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2. DA LUDOTERAPIA NÃO-DIRETIVA À LUDOTERAPIA CENTRADA NA

3.3. O pensamento ético levinasiano e a psicoterapia na ACP

3.3.2. Aproximações entre a ética levinasiana e a ACP

3.3.2.1. Abordagem “excêntrica” da pessoa

A partir da introdução de que o Outro levinasiano é metafísico e o outro da perspectiva centrada na pessoa é empírico, Vieira e Freire (2006) sugerem a possibilidade de uma abordagem excêntrica da pessoa: uma leitura ética levinasiana da ACP, no que concerne

às condições facilitadoras, à tendência atualizante e ao processo psicoterapêutico. Essa leitura, com base na radicalidade ética levinasiana, possibilitaria, segundo os autores, a não totalização e a abertura para a alteridade. Inicialmente, os autores sugerem que a teoria seja discutida para que a prática psicoterápica não se torne uma “técnica” engessada de produção de um ideal de pessoa. Pessoa ideal esta entendida como semelhante a quem se dispõe como abertura à diferença: o terapeuta.

A consideração positiva incondicional, compreendida aqui como movimento não somente do terapeuta para o cliente, mas do terapeuta para consigo próprio, sugere uma abertura para o imprevisível, para sentidos novos na relação terapêutica: os momentos de movimento36. Não sabendo o que acontecerá, nem as implicações para o processo terapêutico, a psicoterapia concebe-se aqui como “rompimento, plasticidade” (VIEIRA; FREIRE, 2006, p. 429). Além disso, a consideração positiva incondicional, entendida por Rogers como amor não possessivo37, agape38, sugere a escuta da singularidade do cliente, sem a tentativa de compreensão por qualquer via prévia à relação terapêutica. Essa atitude de não expectativa, de não tornar o outro coisa, aproximar-se-ia da ética de Lévinas.

A congruência, para Vieira e Freire (2006, p. 429), trata-se de uma “vulnerabilidade ao excesso que ultrapassa a palavra pronunciada (pelo terapeuta e cliente) [...] afetação pelo que não pode nem deve ser explicado”. A fala autêntica39, aqui, seria uma via desencadeadora de um caráter de exterioridade, ao invés de uma essencialidade, que vai em direção a uma fala excêntrica por descentrar o sujeito que a pronuncia, por anunciar novas

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Momento geralmente associado à mudança de personalidade. Características: é uma experiência de algo que ocorre em um instante da relação; vivência sem barreiras ou impedimentos; vivência repetida no passado, mas nunca de maneira completa, unificada; esta experiência tem a qualidade de ser aceita por quem a vivencia (ROGERS, 2004[1956]).

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A consideração positiva incondicional é descrita por Rogers (1977[1967]) como uma apreciação, um interesse não possessivo pelo cliente e, finalmente, como uma forma de amor pelo cliente. A amor descrito por Rogers aqui é o equivalente ao agape, diferenciado do amor romântico e possessivo.

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Segundo Machado (2011) a etimologia da palavra amor remete às tradições hebraica e grega. Na hebraica, o amor `aheb é o “amor zeloso, ciumento, sedutor, que escolhe seu objeto de predileção dentre outros e exerce seu domínio sobre ele; magoa-se com a infidelidade. Não é apenas um sentimento, uma disposição interna, mas consiste numa ação prática. Sua característica principal é a dimensão unitária, global e integradora do ser” (p. 3). Na tradição grega, amor pode ser Eros: “amor cósmico, universal, indiscriminado, descomprometido e indiferente a fidelidade. A partir da filosofia platônica, é a grande e única força que se constitui na mais alta representação da plenitude da vida e da sublimação mística” (p. 3); philia: “relacionamento interpessoal de parentesco ou amizade que se caracteriza pela reciprocidade. Expressa-se como dom e compromisso de fidelidade” (p. 3); agape: “vocábulo grego mais comum para traduzir o `aheb hebraico. É um amor que nasce da admiração. Caracteriza-se pela dimensão ativa no sentido de escolher, decidir e optar a partir da liberdade e discernimento e não pela simples atração afetivo-sentimental-emocional, porém não a exclui. Expressa a doação desinteressada e gratuita.

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“A fala autêntica é pensamento em ato: não existe um pensamento precedente, do qual ela seria a tradução. O que existe antes dela não é o pensamento e sim a gestação de uma intenção significativa. Na fala autêntica o pensamento está se fazendo no ato de falar e não apenas se traduzindo externamente” (AMATUZZI, 1989, p. 27).

possibilidades. Uma autenticidade excêntrica, portanto, aproximar-se-ia mais de um movimento do que de uma autenticidade como transparência40: “[...] seria, então, a desintegração, a constante ‘reconfiguração’ e vulnerabilidade do que pode ser compreendido como eu” (VIEIRA; FREIRE, 2006, p. 430).

A empatia, para além de uma compreensão de acesso ao mundo interno do cliente na condição de “como se” fosse este, aponta para a possibilidade de abertura ao estranho, à diferença, ao que não se reconhece como identificável ao eu. Segundo Vieira e Freire (2006, p. 430), a empatia seria o “deixar-se impactar pela diferença trazida pelo outro, deslocando-se de um lugar fixo”.

Como considerações acerca do processo psicoterapêutico, Vieira e Freire (2006) afirmam que a tendência atualizante pode ser percebida como algo insaciável no ser humano. Essa tendência propiciaria “uma constante renovação de padrões” (p. 430), um distanciamento da possibilidade de equilíbrio e integração, compreensão essa muitas vezes ligada à ACP. Os autores propõem a necessidade de entendimento da tendência atualizante como algo alimentado pela alteridade, impactante na pessoa por trazer algo novo. Dessa forma, a psicoterapia liberaria essa força da pessoa para além do conhecer a si mesma: propiciando a reconstrução de uma imagem de eu anteriormente enrijecida e a abertura ao estranhamento e à vulnerabilidade.

Mesmo com as aproximações desenvolvidas pelos autores acerca da ACP e da ética de Lévinas, convém recordar que os autores partem de uma “ACP para adultos”. Para abordar a ética da alteridade e a LCC, objetivo desta dissertação, é preciso levar em consideração a concepção de uma ludoterapia na qual as ideias de Axline se constituem como base, um início para a construção de um aporte teórico que se aproxime do que compreendemos atualmente como ACP e, partir daí, propor a leitura ética da teoria de atendimento infantil. Como já abordado nesse capítulo, a relação com a criança pode remeter à infinição a ao estranhamento, mesmo se pensando na relação face-a-face, que exija uma proximidade física e experiencial. A postura diante dessa criança será sempre de não assimilação, de impossibilidade de conhecimento como totalização. Só cabe a nós, psicoterapeutas, o reconhecimento de sua alteridade e disponibilidade para acompanhá-la em seu ex-centramento constituidor da vivência da psicoterapia (VIEIRA, 2010).

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Em Rogers (2001[1961]), a congruência significa estar consciente de seus próprios sentimentos e não se apresentar ao outro com uma fachada. Também compreende a disposição para a expressão, através das palavras e dos comportamentos, dos vários sentimentos e atitudes existentes na pessoa.

Seguindo com base nas considerações de Vieira e Freire (2006), Vieira (2009) aborda o processo psicoterápico como produtor de uma subjetividade estranha à pessoa, dado esse verificado pela entrega ao fluxo experiencial e à imprevisibilidade deste. A sabedoria organísmica41 residiria na ignorância, já que o terapeuta assumiria o lugar de não-saber. A teoria rogeriana, portanto, apontaria para uma subjetividade não passível de captura pela racionalidade, já que algo sempre excede.

Vieira (2010) também sugere que a psicoterapia centrada na pessoa aponta mais para a promoção de um embate com o diferente do que para uma possível integração de experiências. Dessa forma, o autor propõe um desvencilhamento da assimilação promovida pelo reconhecimento entre experiência e self, fundamental na compreensão da teoria da personalidade rogeriana42, passando a um reconhecimento da reconfiguração dessa noção de eu, que aconteceria no contato com a alteridade da própria experiência.

Sem a intenção de se dizer como “ACP levinasiana”, mas sim como uma forma de compreensão da abordagem de Rogers, a releitura da hipótese-chave da ACP e de suas condições facilitadoras à luz do pensamento levinasiano (VIEIRA; FREIRE, 2006) e o estado de “ignorância” do terapeuta (VIEIRA, 2009) frente à experiência do cliente, entendida enquanto abertura ao estranho (VIEIRA, 2010), deixa a ressalva para pensarmos se a teoria e a prática da Ludoterapia permitem espaços para a alteridade que se mostra a partir da experiência infantil.