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2 O Direito legislado no Antigo Regime

2.1 O Direito legislado a partir do jusnaturalismo

4.2.3 As reações ao liberalismo na década de 1830

Como apontou Lynch (2015), a década de 1830 foi um período de crítica das correntes mais “radicais” do liberalismo no mundo ibérico, sob o temor da anarquia e das guerras civis, em favor de um discurso de valorização da ordem e da estabilidade política81. Este movimento de

reforço da autoridade estatal tem como eixo comum, na experiência europeia e na americana, o fortalecimento do poder executivo e a expansão do seu papel de condutor do governo. Lynch, dentre outros,

81 “Para além do próprio instinto pragmático de sobrevivência, essa

guinada conservadora pôde ser teorizada e justificada a partir de dois grandes precedentes, um norte-americano, e o outro, francês. Na década de 1780-1790, os federalistas estadunidenses haviam promovido uma campanha destinada a neutralizar os excessos do liberalismo radical que, tendo justificado a independência das antigas treze colônias, haviam, entretanto, criado uma situação de desgoverno que ameaçava a União americana. O resultado da campanha fora a nova Constituição de 1787, que criara uma União Federal fortalecida, tendo os federalistas, responsáveis por aquela guinada, dominado a cena política nacional pelos anos seguintes. O segundo precedente era o da França, onde a situação era mais complicada: desde 1795 se vinha lá tentando encerrar o processo revolucionário, por meio de um arranjo que equilibrasse as necessidades de liberdade com a ordem pública. Depois de diversas tentativas, desde o Termidor até a restauração dos Bourbons, passando pelo Consulado e pelo Império napoleônico, os franceses pareciam finalmente ter encontrado aquele balanço graças à Monarquia de Julho, teorizada e justificada pelo liberalismo doutrinário (conservador) de François Guizot” (LYNCH, 2015).

demonstrou as diferentes manifestações deste movimento conservador nas repúblicas latino-americanas, em Portugal, na Espanha e no Brasil.

Ao longo da regência a linguagem das virtudes e o valor dos exemplos clássicos progressivamente perderiam espaço para um discurso mais flexível em avesso à abstração. Como apontou Pereira (2015), no momento “em que a experiência política do país independente já começava a tomar maior densidade, a linguagem dos princípios abstratos expressos, entre outras coisas, na história exemplar, cada vez mais deixaria de satisfazer as exigências do momento”.

Ao aplicar as premissas históricas de Koselleck (2006) à experiência política do Império, diversos autores apontaram para uma mudança na percepção e na representação da temporalidade que acompanha a mudança no campo dos discursos políticos praticados pelos principais agentes no governo, mas também compartilhados socialmente com a impressa e a doutrina.

Tal transformação político-ideológico foi imediatamente também uma mudança nas percepções e representações do tempo. Ao longo dos anos de 1830, vemos um acento cada vez mais evidente nos temas da “circunstâncias”, do “estado”, das “necessidades” do país, que deveriam ser diagnosticadas e levadas em conta na projeção da ação política. As referências clássicas, embora não tenham desaparecido, foram subsumidas pelo esforço de avaliação do que era considerado a “experiência atual” por que passava a jovem nação, o que configurava uma espécie de embrião de sociologia política que perduraria na linguagem política nacional. Os impasses da experiência “democrática” dos anos 1830, como era visto na época, criaram um novo “espaço de experiências” nacional, com densidade o suficiente, na visão dos contemporâneos, para embasar as perspectivas futuras (PEREIRA, 2015).

A peculiaridade da manifestação daquela guinada política conservadora na experiência do Brasil império se dá em especial pelo fato de que a década de 1830 apresentou ao mesmo tempo o ápice da política liberal descentralizadora – iniciada pela “revolução de 7 de abril de 1831”, com a abdicação de um monarca acusado de “absolutista” pelos seus opositores – e o início de um duradouro modelo político conservador

que se consolidaria como um contrapeso às reformas liberais instituídas no período regencial.

A rapidez apresentada pelas reformas legislativas movidas na Assembleia composta de maioria liberal, junto com a disseminada ameaça de movimentos separatistas, parece ter acelerado também o processo de “reação” dos conservadores ainda antes do final da regência. De fato, a liberalização repentina ou excessivamente rápida do país era vista como um dos motivos da instabilidade política e da desordem nas diversas províncias do império pelos conservadores.

Em dezembro de 1830, ainda antes da abdicação, foi aprovado o Código criminal do Império, a fim de substituir a legislação penal portuguesa vigente por uma norma sistemática e moderna para o direito público brasileiro. Nos primeiros anos do governo regencial, foi aprovado o código de processo criminal (1832), o exército foi reduzido a níveis mínimos e instituída a guarda nacional (1831) organizada pelas províncias, foi abolido o conselho de Estado e foi editado o Ato Adicional (1834). Os organizadores do “regresso” realizaram mudanças legislativas menos monumentais do que os liberais no início da regência, mantendo os códigos com poucas alterações. A aposta saquarema foi o retorno da centralização como forma de controle sobre as direções do governo e da política interna, restaurando o Conselho de Estado e reforçando o papel da reinterpretação da legislação liberal em um contexto conservador.

O movimento do regresso conservador durante a década de 1830 se inicia a partir da cisão interna do partido liberal, protagonizada pela oposição de Bernardo Pereira de Vasconcelos ao regente Feijó. Em 1837 Vasconcelos passa a ocupar a pasta do Ministério da Justiça, que havia sido ocupada por Feijó em 1831-1832, e inicia uma série de reformas que caracterizam o reforço da autoridade do Executivo e a sua dominância sobre os demais poderes, especialmente o judiciário.

Assim como nos demais países que passaram por esta transição, no Brasil a guinada conservadora sofreu diversas críticas da oposição liberal, sendo caracterizada como um movimento reacionário e tendencialmente absolutista. O radicalismo vivenciado durante os primeiros anos da regência se tornaria uma memória política marcante para o modelo de governo adotado pelo posterior período conservador até a crise ao final do Império. Nas palavras de Pereira (2015), “assim como o movimento restaurador europeu elegeu a Revolução Francesa e, sobretudo, o período do Terror, como o grande campo de experiências políticas orientadoras, no Brasil a experiência de descentralização política dos anos 1830, com suas revoltas, motins e guerras civis, teve o mesmo papel”.

Em última análise é possível sistematizar os diversos elementos ideológicos que compunham o pensamento liberal-conservador da época do regresso, mas uma característica importante é também a dispensa de qualquer sistematização, isto é, seu caráter pragmático e circunstancial. Parte fundamental da crítica ao liberalismo jusnaturalista movida pelos conservadores mantinha um pressuposto anti-intelectual ou, ao menos, averso à abstração e ao universalismo em termos de política. Para os regressistas, as novas circunstâncias políticas e o relativo fracasso das reformas liberais deveriam determinar as medidas necessárias ao reestabelecimento da ordem. As reformas políticas não poderiam se firmar unicamente sobre as ideias e as concepções morais mais avançadas e um menor grau de liberdade política seria preferível, diante da possibilidade de desintegração da ordem social. Em vez de “regar com sangue a árvore da liberdade de tempos em tempos”, os conservadores acreditavam que a consolidação da ordem seria sempre um pressuposto para o gozo da liberdade e que as instituições brasileiras deveriam se adequar às circunstâncias em vigor. Como destacou Lynch:

Era com essa concepção que, a 9 de agosto de 1839,Vasconcelos criticava o senador cearense José Martiniano de Alencar82, um dos principais

chefes do “progresso”: parecia-lhe que colega guiava-se conforme uma “ideia de perfeição, pela qual julga que devem ser feitas as instituições, sem nenhuma atenção às circunstâncias do país; quer formar os homens para as instituições e não as instituições para os homens” (2015, p. 324)

Assim a doutrina liberal-conservadora desenvolvida ao longo da década de 1830 possuía, em um senso pragmático, o objetivo de permitir um caminho para consolidação do liberalismo sem revoluções, em vez da instauração imediata de um regime liberal. Como explicou Lynch:

Nessa matéria, a referência intelectual mais difundida pelos liberais em geral era o panfleto Das Reações Políticas, escrito por Benjamin Constant durante o Termidor (1797). Para Constant, a arte finória da política consistiria em erigir um arcabouço institucional, ao mesmo tempo sólido e flexível. Ele deveria ser sólido o bastante para garantir o Estado liberal, mas flexível o suficiente

82 José Martiniano Pereira de Alencar foi pai do romancista e ministro José

para que ele acompanhasse as mudanças sociais (2015, p. 329).

O “projeto saquarema”, enquanto uma doutrina política de cunho liberal-conservador, seguiria uma estratégia de “construção da estatalidade” através do reforço da autoridade do governo central – a centralização político-administrativa – e do Executivo. Este reforço da autoridade do governo ficaria mais claro no plano da linguagem do direito, ao passo que enfrentaria limites mais rígidos em seu aspecto material.

4.2.4 Um limite concreto à expansão do Poder Executivo: o