade autossuficiente, de uma subjetividade fechada em si mesma, porque todo conhecimento é construído pelos sujeitos enquanto interagem no tempo e no espaço social, em um contexto epistemológico no qual “la verdade, no puede describirse

simplemente como ‘objetiva’ pero tampoco como simplemente ‘subjetiva’. Objetividad y subjetividad son mutuamente constitutivas”. (ESTEBAN, 2003, p. 49).

5 A abordagem objetiva, de tradição positivista clássica, reifica o sujeito pesquisado ao tomar a metodologia das

ciências naturais como homogênea a todas as áreas. Seu efeito é excluir as discussões não passiveis de objetivação, tornando, por exemplo, impossível a análise dos valores sociais ou da liberdade humana. O resultado: se faz ciência, mas sem buscar uma compreensão profunda do ser humano.

6 A abordagem subjetivista defende a especificidade humana, valorizando e respeitando a singularidade das

experiências individuais. Mas esta acaba sucumbindo a um solipsismo, porque as pretensões de verdade se relativizam e se equivalem, tornando, por exemplo, também impossível à análise dos valores e de todo e qualquer consenso social. O resultado: olha-se para o ser humano, mas não se produz um conhecimento sobre a sociedade que possa ser debatido, apenas aceito.

Neste sentido, compreendemos que o objeto de pesquisa é construído e não fato dado imediatamente pela experiência empírica, sendo assim, é o pesquisador que o delimita, recorta e o cria, tanto que, segundo Bourdieu (2007 d, p. 64), “para saber construir o objeto e reconhecer o objeto que é construído, é necessário ter consciência de que todo objeto propriamente científico é consciente e metodologicamente construído”. Mais que um jogo de palavras, o que se afirma é que o conhecimento científico é um exercício consciente de criação teórica, fundamentado em procedimentos e métodos de ruptura e vigilância epistemológica. Ruptura com as teorias espontâneas, o saber imediato e o conhecimento pseudocientífico, que utiliza a linguagem e as técnicas da ciência para reafirmar os lugares tacitamente aceitos como naturais dentro da ordem social. Vigilância com a própria análise proposta, evitando naturalizar os processos sociais investigados.

Compreendemos, ainda tendo por referência Bourdieu (2007d), que na construção do objeto de pesquisa a realidade pode ser apreendida de duas maneiras: atomizada, na qual cada situação é investigada na sua singularidade, ou de forma relacional, privilegiando as relações e interações entre fatos, situações e práticas sociais aparentemente diversas, porém essencialmente relacionadas. Essa segunda forma de investigação, que buscamos materializar na tese, fundamenta-se em uma filosofia da ciência que compreende ser o papel da pesquisa em ciências humanas dar visibilidade às relações sociais encobertas pela dinâmica contraditória da organização societal, evidenciando os compromissos éticos que devem guiar a produção do conhecimento. Contudo, esses compromissos não têm por meta estabelecer uma ciência partidária, que abandona o rigor e se transforma em panfletagem, mas fundamentar um trabalho de investigação alicerçado, por um lado, pelo rigor e crítica científica e, por outro, pela ética e solidariedade social. (BOURDIEU, 2007c).

A partir desses compromissos a tese se volta à abordagem qualitativa, admitindo, entretanto, que o sentido e significado dessa abordagem estão muito longe de ser consenso entre os pesquisadores sociais. Como observam Strauss e Corbin (2008, p. 23), “o termo ‘pesquisa qualitativa’ é confuso porque pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes”. Desta maneira, é possível encontrar autores que aproximam em demasia a visão qualitativa da tradição subjetivista, tornado impossível generalizações e a própria crítica ao conhecimento produzido pela unicidade que revestem os casos analisados. Há os que criam uma relação direta entre pesquisa qualitativa e compromisso social emancipatório, esquecendo que a metodologia em si não assegura a materialidade dos interesses sociais da pesquisa. Outros tendem ainda a enquadrar toda pesquisa qualitativa como não-formalizada, não planejada ou pela não utilização de regras científicas claras, quer para selecionar os informantes ou para análise do material coletado.

Sem negar a existência das ambiguidades e disputas citadas, compreendemos a pesquisa qualitativa como uma abordagem metodológica rigorosa. Materializada por

procedimentos interpretativos que buscam as percepções, motivos e ambiguidades não apreensíveis pelas técnicas de mensuração, ou mesmo não totalmente compreendidas somente pelo uso de procedimentos estatísticos.

Nessa abordagem, interpretar remete a um duplo movimento: tanto ao conjunto de processos mentais que ocorrem quando lemos um texto (seja um documento ou a transcrição de uma entrevista), buscando seu sentido e significado; quanto ao exercício reflexivo realizado após a leitura, logo, a problematização dos sentidos observados. Consequentemente, a interpretação não é mera descrição do real. Não é o fornecimento do ponto de vista dos entrevistados, mas uma atitude de perguntar a partir dos sentidos observados. De remeter. De refletir. De estabelecer nexos e relações não dadas simplesmente pelo texto ou pelo confronto entre as diferentes falas.

Importa destacar que a generalização nas pesquisas qualitativas difere em gênero e grau da existente na abordagem quantitativa. Ao interpretar as situações pesquisadas o investigador qualitativo não se pergunta sobre o nível de recorrência dos significados analisados, mas o que expressam e se podem ser investigados reflexivamente.

Contudo, isto não significa que a análise da ocorrência prejudique a análise do sentido, ou vice-versa, visto que a independência entre as abordagens não impede a complementação metodológica. (Cf. CRESWELL, 2007). Em verdade, como explicam Strauss e Corbin (2008) a opção pela qualidade não exclui o uso de elementos quantitativos, uma vez que o trabalho de pesquisa é composto de várias tarefas menores (coleta de dados, análise, interpretação, apresentação das evidências empíricas) e, em cada nova fase, é preciso definir qual procedimento qualitativo ou quantitativo será utilizado.

É a complementaridade do quantitativo ao qualitativo que buscamos quando fazemos uso de recursos gráficos, tabulares e de procedimentos não paramétricos. Até porque os números são elementos de apoio à interpretação da realidade. Não falam por si mesmos, pois exigem a análise do sentido e do significado. Exigem a interpretação qualitativa.