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2 O Direito legislado no Antigo Regime

2.1 O Direito legislado a partir do jusnaturalismo

4.2.4 Um limite concreto à expansão do Poder Executivo:

Dois fatores presentes em torno da “construção da estatalidade” ainda no século XIX precisam ser destacados: o aspecto fiscal como elemento limitador ação governamental e o peso do aparato militar na manutenção do Estado.

Sobre o reforço da autoridade do Poder Executivo e do aumento de sua autonomia, é importante destacar que os avanços do Executivo foram mais circunstanciais do que sistemáticos e não ofereceram um rompimento aberto com o parlamentarismo. Isto fica evidenciado pelo fato de que o sistema parlamentar nunca perdeu sua predominância sobre o controle do orçamento do governo. Como demonstrou Summerhill (2015)83, o controle parlamentar impedia, por exemplo, a tomada de

empréstimos ou o lançamento de créditos da dívida pública pelo executivo sem a autorização legislativa anual, e a mesma teve um papel fundamental na manutenção das finanças públicas brasileiras excepcionalmente estáveis (em contraste com toda a América Latina) durante todo o período imperial. Mesmo durante o período crítico da regência, o governo brasileiro possuía um amplo acesso a crédito com juros baixos em Londres e os empréstimos ao império eram considerados um excelente investimento para os credores internacionais. O pagamento dos compromissos financeiros foi efetuado de maneira constante pelo governo brasileiro, mesmo em momentos de difícil aprovação do

83 SUMMERHILL, W. R. Inglorious revolution: political institutions, sovereign debt, and financial underdevelopment in imperial Brazil. New

orçamento anual, através de prorrogativas garantidas pela Assembleia84.

Assim, o controle parlamentar, ao lado da “Junta Administrativa da Caixa de Amortização”85, serviam como fatores limitadores a todas as ações do

poder executivo que incorressem em aumento de despesa, o que exigiu do governo medidas alternativas de reforço da sua autoridade no campo jurídico, que pudessem ser aplicadas com uma mínima mobilização material efetiva.

Por outro lado, a persistência dos conflitos externos e o desafio de manutenção da ordem interna significavam que a pressão fiscal sobre o governo era protagonizada pelos gastos militares e com o pagamento das dívidas anteriores (contraídas para cobrir os gastos militares anteriores). Envolvido em empreendimentos militares na Guerra da Cisplatina e no bloqueio naval a Buenos Aires, o governo imperial esteve desde o início mobilizado no sentido de arcar com os altos custos do exército e da marinha, de maneira que combinados, os ministérios da marinha, guerra e fazenda sempre consistiram na maior parte do orçamento anual do Império86, em contraste com as pastas da Justiça e do Império.

Enquanto a maior parte das despesas públicas estavam alocadas na área militar, a arrecadação também apresentava pouca variedade de fontes. Antes do agravamento do conflito com o Paraguai, a receita

84 “Every budget included provisions to pay interest on the external and domestic

debt. Bud gets were not, however, always passed in time for the start of the new fiscal year. The reversion policy in the absence of a bud get was to default on the debt. This never happened because the chamber majority always ensured that the debt would continue to be serviced by passing prorrogativas. These measures either extended the previous bud get until a new one was voted or voted a more limited bill addressing solely debt service. In at least nineteen fiscal years between 1826 and 1889, prorrogativas were employed for a portion or even all of the fiscal year.54 That the chamber majority, irrespective of party, ensured that debt was always serviced reveals that political support in the chamber for repayment was consistently strong” (SUMMERHILL, 2015, p. 30)

85 “By virtue of their position as the biggest individual creditors of the

government, the members of the junta were able to monitor the debt ser vice department in the Treasury and thereby safeguard their own substantial financial interests. But in doing so they also represented the community of bondholders in general. Their involvement reduced information costs for the state’s creditors and the members of parliament. This arrangement, somewhat counterintuitively, made leading bondholders the guardians of the state’s own credit” (Idem, p. 36).

86 “The largest outlays over the course of the Imperial era were military in nature,

followed by debt service payments. The combined shares of the army, navy, and finance ministries never fell below 50 percent of total spending from 1830 through 1889” (idem, 36).

advinda dos impostos diretos representava uma fração muito pequena da arrecadação do governo imperial. Durante todo o período imperial, a fonte de receitas do governo central advinha predominantemente do controle alfandegário e ao final da regência, os impostos sobre a importação (principalmente) e a exportação (em menor medida) chegaram a representar 90% da receita ordinária total87.

Em oposição à visão mais comum na historiografia brasileira, estudos recentes mostram que o Estado brasileiro no período imperial não sofria de constantes défices fiscais e o aumento do endividamento não era a regra88. No período da regência, o governo incorreria em um deficit

como consequência do agravamento da “revolução farroupilha” e o aumento dos gastos militares constituíam, repetidamente, o fator de maior impacto no orçamento anual. Ainda que diante de um aumento efetivo de despesas, durante a crise do final da década de 1830, o “partido da ordem” conseguiu reforçar a política fiscal de tal forma que o governo brasileiro aumentou consideravelmente o pagamento da dívida externa em proporção às próprias receitas, chegando a um pico de 50% das receitas terem sido alocadas ao pagamento das dívidas (o que, por sua vez, ampliava a disponibilidade de crédito a juros baixos em Londres)89. Este

grau de comprometimento fiscal do governo reflete um controle político efetivo das finanças públicas pelos parlamentares, frequentemente vinculados aos setores interessados no pagamento dos títulos da dívida, bem como a preocupação destes com as possíveis consequências de um

87 “In Brazil the share of indirect taxes, consisting almost entirely of import and

export duties, rose sharply from the early 1830s, peaking at 90 percent of ordinary revenues in 1841. It declined thereafter but never fell below 70 percent of the government’s annual resources” (Idem, p. 37).

88 “Widely used revenue and expenditure data assembled by contemporaries

suggest that the Imperial state ran chronic defi cits after 1822.This impression is erroneous. Total expenditures did commonly outstrip receipts; in only eleven of sixty- eight years was there a gross fiscal surplus. Modern public finance, however, focuses not on total expenditures but on primary expenditures, which exclude payments to ser vice the debt. More often than not Brazil ran a primary fiscal surplus” (Idem, 37).

89 “Annual debt payments ran as high as half of ordinary revenues in the late 1830s

and never less than the 20 percent figure of the 1850s. Brazil’s average debt- service ratio was nearly as high as that of eighteenth- century Britain and France. Yet the ratios are at best a rough guide to outcomes: France defaulted and Britain did not. That Brazil did not default highlights the parliament’s willingness to supply the taxes required to make interest payments, despite the relatively high budgetary cost of doing so” (Idem, p. 40).

calote externo para a credibilidade da dívida doméstica. Este posicionamento “bipartidário” já estava claro em 1831, quando o novo governo propôs uma moratória parcial à dívida externa e a Assembleia rejeitou a proposta, reforçando o controle parlamentar e a atenção do eleitorado (já que a dívida doméstica era adquirida majoritariamente por indivíduos e não bancos). A continuidade deste arranjo institucional amigável aos credores permitiu que na década de 1870 o Império atingisse um grau de credibilidade igual ao dos Estados Unidos e maior do que o de países como Austria e Itália90.

As limitações fiscais do Executivo e o contínuo controle parlamentar sobre os gastos públicos durante o período analisado apontam na direção da hipótese de que as estratégias do governo no sentido de aumentar a sua autonomia precisavam se dar principalmente no plano da argumentação jurídica e do controle da linguagem. Isto porque havia um comprometimento fiscal que impedia efetivamente estratégias mais dispendiosas de controle político – como o aumento da burocracia central e do funcionalismo. Ao lado das limitações com o pessoal qualificado disponível o governo não poderia expandir seus gastos com a administração interna de forma ousada e deveria, portanto, manter o foco em um progressivo controle jurídico sobre as instituições existentes.

A necessidade de expansão do pessoal e dos serviços transparece na leitura dos relatórios dos presidentes de província. Quando o futuro Visconde do Uruguai serviu como presidente da província do Rio de Janeiro, seu relatório destacava o dever do governo central em aumentar os investimentos no ensino dos jovens, nas obras públicas e na segurança – dentre outras matérias91 – e, como Ministro da Justiça, o mesmo iria se

empenhar em aumentar efetivamente o número de juízes de Direito nomeados pelo governo92. Esta estratégia de expansão material do aparato

90 “By the 1870s informed observers assessed Brazil to be as creditworthy as the

federal government of the United States. And although it could not rival the reliability of Britain as a debtor, the Empire was considered less risky than the governments of Portugal or Austria and considerably more creditworthy than Italy, Peru, Spain, Mexico, and Greece, among other states” (Idem, p.45)

91 Relatorio do presidente da provincia do Rio de Janeiro, o conselheiro Paulino

José Soares de Souza, na abertura da 2.a sessão da 2.a legislatura da Assembléa Provincial, acompanhado do orçamento da receita e despeza para o anno de 1839 a 1840. Segunda edição. Nictheroy Typ. de Amaral & Irmão, 1851.

92 Ministério da Justiça. Relatório do ano de 1840 apresentado à

Assembleia-Geral Legislativa na sessão ordinária de 1840. Rio de Janeiro: s.n., 1841.

estatal, no entanto, precisava ser acompanhada de um avanço da influência do governo no campo da linguagem e da argumentação jurídica.