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Durante a Idade Moderna, uma visão da medicina fortemente sustentada na dimensão biológica da saúde e, em especial, da doença veio a predominar, a abordagem

biomédica. Ela ganhou espaço, principalmente, com a crescente compreensão de aspectos

anátomo-fisiológicos e bioquímicos, que trouxeram consigo o apelo às atribuições naturais do corpo, ou seja, às suas funções orgânicas (QUINTERO, 2007). Além disso, outros avanços filosóficos e científicos contribuíram para que essa visão se consolidasse: a disseminação das ideias de Descartes1 (ÓGATA; PEDRINO, 2004), a teoria microbiana

1 Ógata e Pedrinho (2004) se apoiam numa interpretação comum da visão cartesiana, que a identifica com um

dualismo mente-corpo. Mas interpretá-la assim é colocar a ênfase sobre a primeira e a segunda meditações cartesianas, ignorando a sexta meditação, na qual o filósofo francês busca mostrar que mente e corpo

elaborada por Pasteur e Koch (OLIVEIRA; EGRY, 2000) e a teoria boorseana (BOORSE, 1975; 1977), que defende a formulação básica de que “saúde = ausência de doença”, sendo a saúde compreendida como o funcionamento corpóreo normal e a normalidade associada à realização das funções biológicas pelos componentes do corpo (EWLES; SIMNETT, 2003; NAIDOO; WILLS, 2009).

Tesser e Luz (2002) destacam que a doença se constitui, nessa abordagem, no construto teórico-operacional em que se apoiam os cuidados com a saúde, ou seja, o olhar sobre a saúde e a prática médica são alicerçados na doença. Desta perspectiva, a saúde é discutida em oposição à doença, o tratamento e a cura do corpo são privilegiados, enquanto as influências sobre a saúde em outros níveis para além dos biológicos são negligenciadas (CARVALHO et al., 2008). Na verdade, a abordagem biomédica tem sido fortemente criticada nas literaturas filosófica, médica e educacional, que têm apontado os limites que ela impõe, por sua ênfase biologicista, colocando em consideração uma diversidade de fatores que podem influenciar a saúde, de ordem psicológica, social, política, econômica e ambiental (ver, p. ex., OMS, 1984; BUSS, 2000; CAMARGO JÚNIOR, 2003; MARTINS et al., 2014). Em contraste com a abordagem biomédica dominante, tem sido cada vez mais reconhecida a necessidade de tratar a saúde de modo interdisciplinar, reunindo contribuições epistemológicas, antropológicas, históricas, sociais, culturais, comportamentais, e não somente biomédicas (QUINTERO, 2007; KHAN, 2013). Foi neste quadro que emergiu a abordagem socioecológica2, que, em vez de tratar a saúde como mera ausência de doença, como faz a abordagem biomédica, se apoia numa visão positiva e coletiva de saúde, como “bem-estar físico, mental e social” (OMS, 1986, p. 1).

O surgimento desta abordagem socioecológica, então, se concretizou quando se começou a buscar também no ambiente as causas das doenças, investigando-se não apenas agentes de caráter biológico, mas também fatores físicos, sociais, econômicos e políticos relacionados com a saúde (QUINTERO, 2007). Dessa perspectiva, os principais aspectos da saúde, seja no âmbito individual ou coletivo, são as reações dos indivíduos frente às condições de risco ambientais, psicológicas, biológicas, educacionais, culturais, ocupacionais e políticas (WESTPHAL, 2006; HOYOS; OCHOA; LONDOÑO, 2008).

constituem uma “união substancial real”. Sem dúvida, há dificuldades importantes na posição de Descartes sobre a relação mente-corpo, mas simplesmente representá-la como um dualismo de substâncias pode obscurecer quais os problemas realmente centrais que ela realmente enfrenta (MUGURUZA, 2013). Note-se, contudo, que isso não significa que a discussão do dualismo mente-corpo não seja importante e que não tenha influenciado a história da Medicina, uma vez que, não obstante as qualificações na interpretação das meditações de Descartes, este dualismo de fato se afirmou entre os caudatários posteriores do cartesianismo.

2 Cabe destacar que há, ainda, outras terminologias utilizadas para a denominação dessa abordagem ampliada

de saúde, por exemplo, termos como ‘holística’ e ‘ampliada’ mas que, por terem múltiplos significados, não se mostram suficientemente precisas para veicular, como deve fazer uma boa designação, parte substantiva do conteúdo da abordagem. ‘Ecológica’ e ‘ambiental’ são termos limitados por deixar de fora, de acordo com os trabalhos analisados em nossa revisão bibliográfica, a dimensão social, algo que ocorre em alguns trabalhos que dão ênfase aos fatores ambientais. Desse modo, consideramos a denominação abordagem socioecológica mais apropriada por entendermos ser necessário compreender os problemas ambientais de modo integrado aos problemas sociais, bem como aos demais fatores que podem influenciar o processo saúde-doença. Ademais, em nossa perspectiva, o termo socioecológico reforça o papel ativo do indivíduo no processo de transformação/mudança social. Em outras palavras, vemos o indivíduo como peça-chave para a mudar a realidade no qual ele se encontra, mesmo que a situação seja um cenário adverso. Em contrapartida, a terminologia socioambiental (ver WESTPHAL, 1997), por exemplo, daria ênfase à necessidade, primeiramente, de um ambiente favorável para que, assim, o indivíduo possa agir em prol de mudanças no contexto da saúde.

Mais do que curar doenças, as ações socioecológicas de saúde visam à educação, orientação, sensibilização e a mudanças comportamentais dos indivíduos, lado a lado com ações que tenham como alvo, além do indivíduo, a coletividade como: padrão adequado de alimentação e nutrição, assim como de habitação e saneamento; boas condições de trabalho; oportunidades de educação ao longo de toda a vida; ambiente físico limpo; apoio social para famílias e indivíduos; estilo de vida responsável; e um espectro adequado de cuidados com a saúde (BUSS, 2000).

Ademais, na abordagem socioecológica dá-se grande ênfase ao papel da educação na promoção da saúde, devido à sua capacidade transformadora e formadora dos indivíduos. Ela constitui uma maneira de empoderar as pessoas para que sejam agentes ativos na busca de saúde individual e coletiva, bem como na realização de intervenções na comunidade de modo orientado e buscando o bem-estar sociocultural, com consciência de que a saúde é um direito das pessoas e comunidades.

Assim, a análise de documentos que estabelecem diretrizes para o ensino e que favorecem a aprendizagem de temas relacionados à saúde na escola pode apontar se houve mudanças no modo como a saúde é apresentada, visões hegemônicas em determinado período, assim como desafios a enfrentar tanto do ponto de vista didático como de produção de conhecimento sobre o tema. Entretanto, para que ocorra aprendizagem sobre a saúde e suas relações com esferas mais amplas, como a social e a ambiental, por exemplo, é necessária uma mudança não somente na forma como tais conexões são apresentadas aos alunos, mas uma reestruturação do currículo escolar visando à inclusão de temas que propiciem o reconhecimento dos diversos aspectos no processo saúde-doença. Em muitos países, essa necessidade tem se tornado cada vez mais premente, fazendo até mesmo com que possíveis resistências a essas inserções percam força (DILLON, 2012).

Agrega-se a isso o fato de que é importante considerar que as ações de saúde podem situar-se em dois pólos distintos: o da abordagem biomédica e o da socioecológica. Isso significa dizer que o tratamento da saúde pode estar centrado em um dos pólos ou entre ambos, mais próximo de um ou de outro. Ademais, as discussões podem embasar-se em alguns dos pressupostos teóricos e práticos de ambas as abordagens, permitindo um olhar para a saúde como um continuum que por vezes avança, por vezes regride, por não serem “opostos extremos” (REEVE; BELL, 2009, p. 1970). Assim, a depender do contexto, características da abordagem biomédica se configuram como mais adequadas, em oposição às da abordagem socioecológica, e vice-versa.

Em outras palavras, qualificando estas abordagens como pertencentes a perspectivas diferentes, a saúde pode estar focada exclusivamente na abordagem biomédica ou incorporar ações, por exemplo, mais abrangentes e aprimoradas que não são compatíveis com a essência desta abordagem, mas que não se configuram por si próprias nos construtos da abordagem socioecológica. Ou seja, mesmo que a abordagem biomédica inclua algum aspecto mais totalizante da saúde, esta pode não se configurar como abordagem socioecológica, pois a primeira tem suas características típicas e seu cerne bem definido. Assim, em nosso ver, essa tipologia de abordagens da saúde ilumina adequadamente as diferentes formas de falar e agir em saúde e doença, não restringindo uma discussão a um único foco.