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3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.2 A ABORDAGEM BIOMÉDICA

3.2.2 As ideias de normalidade, doença e enfermidade

Mas o que a abordagem biomédica realmente postula? Um dos aspectos dessa abordagem mais discutidos por diferentes correntes teórico-filosóficas reside na

admissão do binômio saúde-doença. A formulação básica de que “saúde = ausência de doença” encontra uma elaboração mais cuidadosa em Christopher Boorse (1975, 1977). Para este autor, a saúde consiste no funcionamento corpóreo normal, sendo a normalidade entendida através da realização das funções biológicas pelos componentes do corpo e em termos de uma normalidade estatística.

A compreensão da saúde através da normalidade estatística significa sua associação a parâmetros considerados satisfatórios para determinadas variáveis clínicas, como peso, altura, batimentos cardíacos, frequência respiratória, pressão arterial etc. (BOORSE, 1975, 1977; CANGUILHEM, 2007). Portanto, indivíduo saudável é, nesta acepção, aquele que apresenta taxas e valores dentro dos limites considerados normais, independentemente de outros fatores que possam provocar oscilações nesses parâmetros. Assim, uma atividade física, por exemplo, poderia levar, em termos desta normatividade estatística, a uma qualificação do indivíduo como doente, porque altera a frequência respiratória, os batimentos cardíacos, a produção de suor etc., ultrapassando muitas vezes os limites padronizados como normais. Isso mostra que há problemas em tratar a saúde através de parâmetros de normalidade estatística, como faz Boorse.

Entretanto, cabe destacar que essa crítica pode ser atenuada a partir do reconhecimento de que a normalidade estatística pode oscilar a depender das condições às quais o indivíduo é exposto. Logo, a partir do condicionamento dos valores ditos normais a condições de repouso e criando variações dos parâmetros esperados em determinadas situações, como no esforço físico, por exemplo, poderíamos aceitar alguns construtos boorseanos.

A teoria boorseana também associa a saúde à funcionalidade orgânica, ou seja, saudável é aquele indivíduo que tem todas as funções biológicas sendo exercidas dentro dos padrões considerados normais para o corpo. Outro aspecto que Boorse defende é a necessidade de diferenciar os termos ‘doença’ e ‘enfermidade’, numa tentativa de discutir a saúde destituída de quaisquer valores. Para ele a enfermidade é uma subclasse da doença, referindo-se à doença com certas características normativas, refletidas nas práticas médicas (ALMEIDA-FILHO; JUCÁ, 2002). Neste sentido, Boorse (1975) destaca, ainda, que o conceito de enfermidade deve, preferencialmente, ser associado a doenças graves, que sejam suficientes para que ocorram efeitos incapacitantes, uma vez que, desse modo, conduz a decisões normativas sobre o tratamento e as intervenções.

Assim, a enfermidade constitui o foco de análise da saúde prática, por tratar dos sinais e sintomas das doenças, do comprometimento funcional do indivíduo, das incapacidades apresentadas pelo doente etc., enquanto a doença é foco de estudo da saúde teórica, não estando relacionada às ações médicas e intervenções institucionais, como ocorre em certas doenças acopladas a enfermidades. Portanto, na proposta de Boorse, ‘enfermidade’ é um termo que denota um contexto prático e ‘doença’, um contexto teórico.

Para Boorse (1975) é também importante compreender a distinção entre as tipologias de saúde (saúde teórica e saúde prática). Boorse defende que deve haver uma distinção entre as definições de uma ‘saúde teórica’ e uma ‘saúde prática’. A primeira é caracterizada como a ausência de doença e difere da saúde prática, por ser esta última entendida como uma área voltada para a ausência de enfermidades tratáveis (BOORSE, 1975).

Este autor defende que uma interpretação valorativa da saúde, associando-a a bem-estar, qualidade de vida, estado saudável, não é válida, porque, se assim o fosse, os fenômenos patológicos não poderiam ser chamados de doenças. Isso porque o ‘patológico’ também poderia ser associado a um valor e, portanto, poderia ser vinculado

à saúde, e não ao seu oposto, a doença (que não é valorativa), como geralmente ocorre (ver BOORSE, 1975, 1977; ALMEIDA-FILHO; JUCÁ, 2002). Em outras palavras, ao reconhecer a saúde como um valor, é difícil caracterizá-la, pois o estado de saúde/equilíbrio e de doença/desequilíbrio varia entre as pessoas, logo não é possível valorar a saúde, na teoria boorseana. Além disso, ele destaca que a noção de saúde dos indivíduos e da sociedade está embutida de múltiplos valores. Por isso, há certa dificuldade de entender a sua conceituação em termos de um único valor (BOORSE, 1975).

A teoria boorseana está vinculada, em sua formulação, a uma influência do reducionismo, do biologicismo e da unicausalidade sobre as concepções de saúde e de doença, ou seja, aos pressupostos característicos da abordagem biomédica (EWLES; SIMNETT, 2003; CARVALHO, 2006; NAIDOO; WILLS, 2009). Podemos dizer, inclusive, que o trabalho de Boorse constitui uma tentativa de formulação precisa da concepção de saúde e doença característica desta abordagem.

Muitas críticas à abordagem biomédica se apoiam em sua interpretação como uma visão da saúde de forma fragmentada, reducionista, que coloca as doenças como objetos de suas práticas, privilegiando o tratamento e a cura do corpo e negligenciando a inserção social e ecológica dos seres humanos e, assim, a saúde propriamente dita. Para Camargo Júnior (2007, p. 64), aceitar essa abordagem engendra três dificuldades interligadas, “a própria indefinição conceitual; o reducionismo biológico da

biomedicina; a reificação da noção de doença”. Estas dificuldades serão discutidas

abaixo.

Cabe destacar que a prevalência da abordagem biomédica pode ser uma decorrência hegemônica, na cultura popular e científica do mundo ocidental, da visão de que a saúde advém da regulação anátomo-fisiológica do corpo (ver CHAMMÉ, 1996; COELHO; ALMEIDA-FILHO, 2002; CUTOLO, 2003). Sua prevalência pode ser percebida no cotidiano das pessoas, através das práticas de saúde planejadas e implementadas para a população, que geralmente visam à prevenção, ao tratamento e/ou à cura de doenças específicas; ou, ainda, pela disseminação de informações sobre a saúde que a abordam quase sempre à luz de doenças.

Isso não significa que a concepção de saúde como ausência de doença não esteja elucidada pelas visões biomédicas, tanto que se tem uma coletânea de doenças listadas no Código Internacional de Doenças (CID), na tentativa de uniformizar a linguagem usada para lidar com as doenças, facilitando a prática médica. Segundo Camargo Júnior (2003), o CID caracteriza o eixo teórico da abordagem biomédica como uma teoria das doenças. O principal problema dessa abordagem é a definição da saúde como ausência de doença. Do ponto de vista epistemológico, a dificuldade de conceituar saúde (‘indefinição conceitual’, nos termos de Camargo Júnior) a partir de seu contraponto, a doença, pode também ser uma consequência da carência de estudos sobre a ‘saúde’, em particular, sobre como abordá-la positivamente. Para Coelho e Almeida-Filho (2002, p. 316), tal pobreza conceitual pode ter sido resultado da influência da indústria farmacêutica e de certa cultura da doença, que têm restringindo o interesse e os investimentos em pesquisas que não tratem questões de saúde em termos da mera ausência de doença.