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2 O Direito legislado no Antigo Regime

4.3 As reações liberais à reação conservadora

4.3.1 Crítica à centralização administrativa através do

Um dos maiores críticos da reação conservadora foi o deputado liberal Aureliano Cândido Tavares Bastos93. Tavares Bastos

viria a representar o polo oposto ao Visconde do Uruguai do debate ocorrido na década de 1860 sobre a centralização administrativa e a sua reavaliação. Passado o período de “construção da ordem” (CARVALHO, 2003) e descaracterizado o risco da desintegração nacional, o partido liberal voltaria a defender a bandeira da autonomia das províncias e uma espécie de federalismo (FERREIRA, 1999) e Tavares Bastos representaria desta proposta de retorno ao programa liberal da regência.

Em “A província: estudo sobre a descentralização no Brazil”, publicado em 1870, Tavares Bastos iria descrever a centralização administrativa promovida pelos conservadores a partir do regresso até a década de 1860 como um processo movido pelo “espírito de reação”, marcado pela intervenção governamental:

Este espírito delirante de uma reação que não recuava sequer diante do infinitamente pequeno, tocou ao zenith quando os decretos de 1860 concentraram no poder executivo o direito de autorizar a incorporação das sociedades anônimas (TAVARES BASTOS, 1870).

Tavares Bastos descrevia a reação como um movimento que teria concentrado poderes não somente no âmbito do governo central, mas principalmente no Poder executivo. O mesmo se refletia nas províncias,

93 Obra disponível em:

http://www.brasiliana.com.br/brasiliana/colecao/obras/58/A-Provincia-Estudo- sobre-a-descentralizacao-no-Brasil

nas quais o representante do Poder executivo central – o presidente de província – ganhava maior proeminência e poder de intervenção sobre o legislativo e o judiciário.

E mais longe que seus antecessores devera de ir o gabinete de 16 de julho”. Assim, continuava Tavares Bastos, “seus delegados suspendem leis sancionadas e promulgadas. Uma circular de 1868 determina aos presidentes que não sancionem lei alguma criando novas comarcas, e lhes declara que o governo não proverá de juízes as que não obstante se criarem. A reação afronta a legalidade, desafia as províncias (TAVARES BASTOS, 1870).

O autor argumentava ainda contra a excessiva atuação do governo central através dos avisos e consultas. Diante dos eventuais abusos na interpretação e na aplicação do Ato Adicional pelas províncias o autor – discordando do uso das consultas e avisos pelo governo, seguidos da suspensão da lei pelo presidente de província – acreditava que “instruções bastavam para reivindicar a boa doutrina dentro dos limites do direito vigente. Aí está a razoável jurisprudência admitida em muitos casos pelo próprio autor da lei reacionária, o visconde de Uruguai” (TAVARES BASTOS, 1870).

A chamada “lei reacionária”, que tinha como principal autor o Visconde do Uruguai, era a lei de interpretação do ato adicional, que seria identificada como uma das mais significativas vitórias legislativas dos conservadores. As reformas legislativas da reação teriam buscado justamente combater os maiores “avanços liberais” promovidos no início da regência. Assim, os regressistas teriam ganho no parlamento com a legislação que dava nova interpretação ao Ato Adicional, que reformaria o Código de processo criminal, que alteraria a administração da justiça, que reformaria a guarda nacional, etc. Tavares Bastos, no entanto, diagnosticaria uma manifestação mais profunda da ideologia do regresso. O governo não precisava mais reformar toda a legislação em conjunto com o Parlamento para alcançar seus objetivos políticos, pois passaria a “legislar” por avisos:

A lei de polícia e justiça (1841) e a da guarda nacional (1850) aniquilaram o espírito público nas localidades, centralizaram a política: a lei e o aviso de 1860 atacaram a prosperidade material das

províncias e o princípio de associação, coroando a obra do golpe de estado de 12 de maio de 1840. Por isso, 1860 é o non plus ultra da reação. Desde que valeu-se de simples avisos para interpretar e corrigir o ato adicional, revogando leis expressas, nenhum poder mais restava ao governo usurpar (TAVARES BASTOS, 1870).

Citando o Ensaio de Visconde do Uruguai, Tavares Bastos destacava que o próprio autor da lei de interpretação ao Ato Adicional reconhecia a competência das assembleias provinciais em “certos negócios provinciais”. “Pese-se bem esta frase”, argumentava Tavares Bastos, “nos negócios meramente provinciais, o poder legislativo provincial não tem superior; mas quantos abusos contra esta sã doutrina! E não da assembleia geral, porém do poder executivo”.

O movimento de “centralização administrativa” criticado por Tavares Bastos seria frequentemente entendido como um problema de conflito entre as duas esferas de competência legislativa – a Assembleia geral e as Assembleias provinciais – nas quais as elites iriam disputar o poder e negociar institucionalmente em prol dos seus interesses. Esta interpretação é também importante, mas é possível destacar outro aspecto do problema identificado por Tavares Bastos, acerca da centralidade do Poder executivo ao expedir normas e avaliar a competência legislativa do Poder legislativo provincial através do Ministério da Justiça, do Ministério do Império e dos presidentes de província.

Sobre a possibilidade do governo central suspender a execução das leis provinciais, Tavares Bastos destacava o conflito não só entre o centro e as províncias, mas também o conflito entre os poderes: “Demais, só uma grande confusão de ideias pode inspirar tal doutrina em nosso regime: a assembleia provincial é ramo do poder legislativo; como pode então o executivo revogar uma lei provincial?” (TAVARES BASTOS, 1870).

A crítica de Tavares Bastos identificava, corretamente, que o Poder executivo central realizava um controle direto sobre a legislação provincial através de dispositivos infra legais, suspendendo a eficácia das leis provinciais que violasse a competência legislativa da Assembleia geral. Este tipo de procedimento realizado pelo Poder executivo – uma espécie de “controle de constitucionalidade formal” – havia sido pensado por Visconde do Uruguai. Aquela doutrina inspirada numa “grande confusão de ideias” já estava implícito na redação original do projeto da lei de interpretação do Ato Adicional.

O projeto da lei de interpretação seria aprovado somente após a aprovação de uma emenda que adicionava um último artigo à lei, contrariando expressamente a intenção do autor da “lei reacionária”. O Art. 8º da lei determinaria que “as Leis Provinciaes, que forem oppostas á interpretação dada nos artigos precedentes, não se entendem revogadas pela promulgação desta Lei, sem que expressamente o sejão por actos do Poder Legislativo Geral”. Além de preservar a legislação em vigor até aquele momento, este artigo formalmente impediria a revogação das leis provinciais por outros meios, senão por expressa manifestação do Poder legislativo.

Uruguai posteriormente defenderia sua proposta de “controle de constitucionalidade” pelo Poder executivo vagamente no seu Ensaio

sobre o Direito Administrativo (1862) e de forma mais elaborada, com

referências ao papel do Poder moderador e do Conselho de Estado, em

Estudos práticos sobre a administração das províncias do Brasil (1865).

No segundo volume de Estudos práticos Uruguai dedicaria um capítulo especificamente à questão sobre “se o governo geral tem o direito de suspender leis provinciaes sancionadas pelos presidentes, e ou por eles ou pelas assembléas provinciaes mandadas publicar e em execução” (Cap. XVII). Neste capítulo, como em todo o livro, Uruguai forneceria ao leitor dezenas de avisos tratando sobre as leis provinciais e ordenando a sua suspensão. Em seu comentário por nota de rodapé o autor seria mais direto:

São muito e muito procedentes as razões pelas quaes se manda que esta e outras leis não sejão executadas. Mas não é essa a questão. Onde confere o acto adicional ao Governo Geral o direito de ordenar que não sejão executadas leis provinciaes? É uma flagrante usurpação da atribuição da Assembléa Geral a quem cumpre revogal-as e logo. Mas a Assembléa Geral não o faz. Então... Logo essa attibuição pertence ao Governo!!! [sic] (URUGUAI, 1865).

Apesar de não ter ocorrido uma recepção teórica clara da doutrina do autor sobre este ponto, o governo adotaria a prática, ainda que de forma inconsistente, de mandar suspender a aplicação das leis provinciais por aviso aos governadores de província. Surpreendentemente esta prática do governo central e a sua correspondente teoria política elaborada por Uruguai não foi ainda destacada pela literatura especializada (MATTOS, 1987; FERREIRA, 1999; COSER, 2008; etc.)

Enquanto o Ato Adicional e o abuso de competência das Assembleias provinciais teria impulsionado o uso político das consultas e dos avisos ministeriais e do Conselho de Estado, Tavares Bastos argumentaria que “ainda depois de mutilado o ato adicional, não cessara, todavia, a tarefa das consultas e avisos”. Assim o autor de “A Província” seguiria para dar diversos exemplos dos abusos do governo ao interferir em obras públicas e impostos provinciais, bem como na administração da justiça, demarcação das comarcas, execução das penas, etc.

Através de consultas e avisos, segundo Tavares Bastos, o governo central teria estabelecido uma interpretação nova do Ato Adicional para restringir a regulação das estradas pelas províncias. Através da nova interpretação, as obras que envolvessem máquinas a vapor, como ferrovias ou canais, deveriam ser sancionadas exclusivamente pelo governo central. Assim, quaisquer investimentos que mobilizassem grandes capitais – como aqueles promovidos pelo Barão de Mauá – deveriam ser supervisionados pelo governo central e submetidos à sua aprovação. Para Tavares Bastos, este era um exemplo de como a centralização política atacava as bases materiais do governo das províncias. Assim, o autor apontava como

o presidente do Ceará deixava de sancionar um projeto de lei sobre a estrada de ferro da capital a Pacatuba, entre outros motivos, porque «tratava-se de uma estrada servida por vapor e devia a concessão ficar dependente da aprovação dos poderes gerais». Nas razões com que o mesmo presidente devolvera o projeto, transpiram as prevenções criadas pelo aviso de 1860 (TAVARES BASTOS, 1870).

Segundo a interpretação do autor, os poderes extraordinários proporcionados ao governo central através do uso dos avisos acabariam permeando todo o movimento centralizador no Império e contribuindo, em alguma medida, para as restrições impostas ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro. O interesse no controle alfandegário pelo governo central, que justificava o controle central sobre os investimentos em obras que proporcionassem a expansão do comércio marítimo, estava por detrás das interpretações determinadas pelas consultas e avisos citados por Tavares Bastos. Isto, ao lado das restrições ao mercado de capitais interno decorrente das políticas fiscais do Império, permite identificar o fortalecimento dos instrumentos normativos vinculados ao Poder

Executivo imperial como um dos fatores que serviam de empecilho para o desenvolvimento econômico interno do país.

4.3.2 Prerrogativas monárquicas e restauração constitucional