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2 O Direito legislado no Antigo Regime

4.3 As reações liberais à reação conservadora

4.3.2 Prerrogativas monárquicas e restauração

A visão predominantemente positiva do liberalismo político e a sua associação com o sistema constitucional brasileiro fizera parte de uma narrativa importante e presente na literatura nacional. As primeiras décadas da experiência liberal brasileira seriam caracterizadas por José de Alencar94 de maneira paradigmática.

As “Cartas ao Imperador” de José de Alencar (1865) refletiam uma visão talvez romântica, mas muito influente do aspecto liberal do império desde sua independência. Se antes da independência havia a tirania do governo à “sombra da lei”, a independência teria trazido a monarquia representativa e as instituições liberais para um povo ainda “precoce para a liberdade”95. Apesar de prematuro, o liberalismo brasileiro trouxera a

marca da independência e da primeira experiência de “governo do povo pelo povo” do Brasil, em oposição ao governo regido pela metrópole96.

Assim, segundo Alencar, teriam se formado logo na independência dois partidos opostos: os brasileiros em defesa do liberalismo e os portugueses em defesa do absolutismo. Tal antagonismo teria culminado na

94 José de Alencar foi ministro da Justiça entre 16 de julho de 1868 e 10 de janeiro

de 1870, durante a Guerra do Paraguai, no gabinete de Joaquim José Rodrigues Torres, tendo sucedido Martim Francisco Ribeiro de Andrada (filho).

95 “Governa então a peior tyrannia, de que falia Montesquieu: - « aquella que se

exerce á sombra da lei».

Só um povo doutrinado na escola do patriotismo e hábil no manejo da soberania pode arrostar a influencia perniciosa, reivindicando pelos meios legaes a sua autonomia, e restabelecendo o império da constituição e da moral.

Está o povo brasileiro neste caso?

Não, senhor. Este povo nobre e digno das instituições que o regem; este povo, precoce para a liberdade, pois ainda na infância colonial já se electrisava com ella; não foi educado, como merecia, para a monarchia representativa que aliás adoptou de coração”. (p. 43)

96 “Em 1821 a independência se fez no enthusiasmo da liberdade. O Brasil

conquistou simultaneamente o governo dos brasileiros pelos brasileiros, e o governo do povo pelo povo.”

“revolução de 1831” e, a partir da regência, prevaleceria o espírito propriamente liberal da monarquia verdadeiramente brasileira:

Os partidos no Brasil se gerarão d'esse antagonismo de nacionalidades; ser liberal significava ser brasileiro; do mesmo modo que ser portuguez ou alliado dos portuguezes, valia tanto como absolutista. A revolução de 1831, que trouxe a abdicação, foi como a consagração da independência; ahi a monarchia completou sua metamorphose e fez-se brasileira em vossa pessoa, senhor (p. 43).

O Brasil, portanto, teria nascido com olhos voltados para o liberalismo político, mas este precisaria ser consolidado junto com a independência em uma fase crucial de sua história: a regência. Este teria sido o período áureo para a formação das instituições liberais brasileiras segundo Alencar:

O primeiro reinado em oito annos legou-nos a constituição, bello padrão de sabedoria e liberalismo; o código criminal; a organisação das municipalidades e a instituição dos juizes de paz. A regência foi rica de trabalhos; o acto addicional, a organisação das províncias, o código do processo, a ordem judiciaria e financeira, além de muitas outras medidas administrativas. (Carta ao Imperador I. p. 11)

Após este período do “mais verdadeiro liberalismo brasileiro”, ao final da regência, aqueles elementos tradicionais pertencentes ao extinto “partido português” teriam se aglutinado junto ao partido conservador, na opinião de Alencar. Desta forma o governo conservador tenderia cada vez mais a restringir o liberalismo em seu próprio favor, à margem da Constituição do Império. O apelo de José de Alencar ao imperador seria, diante desta caracterização da história, no sentido do monarca utilizar de suas prerrogativas para impor o cumprimento da Constituição que garantiria o liberalismo:

A summa questão da actualidade é esta, da vigorosa iniciativa que deveis tomar em prol da constituição; nella está a chave de todas as outras

tendentes á realidade do systema e restauração do paiz. [...] Vosso pai fez para o povo brasileiro uma constituição liberal, fazei vós com essa constituição um povo livre (p. 40).

O liberalismo brasileiro, estabelecido sabiamente pela constituição outorgada pelo príncipe português, precisaria ser imposto através das prerrogativas monárquicas sobre os representantes ilegitimamente eleitos (por consequência das fraudes eleitorais).

A visão de liberalismo político apresentada por José de Alencar, apesar de não ser necessariamente representativa, esclarece muito bem as possíveis mediações entre os argumentos tradicionais do liberalismo e suas aplicações particulares no Brasil do século XIX. Através daqueles argumentos fica claro que o liberalismo brasileiro do século XIX não só permitia, mas esperava que o Executivo tivesse um papel regulamentar forte, ao atuar em conjunto com o Poder Moderador.

A necessidade de um Executivo forte acompanhava um desencantamento com o sistema representativo e com a capacidade do Legislativo de exercer um papel verdadeiramente democrático. Assim Alencar, como muitos autores brasileiros da época, assumia a “teoria do governo misto”97 como um elemento fundamental para o bom

funcionamento da monarquia constitucional brasileira e concluiria que o elemento monárquico, paradoxalmente, seria a única esperança para a restauração da democracia. Isto pois, através da corrupção e da venalidade, uma “aristocracia burguesa” teria se tornado a classe dominante no Brasil, usurpando assim os poderes monárquicos e democráticos próprios de um sistema misto e equilibrado.

A Carta ao Imperador era um apelo para que o chefe de Estado brasileiro retomasse o controle do Poder Executivo e do Poder Moderador para que pudesse assim promover as reformas desejadas pelo povo e até então vetadas pela inércia da “empregocracia” dos representantes “filhos

97 Ao descrever os debates em torno das tendências sobre a Constituição do

Império a ser adotada, a Gazeta pernambucana esclarecia o público: “Dando-se porém a preeminencia ào Governo Mixto, ou Constitucional, pelo qual o Poder Publico fica dividido em dilferentes partes acommodadas, para se impôrem, se combinarem, e se temperarem reciprocamente. Assim permanece hoje o Grande, e Sábio Governo da Inglaterra, que tantos elogios lhe fazem os maiores Politicos da Europa”. (Gazeta Pernambucana, nº 12, 18 de abril de 1823 [disponível no site: www.brasiliana.org.br])

da fraude e da venalidade” das eleições. A aliança possível seria aquela entre o monarca e o povo para reequilibrar o sistema corrompido:

O único meio efficaz de salvar o paiz, senhor, é a união firme dos homens de bem, de que sois o chefe legitimo, contra a immoralidade. É a alliança sincera da realeza com a democracia, para regenerar o elemento aristocrático, restringindo sua influencia perniciosa, e inoculando-lhe novos brios e estímulos que o preservem da corrupção.

A teoria do governo misto adotada por Alencar tem, naturalmente, origens em um constitucionalismo histórico, “não positivo”. Ainda assim, a argumentação de Alencar aponta para a compatibilidade de tal transformação institucional dentro dos padrões da Constituição brasileira de 1824. Tal transformação consistiria em uma revolução política pacífica a ser realizada por um elemento do sistema político por dentro do mesmo. O país precisaria de uma “revolução pacífica” por meio da iniciativa do imperador para, dentro dos limites da constituição, reestabelecer a liberdade no império.

O que em outros países seria caracterizado como o conjunto de prerrogativas da coroa, segundo Alencar, teria no Brasil o nome de poder moderador: “Vossa força, tão grande quanto benéfica, esta as attribuições supremas que em outros paizes se qualificão de prerogativas da coroa, e nossa constituição reunio em um poder, sob o titulo de moderador” (p. 54).

Esta caracterização das antigas prerrogativas reais presentes nas monarquias absolutas do Antigo Regime como tendo sido “constitucionalizadas” na forma do Poder Moderador não parece ser casuística ou marginal, mas consistente com um sistema de pensamento mais amplo e acessível a todos os autores da época, ainda que não aceito universalmente. Desta forma, a narrativa em torno da predominância dos poderes monárquicos sobre os demais poderes dentro de um sistema liberal constitucional estava ainda disponível como argumento válido para a defesa dos atos monocráticos do governo, como ilustra a passagem apologética de Alencar:

Collocado na cupola do systema, investido de attribuições magestaticas sobre todos os poderes, o monarcha brasileiro é nessa qualidade de alto moderador e chefe natural não só do executivo, como também do judiciário. Em relação á este

ultimo a constituição não o declarou expressamente; mas seu espirito claro que em todos os tribunaes as sentenças são expedidas em nome do imperador (pp. 49-50).

Parece difícil encontrar uma passagem mais “absolutista” sob uma roupagem liberal, mas algo essencial demonstrado nesta caracterização é a equiparação muito comum à época do Poder Judiciário ao Poder Executivo no que tange à subordinação e à tutela destes pelo monarca e seus ministros. Desta forma o ministro da Justiça supervisionaria a atividade dos tribunais da mesma forma como o ministro do Império agiria sobre as escolas ou obras públicas, tudo sob o beneplácito imperial. Ao contrário de absolutismo, no entanto, a defesa e a restauração daquelas prerrogativas monárquicas agora constitucionais consistiria ainda em um objetivo legítimo do próprio liberalismo. Para tanto Alencar cita uma gama de autores estrangeiros, como Montesquieu, J. S. Mill, B. Constant, H. Brougham98 e Sieyès. Assim, os liberais sinceros “se

empenhão com razão em desenvolver a coroa das attribuições do poder executivo, e a exaltarão á região superior, para evitar que sature-se das paixões e intrigas que gera nos homens a cobiça do mando” (p. 57).

Para se escapar das paixões políticas e da corrupção do poder político, a monarquia deveria servir de limite e de contrapeso neutralizador da ação política. Não somente a restauração dos poderes monárquicos seria um objetivo legítimo dos liberais brasileiros, mas também o argumento conservador de B. Constant seria também usado para justificar a desejada mudança institucional, pois,

«Quando as molas dêsárrânjadas se chócâo, embatem travão, é necessário uma fôrça que as reponha em seu lugar» diz B. Constant, attribuindo ao poder real a acção preservante e reparadora. (T. de Política — cap. 2º)

98 Henry Peter Brougham, jurista escocês e político do partido whig, foi enviado

pelo governo britânico em missão diplomática a Portugal antes da invasão napoleônica e tornou-se engajado no combate ao tráfego internacional de escravos. Serviu como Lord Chancellor entre 1830 e 1834 ao lado de Earl Grey e foi bem-sucedido na aprovação do Slavery Abolition Act de 1833.

As prerrogativas monárquicas seriam além de constitucionais, essenciais não simplesmente para a conservação, mas também para a “restauração” institucional a ser realizada por uma “revolução constitucional pacífica” Para tanto, este “alto poder” destinado a guiar o Estado precisaria ser diferenciado daquele poder voltado unicamente à administração:

A alta e suprema iniciativa da coroa não se confunde com a iniciativa de esphera menos elevada, que imprime o movimento à administração. Esta é regulamentar; a constituição a reservou máxima parte para o poder executivo. (p. 64)

Esta separação clássica entre os altos poderes do Estado e aqueles poderes meramente administrativos teria um importante papel simbólico, apesar da imbricação prática entre estes poderes na realidade do governo. Isto porque a constitucionalização da monarquia nunca teria reduzido o monarca completamente a um mero órgão estatal submetido às regras constitucionais. O monarca retinha ainda não só as prerrogativas fundadas em uma autoridade própria e misteriosa, mas também exercia um papel atrelado a uma superioridade política e jurídica transcendental. O imperador não era somente o chefe da administração imperial, ele era o único elemento político capaz de oferecer uma restauração moral para o sistema constitucional.

A descrição do Imperador como um polo do poder político necessário ao equilíbrio constitucional e bom funcionamento do Estado não era algo novo ou exclusivo da retórica romântica de José de Alencar, mas o que a sua argumentação revela é significativo. Como forma de oposição ao governo do partido conservador, acusado de ter corrompido o sistema eleitoral e de ter tomado o controle do governo para si, a defesa do retorno ao liberalismo entendido nos termos da regência do partido liberal seria argumentada através de um apelo aos poderes monárquicos autônomos, para que estes fossem usados pelo imperador de forma unilateral, como sua sagrada prerrogativa.

Mais de vinte anos após o final da regência, talvez o domínio do partido conservador tivesse se tornado tão absoluto, por conta de um modelo de governo estruturado pelo reforço da autoridade monárquica durante a segunda etapa da regência, que somente através do poder autônomo garantido pelo “princípio monárquico” o governo monárquico poderia se salvar de si mesmo.