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5 Os Avisos no contexto da regência

5.1 Continuidade na linguagem das fontes do período

5.1.1 Problematização das fontes

Ao se analisar a produção doutrinária e a publicação de obras vinculadas à prática jurídica durante o Império – especialmente a partir dos anos de 1840 – pode-se verificar que as fontes jurídicas indicavam a importância dos avisos ministeriais para a interpretação das leis. Em especial, chamava atenção a interpretação determinada pelos avisos sendo entendida como obrigatória e especificando a “correta interpretação” de importantes transformações legislativas, como o Código de Processo Criminal.

Como os avisos mais citados pela doutrina advinham do período posterior ao “regresso conservador” e alteravam a interpretação da legislação em geral, mas principalmente das “reformas liberais”, isto aponta para a hipótese de que o uso destes avisos servia a um propósito político vinculado não só à retomada da centralização administrativa, mas também ao fortalecimento dos programas do partido no governo. Os governos compostos pelo partido conservador após o regresso tenderiam a reforçar o papel do Poder Executivo perante o Legislativo e o Judiciário através destes avisos.

A melhor forma de testar esta hipótese seria analisar o período da regência e contrastar o uso deste instrumento normativo do Poder Executivo entre os governos liberais e conservadores. A prova negativa desta hipótese se daria caso não houvesse mudança substancial na atividade do Ministério da Justiça em torno do uso dos avisos sobre as matérias legisladas pelos ministros liberais e conservadores.

Aponta contrariamente para esta hipótese o fato de que um grande volume das fontes (dos avisos) tratava de assuntos internos da relação entre o ministério e a administração da justiça – as comunicações de

expediente interno e intergovernamental. Outro ponto de destaque, verificável através da doutrina do segundo reinado, é o de que os avisos ganhariam mais importância ao longo das décadas 1840 e 1860, relacionados às mudanças legislativas do período. No entanto, em contraste do os governos anteriores, é possível identificar uma mudança significativa a partir de 1837, chefiada por Bernardo Pereira de Vasconcelos. Em fevereiro de 1838 o Ministério da Justiça ordenou a publicação de uma compilação anual das decisões e dos avisos ministeriais para que estas servissem de fontes jurídicas ao lado da legislação em vigor. A partir daí, os avisos não iriam somente responder a consultas ou resolver conflitos concretos atraídos à competência do Executivo pelo interesse do Estado, os avisos passam a advertir antecipadamente sobre como as leis deveriam ser interpretadas. Logo, os avisos passariam a ser usados para suspender a execução das leis provinciais por contrariarem a Constituição, a afastar a competência do judiciário para casos de interesse do governo, a alterar as regras do sistema eleitoral e mesmo a estabelecer os prazos processuais para recursos das decisões judiciais.

Por alguns autores e parlamentares, o uso de tais avisos representava uma continuidade das práticas do período anterior à Constituição. Nos debates no Senado na década de 1830 os avisos eram criticados admitindo-se que “antigamente tinham força de lei”, mas que após a Constituição era preciso respeitar o Legislador. Posteriormente, autores como Tavares Bastos indicariam os avisos, ao lado do Conselho de Estado, como as marcas do domínio do partido conservador do Estado brasileiro. Outros apontavam isto como a prevalência do elemento monárquico no governo misto, ou ainda como as sombras do absolutismo anti-liberal.

O problema aqui pode ser identificado como o da prevalência das diferentes camadas discursivas do antigo regime e do liberalismo coexistentes no brasil do séc. XIX. Mais do que isto, esta problematização permite analisar a continuidade de elementos identificados dentro do “constitucionalismo monárquico” de um claro grau de autonomia do Poder Executivo perante a lei, e de dominância e supervisão do Poder Executivo sobre o Judicial – considerado por vezes como parte do Poder Executivo. Dentro do sistema constitucional liberal, portanto, havia espaço para a argumentação em favor das prerrogativas monárquicas, do monarca como capaz de resolver os casos concretos e até mesmo, em alguma medida, do “rei legislador”.

Quanto ao volume de material, só é possível determinar ter uma ideia do número de avisos expedido pelos ministérios levando em

consideração que a sua publicação era notadamente deficiente. Ao longo da regência fica evidente que o aviso ministerial passa a ganhar uma importância maior como “fonte jurídica” e, após o regresso conservador e o início do segundo reinado, esta tendência iria se intensificar. Isto é demonstrável através do aumento no uso dos avisos como fonte jurídica pela doutrina e pela relevância que os avisos tomam nas diversas áreas já analisadas anteriormente. Intuitivamente, esta interpretação leva à hipótese de que deveria, necessariamente, ter ocorrido um aumento quantitativo na emissão e na publicação de avisos ministeriais. Ao analisar o material presente nas coleções das leis do império constata-se, no entanto, que o número de avisos publicados na coleção referentes a 1832, por exemplo, é bem maior do que o número de avisos publicados em 1838, sem que se possa extrair desta informação um sentido inerente a este número.

A análise de todo o material acessível para o período entre 1830 e 1840 aponta para uma variação quantitativa ampla, sem transparecer um padrão efetivo. Isto indica para a incapacidade de se determinar o número real de avisos presentes na prática do governo naquele período. Uma interpretação possível poderia se dar em torno da busca um padrão de reconhecimento da importância do conteúdo dos avisos, seguindo a orientação do governo de publicar somente os avisos mais “relevantes”. Aqui também não é possível reconhecer um padrão consistente sobre a publicação dos avisos de acordo com a importância concreta ou pelo seu conteúdo geral.

Aqui, leva-se em consideração que os manuais jurídicos e outros índices particulares por vezes tentavam fazer este filtro ou proceder com uma tabulação por matérias, argumentando às vezes de forma expressa sobre a necessidade de uma organização e publicação sistemática em meio à confusão de decretos, portarias e avisos existentes. Isto era completamente alheio às coleções de legislação do governo, pois estas não faziam a publicação completa dos materiais, tampouco organizavam os instrumentos por tema ou relevância.

A ausência de padrões estatísticos claros impôs uma análise mais detalhada do material disponível e uma apresentação mais anedótica do seu conteúdo. Isto quer dizer neste contexto que não é possível determinar com exatidão a “representatividade” dos casos apresentados, a sua “tipicidade” ou o grau de validade da interpretação dos casos para uma generalização teórica irrefutável. O mesmo decorre também da necessidade de apresentar o material analisado de uma forma que não seja repetitiva ou aleatória, sem ser também – como numa colheita de

morangos – uma escolha tendenciosa daquilo que melhor confirma as hipóteses da pesquisa.

Ainda assim, a pesquisa busca trabalhar em uma perspectiva institucional, preocupada com a concretização e com a prática do direito e do governo. Desta forma, como explicou Hespanha “quem quiser fazer a história das instituições jurídicas como a vida real as conhece [...] tem que se preocupar, sobretudo, com os resultados da prática jurídica concreta, com essa massa de fenómenos jurídicos todos os dias repetidos (contratos, sentenças, decisões administrativas, pareceres doutrinais e forenses, intervenções parlamentares, etc.)” (1982, p. 20). A análise dos avisos não só como “fontes jurídicas”, mas com parte integral do direito praticado naquele período, se mostra útil na medida em que “é a este nível que se manifesta uma série de traços institucionais que, ao nível legislativo, passam despercebidos” (HESPANHA, 1982, p. 20).

Ao analisar a historiografia jurídica inglesa, Dodd (2008) destacou que a mesma tenderia a enfatizar as decisões de caráter geral, as petições, as leis e as decisões que estabeleceram os precedentes e que formaram a história constitucional do país. É preciso lembrar, no entanto, que tais precedentes que estabelecem os monumentos para a história constitucional, as decisões gerais e os grandes atos do governo, que concentram a atenção da historiografia, fizeram parte de uma fração relativamente pequena da prática do governo. Neste sentido, o estudo dos avisos aponta para a direção da prática política e jurídica do governo não em suas maiores e mais marcantes obras, mas na sua atividade regular e predominante. Por outro lado, a pesquisa pode oferecer somente resultados limitados pelas características das suas fontes. As fontes permitem ver o montante de pequenos casos que assinalavam o Direito público colocado em prática, mas não explicitam os eventuais conflitos ou divergências internas, propositalmente omitidos pela redação oficial.

Tomando-se por base a publicação das coletâneas de leis, decretos e decisões do governo pela tipografia nacional durante o Império, acessível no acervo da biblioteca digital da Câmara dos Deputados do Brasil, é possível encontrar os avisos na categoria “decisões do governo”. Nestas coletâneas, no entanto, as “decisões” geralmente não eram intituladas pelo nome dos diversos instrumentos do governo - “aviso”, “portaria”, “resolução”, “instrução” – todos eram publicados em um tomo e identificados pela origem – “Justiça”, “Guerra”, “Fazenda”, “Império” – e assunto. Em parte, isto aponta para a indiferença prática destas diversas denominações e também para a definição mais simples de que o aviso é uma “decisão do governo”. Ainda assim é possível identificar a

frequente menção aos avisos, inclusive como forma de vincular uma “decisão” (o aviso) a avisos anteriores.

O número de avisos relativos à época da regência nas coletâneas variava consideravelmente. Em relação ao de 1833 foram publicadas 812 decisões do governo, enquanto que para o ano de 1839 seriam publicadas apenas 56 decisões. A partir de 1839 haveria um aumento perfeitamente gradual e consistente no número de avisos registrados. O gráfico 1 mostra o número de decisões do governo publicadas de acordo com o ano de sua expedição. Pode-se observar a inconsistência no número de decisões publicadas relativas à década de 1830 e o padrão crescente formado durante a década de 1840.

Gráfico 1: Número de decisões de acordo com o ano das

decisões.

Fonte: produção própria.

A mudança drástica no número de decisões do governo publicadas nas coletâneas sobre aqueles anos, no entanto, não se refere a uma mudança clara no padrão de comportamento do governo durante o período regencial. O fato de que até o ano de 1837 haveria mais decisões presentes nas coletâneas e de que o mesmo número é radicalmente menor em 1838 na verdade está relacionado com o início da publicação destas decisões na forma de coletânea. Seria a partir de 1838 que o governo passaria a publicar os seus avisos, portarias, etc., como “decisões” nas coletâneas de legislação do Império. A partir daí o aumento seria gradual e constante. 0 100 200 300 400 500 600 700 800 900 1830 1831 1832 1833 1834 1835 1836 1837 1838 1839 1840 1841 1842 1843 1844 1845 1846 1847 1848 1849 1850

Número de Decisões

As decisões do governo expedidas em 1838 seriam publicadas no mesmo ano, mas as decisões tomadas e 1837 só seriam publicadas em 1861 e as anteriores ainda mais tarde, como é exposto na tabela 1:

Ano

Data da publicação

Número de Decisões

1830

1878

240

1831

1873

434

1832

1874

417

1833

1872

812

1834

1866

459

1835

1864

356

1836

1864

706

1837

1861

654

1838

1838

129

1839

1839

56

1840

1863

91

1841

1842

82

1842

1843

132

1843

1867

106

1844

1845

130

1845

1845

149

1846

1847

160

1847

1847

181

1848

1849

170

1849

1850

273

1850

1850

339

Tabela 1: Decisões do governo nas coletâneas de legislação do Império.

Fonte: produção própria.

Uma mudança significativa relacionada à publicação das decisões pelo governo pode ser identificada, portanto, com o aumento do número de decisões publicadas com o passar dos anos da publicação. Isto significa que haveria um aumento no número de decisões do governo tomadas na época da regência publicadas décadas depois do final da regência (1861, 1864, 1872 principalmente). Este aumento se mostraria consistente

também com o aumento do uso dos avisos como fonte jurídica nos livros de direito e códigos comentados naquele período posterior à regência.

Gráfico 2: Número de decisões de acordo com o ano da

publicação da coletânea

Fonte: produção própria.