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4. LUDOTERAPIA CENTRADA NA CRIANÇA – LEITURA A PARTIR DA ÉTICA

4.1. A criança: Rosto que remete ao Outro

Para que seja possível dar espaço para a alteridade que se apresenta na criança, é necessário o acesso à compreensão de infância, aos elementos que aparecem no pensar sobre o ser criança, o remeter-se ao que se foi quando criança e, posteriormente, o afastamento dessas compreensões. Em contato com isso, torna-se possível perceber o quanto há de abertura à diferença ou, ao contrário, o quanto tentamos encaixar a criança em critérios identificáveis por nós. Ou seja, o quanto somos abertura ou o quanto transitamos na esfera do Mesmo (LÉVINAS, 1988[1961]).

Quando pensamos na infância como um período em que vivemos no mundo das fantasias e dos sonhos, como um período feliz, de alegria e de despreocupação, podemos nos deparar com a realidade de que essa vivência de infância pode não corresponder à vivida por todas as crianças que conhecemos (FROTA, 2007). Às vezes, não corresponde à nossa própria história de infância.

Frota (2007) levanta, então, o seguinte questionamento: as crianças que não vivenciam a infância dessa forma pré-concebida não seriam crianças? Na pós-modernidade (FROTA, 2007), ou mesmo na radicalização e universalização da modernidade (GIDDENS, 1991 apud FREIRE, 2002), não há conhecimento único, absoluto. O que há é multiplicidade e variabilidade; as relações de poder determinam as construções sócio-culturais do que é verdade e do que não o é. A verdade é, de fato, uma representação, um sentido construído de verdade e assim deve ser compreendida (FROTA, 2007).

Trazendo a discussão para o campo ético, esta proposta está em consonância com a de Lévinas (1988[1982]), na qual o autor informa que o olhar que temos do rosto que se apresenta é conhecimento, percepção, é encaixe no que nos é identificável. Para fugirmos desse Mesmo, o autor apresenta que o acesso ao Rosto precisa ser, num primeiro momento, ético. Lévinas (1988[1982], p. 77, grifo nosso)esclarece isso no exemplo a seguir:

[...] quando se vê um nariz, os olhos, uma testa, um queixo, e se podem descrever, é que nos voltamos para outrem como objecto. A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer atentar na cor dos olhos! Quando se observa a cor dos olhos, não se está em relação social com outrem. A relação com o rosto pode, sem dúvida ser dominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a

este.

A construção da ideia de infância, segundo Frota (2007), nada tem de neutra. Esse período da vida pode ser compreendido com uma conotação “negativa”, pelo que a criança ainda não é, ou mesmo em uma visão de ingenuidade e pureza, quando comparadas ao mundo adulto. Etimologicamente, a palavra infância deriva do latim infantia (in – negativo; fari – falar), referindo-se ao indivíduo que ainda não é capaz de falar. Caso pensemos na prática clínica infantil, essa “incapacidade” é estendida, no entendimento de muitos pais que buscam atendimento para os filhos, para a realização de atividades cotidianas. É comum ouvir dos pais, sobre diversos conteúdos, que a sua criança “não consegue”, “não sabe”, “não pode”.

Frota (2007) sugere, portanto, que a criança seja vista a partir de seu próprio ponto de vista, que ela tenha a possibilidade de comunicação sobre si própria. A infância deve ser percebida, então, de forma singular, não universal, já que não há um tipo único de infância, mas sim uma multiplicidade de infâncias na contemporaneidade. A autora finaliza sua discussão sobre infância informando que

[...] é preciso garantir [...] lugares para acasos e imprevisíveis, lugares para rupturas, lugares para saltos adiante, para retornos e ressiginificações; é preciso evitar a tentação de fazer da existência de alguém um processo meramente aditivo ou subtrativo de atributos que se agregariam ou descartariam de uma substância permanente (FROTA, 2007, p. 151).

A discussão abordada acima nos remete à ética levinasiana. Podemos, então, iniciar a nossa proposta de compreensão da criança como Outro, em sua absoluta diferença e impossibilidade de totalização. Se, ao lançarmos o olhar para o outro, pensamos no conhecimento que pretensamente já temos dele, somos capturados pela totalização. Há aqui uma violência para com o Outro. A oposição radical a essa totalização, segundo Schmid (2006), é o Infinito, a transcendência a qualquer tentativa de totalização. Ou, nas palavras de Lévinas (1988[1961], p. 36, grifo no original):

[...] o infinito é característica própria de um ser transcendente, o infinito é absolutamente outro. O transcendente é o único ideatum do qual apenas pode haver uma ideia em nós; está infinitamente afastado da sua ideia [...] por que é infinito.

Para que acessemos e respondamos à criança em sua alteridade, devemos nos afastar do movimento de entendimento e de compreensão sobre ela, para sermos tocados, afetados, desalojados pela sua chegada e seu chamado. A proposta, aqui, é de abertura à criança em sua Outridade, para qualquer aspecto que esta mostre, comunique, experiencie ou revele. A direção vem do Outro para mim, nunca o contrário (SCHMID, 2001). Portanto, o ludoterapeuta não pode perder a noção de que algo sempre escapará na relação com este Infinito que se apresenta a partir da interpelação e exigência do Rosto da criança. Apesar de Lévinas (1988[1961], 1988[1982]) abordar a linguagem como discurso, a linguagem não significa, necessariamente, verbalização. Mesmo a linguagem não oral pressupõe o reconhecimento do Outro. Esse reconhecimento me autoriza a falar com o outro, em sua diferença.

Para que possamos responder ao chamado da criança, na experiência de atendimento, é exigido do ludoterapeuta que este saia da sua experiência de comunicação adulta (ou seja, de uma esfera do Mesmo) para acessar o discurso da criança, que varia dependendo de sua faixa etária. Aqui, abordamos a teoria piagetiana, na visão de Bacellar (2009): a possibilidade de acessar o universo infantil a partir da visão da própria criança, ao invés da composição de uma lógica abstrata produzida a partir do mundo adulto. Não deixando de considerar as diferenças epistemológicas entre Piaget e Rogers, a autora lança interessantes paralelos entre as duas teorias para discutir o atendimento infantil centrado na criança. Desde a não possibilidade, momentânea, da criança de perceber as características do outro, o egocentrismo, passando à maior percepção que esta passa a ter dela mesma, a individuação, é possível pensarmos em características próprias da comunicação e expressividade infantis.

No momento sensório-motor (aproximadamente de zero a dois anos), para que estabeleçamos comunicação com o bebê, há a necessidade de uma comunicação que privilegie a “[...] a imitação por contágio, para uma ação imitativa diferida, até chegar à ação imitativa interiorizada, representante das brincadeiras de faz-de-conta” (BACELLAR, 2009, p. 157). Na expressividade apresentada a partir do faz-de-conta, a criança tem desenvolvido a capacidade de representação simbólica. Esse é o contexto no qual a brincadeira é o meio de comunicação possível com a criança: o momento pré-operatório (cerca de dois a sete anos). Uma característica marcante de transição deste momento para o período operatório (aproximadamente sete a onze anos) é a reversibilidade, ou a possibilidade de anulação, no pensamento da criança, por uma ação orientada em sentido inverso, de ações efetivas das pessoas ou transformações percebidas no mundo físico. No período operatório, a criança vai substituindo gradualmente o faz-de-conta pelo jogo estratégico (BACELLAR, 2009).

A comunicação com a criança exige que a direção seja não mais do terapeuta para ela, mas dela para o terapeuta. Logo, não podemos tentar adequar a sua fala ao que compreendemos como familiar ou identificável, mas estabelecer comunicação a partir de vias que são “estranhas”, que exigem do psicólogo reconfigurações, traumas. Nesse sentido, encontrar com a criança que chega para o atendimento, mais do que o adulto, é ter de lidar com a alteridade em sua absoluta radicalidade.

A criança como Outro, como absoluta alteridade, apresenta-se pelas características pertencentes à sua forma única de chegada, chamado e exigência: pela diferença de idade, traz parâmetros diferenciados do mundo adulto, em termos de desenvolvimento e via de comunicação; em um universo de fantasia que me transporta para outros “mundos”; em uma exigência, assimétrica, de disponibilidade para o inesperado e o imprevisível. Por apresentar um conjunto de experiências diferenciadas do adulto, por não podemos englobar a infância nas ideias de “preparação para a idade adulta” ou qualquer outra noção, a criança se apresenta como Rosto que sugere uma diferença de outra ordem, pela exigência de uma comunicação lúdica.