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2. DA LUDOTERAPIA NÃO-DIRETIVA À LUDOTERAPIA CENTRADA NA

3.3. O pensamento ético levinasiano e a psicoterapia na ACP

3.3.2. Aproximações entre a ética levinasiana e a ACP

3.3.2.2. ACP como um encontro “Tu-Eu” em Schmid

3.3.2.2.8. Compreensão do adoecimento

Schmid (2004, 2005) afirma que a abordagem rogeriana para o entendimento sobre saúde mental era humanista, não médica. Em oposição a uma proposta analítica, o autor desenvolveu uma perspectiva sobre o atendimento psicológico que prima pelo encontro genuíno, na qual podemos verificar posturas semelhantes com a fenomenologia e o existencialismo75.

Para a compreensão de saúde psicológica, Schmid (2004, 2005) propõe uma teoria da autenticidade ao invés de trabalhar com o conceito de saúde. Para viver de forma autêntica, é necessário ser capaz de manter o equilíbrio entre as dimensões substancial e relacional em sua existência. Há autenticidade se houver uma manutenção do equilíbrio entre essas duas dimensões: tanto na realização de seus próprios valores e necessidades como na convivência com os outros, atendendo aos desafios e necessidades dessas relações. Para o autor, “a auto- realização e a solidariedade coexistem” (SCHMID, 2004, p. 38, tradução nossa)76. Uma pessoa que vivesse esse processo de autenticidade seria “‘saudável’ [...] ‘sã’, ou mesmo ‘normal’ ou ‘em ordem’ – de onde deriva o termo ‘des-ordem’” (SCHMID, 2004, p. 38, tradução nossa)77.

No entanto, é errôneo pensar que, sendo autêntico, não haveria espaço para a dor, para o sofrimento ou mesmo para momentos inautênticos. A concepção de saúde não seria um estado único. Cada pessoa tem a sua forma de ser autêntico (SCHMID, 2004, 2005). Essa ideia é possível de ser ligada com a proposta de Vieira (2010) – já explicitada anteriormente – e as experiências de embate do cliente com o radicalmente diferente no trabalho terapêutico, mais do que um processo que gere uma integração entre organismo e self. Ou seja, ser autêntico não é viver na dimensão do identificável, mas estar em constante confronto com as dimensões de si que são estranhas e remetem à alteridade. Para Schmid, a teoria da autenticidade nada tem a ver com uma teoria das falhas ou das des-ordens. A pessoa deve ser

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Sobre a aproximação com a fenomenologia e o existencialismo, é importante destacar que é exagerado afirmar que toda a psicologia rogeriana tenha sido fenomenológica (MOREIRA, 2010c). No entanto, observa-se, desde a obra Terapia Centrada no Cliente, segundo Moreira (2010c), as primeiras alusões de Rogers às filosofias fenomenológica e existencial. Na fase reflexiva, aparece o conceito de campo fenomenal (ROGERS, 1992[1951]) como uma primeira tentativa de composição sobre a relação entre terapeuta e cliente. Na fase experiencial, Rogers (2001[1961]) é explícito ao informar que não estudou a filosofia existencial. O contato com esse material ocorreu por insistência de alunos. Os autores os quais Rogers encontrou semelhanças com seu trabalho foram Kierkegaard e Buber. A influência de Gendlin, com seu conceito de experienciação, parece ter contribuído diretamente para a passagem da proposta rogeriana para uma orientação existencialista (MOREIRA, 2010c).

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Self-realization and solidatity coincide.

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compreendida em seu processo existencial, que significa o desenvolvimento tanto de si como de suas relações.

De acordo com Spielhofer (2003 apud SCHMID, 2004) os problemas com o processo contínuo de tornar-se autêntico (a inautenticidade) podem ser causados pelo desenvolvimento de um auto-conceito inautêntico ou pela dificuldade de acesso à experienciação organísmica. Para melhor compreender esta ideia, remeto-me a Rogers (KINGET; ROGERS, 1977[1967]) e ao processo de construção da noção de eu. Na experiência da criança, há uma inicial percepção de que ela vive em um mundo somente dela, seguida de uma interação com o meio e com as pessoas, que promove uma diferenciação. Como resultado dessa diferenciação, que constitui um aspecto da tendência atualizante, “um certo segmento da experiência se diferencia e se simboliza na consciência. Este segmento simbolizado corresponde à consciência de existir e de agir enquanto indivíduo [...]” (KINGET; ROGERS, 1977[1967], p. 197, grifos no original), podendo ser descrito como a experiência de eu ou noção de eu. Rogers ainda complementa essa proposta afirmando que “em consequência da interação entre organismo e meio, esta consciência de existir cresce e se organiza gradativamente para formar a noção do eu que, enquanto objeto da percepção, faz parte do campo de experiência total” (KINGET; ROGERS, 1977[1967], p. 197, grifos no original).

Aliado ao desenvolvimento da noção de eu, as interações ou as relações que a criança estabelece com as outras pessoas propiciam o desenvolvimento da necessidade de consideração positiva. Quando a noção de eu configura-se para atender apenas as expectativas das pessoas-critério (ou seja, a dimensão das relações que Schmid elenca em sua noção de pessoa), sem o equilíbrio com as experiências organísmicas, a pessoa pode passar a guiar-se apenas por uma de suas dimensões constituidoras: a relacional, em detrimento da substancial. Nessa perspectiva, portanto, os relacionamentos inautênticos teriam um importante papel, já que a pessoa torna-se e é a relação que constrói com os outros.

Para Schmid (2004), portanto, a pessoa torna-se inautêntica ao alienar-se de si e dos outros; ou seja, de suas experiências organísmicas e das necessárias relações genuínas com os outros. O resultado dessa inautenticidade é o sofrimento psicológico. Esse processo deve ser entendido como uma contradição entre o processo natural de experienciar e a noção de eu (algo também experienciado) enrijecida pelas relações não facilitadoras. Esta ideia de inautenticidade é qualitativamente diferente do entendimento de doença ou distúrbio. Muitas vezes, o que é vivido subjetivamente como sofrimento psicológico é visto pelos outros como

desajuste. No entanto, “se ele [o desajuste] é chamado de ‘desordem’78, deve-se ter

permanentemente em mente que a ‘ordem’ sempre é, também, uma norma cultural”

(SCHMID, 2004, p. 39, grifo no original, tradução nossa)79.

O sofrimento psicológico deve-se, assim, a uma deficiência ou perda da autenticidade, não importando se é um déficit de autenticidade na dimensão substancial ou na dimensão relacional; em qualquer um dos dois, a pessoa está em sofrimento. Quando há incongruência entre o self e a experiência organísmica, a pessoa tem uma perda da auto- confiança e da autonomia (déficit substancial). Em conjunto, há a perda da confiança em relação ao mundo e às outras pessoas por uma incongruência entre o que é percebido acerca dos outros. Estes não são vistos em sua diferença, o que configura um déficit relacional (SCHMID, 2004).

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Desordem (relacionada ao disorder, em inglês) pode ser também entendida pelo termo que é mais comum na língua portuguesa: transtorno.

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4. LUDOTERAPIA CENTRADA NA CRIANÇA – LEITURA A PARTIR DA ÉTICA