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3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.2 A ABORDAGEM BIOMÉDICA

3.2.5 O reducionismo e o sistema “hospitalocêntrico”

A visão de que o indivíduo é composto por partes corpóreas isoladas é comum na abordagem biomédica. Assim, o tratamento das doenças começa pela identificação do local, no corpo, que apresenta alguma anormalidade anatômica e/ou fisiológica, por exemplo. Esta perspectiva reducionista, uma vez que há um entendimento fragmentado do corpo, tem relação direta com as práticas de saúde a serem adotadas, como as intervenções hospitalocêntricas, que prezam por intervenções específicas e localizadas, no indivíduo, não se preocupando com as relações existentes entre os sistemas do corpo, bem como entre o corpo e o meio.

Para alguns autores, no entanto, práticas de caráter reducionista (como, por exemplo, intervenções medicamentosas, hospitalocêntricas) deveriam ter um espaço cada vez menor nas ações de saúde implementadas para os indivíduos e a sociedade, pois suas bases teóricas não reconhecem as relações existentes entre a saúde e os diversos outros aspectos que a influenciam, a exemplo dos emocionais, ambientais e sociais.

Desse modo, a visão hegemônica restrita da doença como “um conjunto de obstáculos à plena fruição dos projetos de felicidade dos indivíduos” (CAMARGO JÚNIOR, 2007, p. 72) se torna compatível com a perspectiva reducionista, que alicerça, muitas vezes, a visão do processo de saúde e doença. Mas ela é incompatível com a felicidade, quando esta é entendida como um estado dependente da saúde, que se configura pela confluência de aspectos psicológicos, culturais, socioeconômicos etc., como já dito. Não se deve, então, dar preeminência a práticas reducionistas porque elas não dão conta dos diversos aspectos que interferem na saúde e, consequentemente, não promovem a felicidade, que depende de ações que considerem os vários aspectos da saúde.

Além disso, ao privilegiar esta visão reducionista nega-se o sofrimento como um fato da vida, tendo em vista que a perspectiva biomédica fortalece a associação da doença a um processo terapêutico e medicamentoso, no qual, diante de qualquer desconforto, o médico se transforma, com seus diagnósticos e suas intervenções medicamentosas, numa suposta cura para todos os males.

Assim, a medicalização, a associação da saúde a produtos comercializáveis, as dificuldades conceituais envolvendo os termos ‘saúde’ e ‘doença’ e a noção de doença como um obstáculo à felicidade fazem, em seu conjunto, com que a abordagem biomédica esteja cada vez mais presente na sociedade. A predominância dessa abordagem pode ser percebida com o aumento significativo de processos legais contra as iatrogenias hospitalares12, o crescimento de movimentos e associações contra erros médicos, o consumo abusivo de medicamentos psicotrópicos, os enormes gastos familiares e públicos com um sistema “hospitalocêntrico”, o qual, segundo Meneghel (2008), transformou o hospital em espaço normatizado para a cura, oferecendo em troca da doença e do sofrimento a cura e a saúde (ver também NAIDOO; WILLS, 2009). O sistema hospitalocêntrico, sendo este, geralmente, regido por ações de caráter biomédico, tem como reflexo o mascaramento dos papeis (individuais e coletivos) envolvidos em ter e manter a saúde, assim como encoberta a importância da dimensão social da saúde, na medida em que esta é entendida apenas como a ausência de doença, conforme defendido pela abordagem biomédica.

12 Iatrogenias hospitalares são alterações patológicas nos pacientes que são decorrentes de cirurgias

desnecessárias, omissões de tratamento, erros médicos, erros na dosagem de medicações, infecções hospitalares, lesões pós-terapêuticas etc.

Por sua vez, é importante destacar que reconhecemos que muitos desses fatores (prática médica, indústria farmacêutica, hospitais etc.), que contribuíram para a hegemonia da abordagem biomédica, têm importância tanto para os aspectos conceituais quanto para os aspectos práticos da saúde. O argumento, portanto, não é que deveriam ser eliminados do sistema de saúde, mas, antes, agregados aos aspectos contextuais, históricos e políticos, em vez de serem tratados isoladamente como os pilares da saúde e da doença. O que está em jogo, antes, é a importância de conhecer e relacionar os muitos fatores que influenciam as condições de saúde, o que permite realizar estratégias que trazem potenciais alterações nos modos de lidar com a doença, através de ações que afetem a condição de vida e trabalho dos indivíduos e grupos da população, e não estejam centradas principal ou exclusivamente nas instituições hospitalares.

Em outras palavras, vários aspectos, incluindo fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais definem a saúde, bem como a ocorrência de agravos a ela, podendo ser considerados fatores de risco numa população. Portanto, é necessário não ignorá-los, mas relacioná-los ao que se almeja em termos da saúde (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007). Afinal, o processo de saúde e doença só pode ser concebido através de sua integração a condições geográficas, históricas, econômicas, políticas, sociais e culturais (CZERESNIA, 2008).

Cabe destacar, por fim, que os olhares reducionistas para o processo de saúde e doença podem se encontrar na comunidade, no indivíduo doente, nas políticas públicas que limitam esse processo ao nível biológico. Isso significa que não é necessariamente o caso de que todos os profissionais de saúde possuam esse olhar, mesmo que contrariando os ditames de sua própria formação profissional, como mostrou o estudo de Rozemberg e Minayo (2001), ao analisarem uma situação de adoecimento e cura em uma comunidade agrícola do interior de Nova Friburgo/RJ, e Dalmolin et al. (2011), ao investigarem o conceito de saúde de docentes do ensino superior de cursos da área da saúde.

Agrega-se a isto o fato de que, mesmo que esses olhares reducionistas sejam hegemônicos na sociedade, é possível superá-los. Falavigna-Guilherme e colaboradores (2002) propõem que a mudança desta visão se concretiza se houver uma diversidade de ações em saúde que não sejam focadas em medidas preventivas ou terapêuticas. Esses autores, por exemplo, propuseram várias atividades educativas para o controle de triatomíneos com professores, alunos, profissionais de saúde, comunidade rural, através de teatro, fantoches, reuniões com a comunidade, aspersão de inseticidas, construção de mostruários de triatomíneos, entre outras ações. Após três anos de execução dessas atividades, houve uma redução de 80,6% das unidades domiciliares infestadas por triatomíneos em municípios do Paraná. Assim, este trabalho mostra que atividades diversificadas propostas para os vários integrantes da comunidade e não focadas apenas no aspecto negativo da saúde e no sistema hospitalar podem alcançar sucesso e sensibilizar a população de seu papel na prevenção de doenças e na qualidade de vida. Isso porque o viver saudável se constitui num conjunto de fatores e intervenções que requerem tanto o comprometimento de cada indivíduo, família ou comunidade quanto o envolvimento e engajamento efetivo dos profissionais e gestores da saúde, responsáveis pelo fomento de políticas inclusivas e participativas (BACKES et al., 2011). Afinal, as condições de saúde dos indivíduos e das comunidades certamente envolvem suas condições de sobrevivência, moradia, trabalho, autonomia, sustentabilidade ambiental. Contudo, a abordagem biomédica tipicamente não atua ao nível dos ‘macrodeterminantes’ da saúde (relacionados à política, economia, mercado de trabalho,

proteção ambiental, promoção de uma cultura de paz e solidariedade etc.), tão importantes quando se visa reduzir as desigualdades sociais e econômicas, a violência, a degradação do meio ambiente e seus respectivos efeitos na saúde das pessoas e sobre as sociedades (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007).