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1 Tipos normativos no Antigo Regime

1.1 Absolutismo e formação do Estado moderno

No primeiro capítulo se faz uma análise dos diferentes tipos normativos, dos instrumentos legais e das suas formas diante do pano de fundo do absolutismo político. A análise leva em consideração a utilidade do uso dos “contraconceitos” para revelar os contrastes e a evolução dos significados do objeto de estudo em relação a uma estrutura de longa duração. A análise daqueles tipos normativos traz a necessidade de uma revisão das teorias jurídicas sobre o absolutismo, que possibilitariam a ascensão do Direito legislado perante o Direito comum do Antigo Regime, apesar das importantes limitações sociais e políticas apresentadas ao Direito positivo durante todo o período estudado. A análise das teorias jurídicas vinculadas ao absolutismo se mostra indispensável também porque estas efetivamente moveram um processo de reavaliação das distinções internas entre os dispositivos legais legislados e da hierarquia da lei perante os demais tipos normativos. Muito do estudo sobre o absolutismo estará também relacionado às interpretações sobre o absolutismo dentro do discurso liberal, que pertenceriam ao panorama conceitual presente na legislação e nas decisões do governo durante a regência.

1.1.1 Absolutismo e liberalismo

Não existe uma definição unânime sobre o “liberalismo político”. Suas raízes podem ser encontradas naquilo que B. Russell identificava como o “liberalismo filosófico” nascido na Inglaterra e na Holanda; isto é, um movimento predominantemente marcado pelo questionamento das autoridades seculares e eclesiásticas que levaria ao individualismo nos campos social, político e econômico. Com vistas a se preservar as peculiaridades do liberalismo político e econômico do século XIX e suas ramificações continentais e transatlânticas, este pode aqui ser descrito como o primeiro liberalismo (early liberalism), ou liberalismo clássico19.

No campo político, o principal alvo daquele liberalismo foi o “direito divino dos reis” e, em menor medida, o fundamento hereditário do poder político, progressivamente substituído pelo direito da comunidade política de escolher a sua própria forma de governo. Ao mesmo tempo, as tendências mais “democráticas” presentes naquele movimento, teriam sido contidas pela centralidade da propriedade como elemento estruturante do direito e da moral social. A importância da propriedade como cerne do movimento liberal não afastava ainda, porém, a expectativa de que o poder político deveria estar orientado ao “bem da comunidade” ou ao “interesse público”. Enquanto a proteção da propriedade privada poderia ser vista como o bem supremo para a comunidade, a tentativa de conciliação destes dois fundamentos políticos tradicionais no liberalismo já estava presente como problema em John Locke, mas é importante destacar que liberalismo político não rejeitaria todos os elementos tradicionais presentes nas doutrinas absolutistas de forma ampla ou radical.

A inconciliável dissociação entre a “propriedade absoluta” e o “interesse da comunidade” enquanto “problema não resolvido” permaneceria, marcadamente, no debate sobre a extensão e abrangência da lei e do seu contraste com as manifestações extralegais ou autocráticas da autoridade pública. Tomada de forma geral, a distinção entre as esferas da lei e do decreto, ou da lei e dos atos monocráticos do chefe de Estado, vista como um problema teórico, pode ser interpretada como a continuação de uma contradição do liberalismo clássico e não somente uma discussão exclusiva do parlamentarismo monárquico do século XIX. É evidente que este problema se tornaria muito mais importante ao ser inserido na lógica do constitucionalismo moderno, mas ele poderia ser pensado à época como parte de um problema a ser resolvido dentro do panorama conceitual preexistente.

marked characteristics. It stood for religious toleration; it was Protestant, but of a latitudinarian rather than of a fanatical kind; it regarded the wars of religion as silly. It valued commerce and industry, and favoured the rising middle class rather than the monarchy and the aristocracy; it had immense respect for the rights of property, especially when accumulated by the labours of the individual possessor. The hereditary principle, though not rejected, was restricted in scope more than it had previously been; in particular, the divine right of kings was rejected in favour of the view that every community has a right, at any rate initially, to choose its own form of government […] The distinctive character of the whole movement is, in a certain wide sense, individualism; but this is a vague term until further defined”.(RUSSELL, p. 597).

Este panorama conceitual preexistente era formado por um conjunto de ideias e de concepções com características de longa duração, relacionadas a uma estrutura experimentada em um “ritmo mais lento” (BRAUDEL, 1982, p. 33). Entendido como inverso ao liberalismo, o “absolutismo” era contestado de forma ampla pelos praticamente todos estadistas e políticos brasileiros. O liberalismo chega no Brasil ao mesmo tempo que chega em Portugal, com a revolução constitucional do Porto. Para entender as origens do problema da lei e dos avisos no sistema constitucional brasileiro é necessário entender o seu pressuposto histórico, que construiu um panorama para a compreensão dos conceitos jurídicos modernos, o absolutismo.

1.1.2 Absolutismo em sentido sociológico

De acordo com as interpretações tradicionais (LINDSAY, 1957; BAUMAN, 1987; BLACK, 2009), a ascensão do absolutismo teria sido um processo de rearranjo político associado ao enfraquecimento da sociedade feudal20. Na medida que o feudalismo perdia espaço e a

nobreza perdia sua “função pública” a estrutura administrativa diretamente vinculada à Coroa ganharia uma predominância sobre os demais poderes da sociedade, ainda que não tivesse força para exercer efetivamente este poder político. Assim, a interpretação histórica tornada clássica por Tocqueville (1997 [1856]) destacou que o absolutismo surgia em um momento de declínio das estruturas tradicionais de poder (não sendo, portanto, a causa do declínio de tais instituições) representado pela perda de um papel político coerente da nobreza hereditária militar e da numerosa nobreza togada.

A reavaliação da “função” da nobreza para o Estado faria parte importante da doutrina política de Montaigne (LAGER, 2005) e de Montesquieu (DOYLE, 2009; MONTESQUIEU, 2008 [1748]), para

20 “The phenomenon described in historical literature as the rise of absolutism was - sociologically speaking - a process of redeployment of political power in the wake of, or simultaneously with, the waning of the feudal principle of association between landowning rights and administrative duties” (BAUMAN, 1987, p. 26).

mencionar o caso francês; o mesmo debate se faria muito presente no mundo ibérico (MATTOSO, 1997). A ala “mais baixa” da nobreza seria diretamente um resultado das políticas da coroa de vendas e doações de ofícios que traziam consigo títulos nobiliárquicos vinculados à administração da justiça. Não se pode deixar de destacar, por isto, que o aumento do poder da Coroa não geraria necessariamente um enfraquecimento da nobreza: o monarca precisava usar não só do poder da nobreza, mas sobretudo do poder de enobrecer seus súditos, agraciando-os pelos serviços prestados. O enfraquecimento da nobreza apontado por Tocqueville seria um registro da perda de importância política da nobreza enquanto “classe” ou estamento, acompanhada da

refuncionalização política da nobreza em torno dos seus serviços à Coroa.

Tudo isto, é claro, teria sido pensado para descrever a ascensão do absolutismo francês, mas em maior ou menor medida pode ser aplicado a outras experiências monárquicas modernas.

No Antigo Regime a fonte de legitimidade da politeia, da constituição de um governo bem-ordenado, estava fundada em uma concepção sobre a natureza e sobre uma longa tradição. Neste contexto, o pluralismo político do Antigo Regime significava também um pluralismo normativo e a pluralidade de fontes exercia um papel estabilizador para o sistema político.

Um importante traço simbólico sobre as funções do governo encontrava-se na valorização da moderação e da conservação da ordem estabelecida e a generalizada apreensão perante as inovações no campo da política e do governo. Visto desta forma, o governo teria o dever de proteger o direito e a justiça fundados na tradição e suas inovações precisariam ser justificadas como novas formas de conservar a ordem.

Para proteger a tradição, o direito era composto de diversas “camadas” tendencialmente refratárias a quaisquer mudanças bruscas. Destacava-se na “base do sistema” a estabilidade das leis divinas e do direito natural, que atuavam tanto sobre os governantes como sobre os governados. Sedimentadas sobre aquela base estariam as instituições dos juristas, os tribunais, com suas práticas e seus estilos aplicados aos precedentes, de forma a criar uma espécie de “razão artificial” própria da jurisprudência.

A oportunidade para o governante de romper mais abertamente com as amarras do direito comum e dispensar este direito para criar um novo tipo de direito (disponível, voluntário) se apresentava mais claramente perante a administração colonial. Como lembrou Hespanha:

Esta autorização para criar direito – ou, pelo menos, para dispensar o direito existente – era uma consequência normal da natureza das funções de governo ultramarino que lhes eram confiadas. De facto, eles lidavam, por um lado, com matérias mutáveis, tal como as militares e marítimas. Por outro lado, o seu contexto político não era o mundo estabilizado da política dos reinos europeus, em que a justiça e o governo estava enraizados em tradições estáveis e duradouras e formalizados em processos e fórmulas fixados pelo tempo (HESPANHA, in MATTOSO, 1997, p. 19).

Como o mundo colonial português teria ressaltado seu aspecto econômico e útil para a Coroa – especialmente no período pombalino – os instrumentos normativos e as instituições excepcionais que eram raras no Reino e no direito comum, teriam um papel mais importante e uma expansão menos inibida. Isto seria reforçado pelo desenvolvimento da doutrina da “razão de Estado” e, depois, da “ciência da polícia” e de todos os seus pressupostos, vinculados à busca pela segurança e prosperidade do Estado em um contexto de competição entre nações marcadas pelo mercantilismo.

1.2 Rei juiz e rei legislador: desenvolvimento da competência