• Nenhum resultado encontrado

1 Tipos normativos no Antigo Regime

1.2 Rei juiz e rei legislador: desenvolvimento da competência

1.2.1 Concepção jurisdicional de Estado

As concepções mais tradicionais compartilhadas no Antigo Regime sobre o sentido, a legitimidade e a finalidade do Estado eram marcadas pela forte influência aristotélica. Apesar de analisar diversas formas de governo e diferentes “constituições” do seu tempo, Aristóteles se propôs a reunir o conceito de “justiça” ao conceito de lei (e de decreto) diante da autoridade do Estado. A lei natural estava vinculada à “justiça” e esta era indispensável para que os “decretos” do “soberano” pudessem ter “valor de lei” – assim a finalidade do Estado não consistia somente na satisfação de uma “boa vida” (BARNES, 2000; ARENDT, 2007), mas

também na garantia da justiça. Portanto, para Aristóteles, nem todo decreto da autoridade pública poderia ser considerado justo, sob pena de descaracterização substantiva da “lei”:

E, se for preciso considerar justo todo decreto que emanar de tal soberano, o que se qualificará de extrema iniqüidade? Da mesma forma, se, na totalidade dos habitantes, a maioria decide usurpar os pertences da parte menos numerosa, isto não equivale a desagregar a sociedade? Ora, sendo a justiça o principal bem do Estado, não é possível que ela o dissolva. Ela não tolera tal roubo. Não é possível que decretos tão injustos tenham valor de lei” (ARISTÓTELES, 2000, p. 149-150).

A “Lei”, para Aristóteles, precisaria estar vinculada à “justiça natural”, entendida também como equivalente à “razão” e o oposto do julgamento passional. Assim como os demais animais, os seres humanos seriam afetados por “paixões” e, segundo o filósofo, “a paixão transforma todos os homens em irracionais”. As leis em geral não poderiam ser produzidas a partir das paixões humanas, pois “a lei, pelo contrário, é o espírito desembaraçado de qualquer paixão” (ARISTÓTELES, 2000. p. 153).

É importante lembrar que a tradição aristotélica concebia uma distinção entre diferentes tipos de leis e trazia consigo uma hierarquia implícita não somente entre a “lei natural” e a “lei da cidade”, mas também entre as leis particulares da polis. Assim, destacava Aristóteles, “faz-se necessária uma distinção entre as leis. Aquelas que estão impressas nos costumes dos povos têm uma autoridade bem maior e uma importância bem diferente das que estão escritas” (2000, p. 154). Toda cidade independente mantinha suas leis próprias protegidas por seus costumes e por suas tradições, mas somente algumas cidades possuíam leis (e “constituições”) escritas. As leis não escritas seriam superiores justamente por dispensarem o registro, por manifestarem uma prática particular espontânea e autônoma. Neste sentido, estava também implícito no pensamento de Aristóteles a proximidade entre a “razão” e o “costume” – pressuposto essencial do ordenamento jurídico do Antigo Regime.

A “constituição” de Estado cada Estado, segundo Aristóteles, determinava a sua forma particular de governo e como o poder e a autoridade política poderia ser exercido legitimamente. Peculiar do

pensamento de Aristóteles seria a definição do “governo regulado pelas leis” como constituindo uma forma específica de governo, diferente da monarquia ou da aristocracia. A polieia, república ou “governo constitucional”, seria uma forma particular de governo “bem ordenado”.

Ao buscar identificar a “boa ordem” necessária ao governo (eunomia), Aristóteles lançou um dos primeiros e mais influentes conceitos de “constituição” sob a expressão “politeia”, definindo-a como a “ordem das magistraturas”, ou a “ordem do Estado no tocante aos diferentes cargos”, ou ainda aquilo que determina “como o governo está distribuído, qual instância decide sobre a constituição e qual o objetivo de cada comunidade”. Politeia significaria a “constituição” da polis e, assim, a forma como os cidadãos estavam politicamente ordenados. Assim, dizia Aristóteles, que “o Estado é o sujeito constante da política e do governo; constituição política não é senão a ordem dos habitantes que o compõe” (ARISTÓTELES, 2000. p. 41), e ainda, que “a Constituição é a ordem ou distribuição dos poderes que existem num Estado, isto é, a maneira como eles são divididos, a sede da soberania e o fim a que se propõe a sociedade civil” (ARISTÓTELES, 2000. p. 149). O mesmo sentido seria depois recepcionado pelos romanos, e a “constituição” romana seria identificada como o conjunto de regras tradicionais pelas quais se organizava o uso do poder público investido nas magistraturas.

O resgate desta definição aristotélica de “Constituição” diante do seu conceito de “Lei” seria particularmente relevante porque, para Aristóteles, os governos monárquicos e aristocráticos não seriam “governados pelas leis” escritas como a politeia. Esta seria uma das razões pela qual Montesquieu eventualmente condenaria Aristóteles por não ter conhecido uma “verdadeira monarquia”. Para Aristóteles, o governo monárquico seria tipicamente limitado pela razão e pelos costumes, mas não pelo texto da lei. Isto, segundo o autor, serviria de argumento para os defensores da monarquia, pois “aqueles que preferem o governo monárquico se baseiam no fato de que as leis, sendo concebidas em ternos gerais, não poderiam dar conta dos casos particulares”. O poder do monarca se enquadraria, dentre outras coisas, na necessidade de responder aos casos particulares, dos quais as leis não poderiam regular. Assim, extrapolava Aristóteles, “pela mesma razão, não pode haver Estado perfeitamente governado de acordo com o texto da lei” (2000, p. 156).

A noção de que o Estado não poderia ser inteiramente submetido a leis positivas e a distinção aristotélica entre a lei escrita – fundada na vontade – e a lei consuetudinária – sagrada e indisponível – marcaria não só o pensamento jurídico medieval, mas também a interpretação dos

historiadores do Direito clássicos sobre o tema. Seguindo esta tradição, Fustel de Coulanges sintetizaria que “o antigo direito não é obra de um legislador: pelo contrário, impôs-se ao legislador. Seu berço está na família” (2007 [1864], p. 93).

Aquele “antigo direito” teria sucumbido perante as “revoluções políticas” (principalmente em Roma e Atenas), quando “o direito saiu dos rituais e dos livros dos sacerdotes, perdeu o seu mistério religioso; é língua que todos podem ler e falar” (2007, p. 333). Depois da “revolução”, o direito sagrado seria suplantado pelo direito legislado, apresentando novos fundamentos, pois “os decênviros de Roma receberam o seu poder do povo e também foi o povo que investiu Sólon do direito de fazer as leis. O legislador não representa mais a tradição religiosa, mas a vontade popular” (2007, p. 333).

Desta forma, segundo a interpretação de Fustel de Coulanges, as revoluções políticas ocorridas na antiguidade teriam alterado profundamente os fundamentos do direito público e da própria concepção de lei. Isto porque, depois da revolução, “a lei não é mais tradição santa,

mos; é simples texto, lex, e como representa a vontade dos homens, essa

mesma vontade pode revogá-la” (2007, p. 334). Além dos méritos próprios da obra clássica, a interpretação de Fustel de Coulanges pode ser entendida também como uma projeção, ou pelo menos uma reflexão paralela, da mudança radical em torno do conceito de lei e de direito público do Antigo Regime operada pela Revolução francesa. Através desta mudança, a lei positiva, como “representação da vontade”, ganharia um status superior perante todas as outras formas de direito. Esta foi uma mudança que só se completaria na Revolução francesa, mas que já poderia ser identificada parcialmente no desenvolvimento do absolutismo e no reforço da capacidade legislativa dos monarcas. Neste sentido, o absolutismo monárquico lançaria um dos pressupostos do liberalismo constitucional.