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Campos33 entende que quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accountability, pois esta tende a acompanhar o avanço dos valores democráticos, como a igualdade, a dignidade humana, a participação e a representatividade. Segundo a autora, não há espaço, dentro do conceito de accountability, para o entendimento de que os cidadãos de um país são meramente tutelados pelo Estado, pois o povo deve assumir o comando do futuro político da nação, organizando-se em torno de seus próprios interesses e, quando necessário, enfrentando o Estado, em vez de aguardar passivamente que este defenda e proteja seus interesses não organizados.

Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 constituiu grande avanço formal para os preceitos defendidos pela accountability, mormente quando consolidou em seu art. 1º, inciso II, a cidadania como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Neste ponto, cumpre destacar que os direitos relativos à cidadania não se restringem apenas ao exercício dos direitos políticos, embora esta tenha sido a posição predominante durante o período da ditadura militar e nos anos imediatamente posteriores ao início da redemocratização no Brasil.

Pelo contrário, a cidadania encontra-se intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, o que significa a necessidade de garantir ao indivíduo uma

33 CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português?. Revista de administração pública, v. 24, n. 2, p. 30-50, 1990, p. 4.

existência digna, fornecendo-lhe um núcleo mínimo de direitos, tais como a igualdade, a segurança, a liberdade de expressão e associação, a educação, a saúde, a habitação, o lazer, o bem-estar, entre outros.

Para o pleno exercício da cidadania, entretanto, o cidadão também deve cumprir certos deveres, como o de fazer parte do governo (diretamente, por meio do exercício de mandato eletivo, ou indiretamente, por meio do voto), ter responsabilidades em conjunto pela coletividade, pressionar os governos municipal, estadual e federal por resultados eficientes, enfim, ser o construtor de sua própria administração e o fomentador dos direitos de todos. Corroborando tal entendimento, temos a divisão da cidadania moderna em duas dimensões principais abaixo delineadas34:

A primeira está intrinsecamente ligada e deriva até da experiência dos movimentos sociais. Dessa experiência, boa parte é aquilo que entendemos como luta por direitos que, aliás, encampa o conceito clássico de cidadania, que é a titularidade de direitos. A essa experiência dos movimentos sociais, tem-se agregado uma ênfase mais ampla na consolidação da democracia. O exercício da cidadania relaciona-se, intimamente, com a consolidação de uma conduta democrática.

Uma segunda dimensão, além da titularidade de direitos, é aquela que deriva do republicanismo clássico, enfatizando a preocupação com a coisa pública, com a res publica.

Mozzicafreddo35, por sua vez, entende que a cidadania pode ser desmembrada não apenas em duas dimensões, mas em três, dentre as quais a accountability comporia a chamada dimensão organizacional, esta última dizendo respeito ao funcionamento do sistema administrativo e à prestação de contas dos resultados obtidos. Além desta, teríamos ainda a dimensão institucional, compreendida como responsabilidade política e administrativa face aos direitos da cidadania e a dimensão contratual, entendida como categoria construtiva da democracia numa fase de sociedade de risco. Nas palavras do autor, “a categoria de cidadania, como matriz de integração social e sistêmica, percorre cada uma das três dimensões do cidadão, como contribuinte, como eleitor e como partícipe da sociedade”.

Desse modo, a formação de uma consciência cidadã exige a atuação conjunta de setores organizacionais, políticos e sociais, dentre os quais se cita o Tribunal de Contas da União (TCU) como um desses instrumentos de que os cidadãos dispõem para auxiliá-los no processo de difusão de seus direitos, mormente no que diz respeito à preocupação com a coisa

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FIGUEIRÊDO, Carlos Maurício C.; NOBREGA, Marcos. Ética na gestão pública e exercício da cidadania: o papel dos tribunais de contas brasileiros como agências de accountability. O caso do Tribunal de Contas de Pernambuco. In: VII Congresso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la

Administración Pública, Lisboa, Portugal. 2002. p. 8-11.

35 MOZZICAFREDDO, Juan. A responsabilidade e a cidadania na Administração Pública. Sociologia, problemas e práticas, n. 40, p. 9-22, 2002.

pública, o bem-estar coletivo e o aperfeiçoamento democrático. Aliás, partindo do pressuposto de que as eleições não são suficientes para a escolha adequada dos representantes do povo, mais importante se torna o papel das Cortes de Contas, as quais conferem maior transparência à gestão da coisa pública.

Recente decisão do TCU, datada de 20/04/2016, procurou comparar boas práticas orçamentárias estabelecidas por instituições internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)36 e o Fundo Monetário Internacional (FMI)37, com as práticas adotadas pela Administração Pública Federal Brasileira. O objetivo

36 Os dez princípios da boa governança orçamentária especificados pela OCDE são (2015, p. 3):

a) Orçamentação dentro de objetivos fiscais: os orçamentos devem ser gerenciados dentro de limites de política fiscal claros, verossímeis e previsíveis;

b) Alinhamento com os planos estratégicos e prioridades de médio prazo: os orçamentos devem estar estreitamente alinhados às prioridades estratégicas de médio prazo do governo;

c) Estrutura do orçamento de capital: o orçamento de capital deve ser planejado com a finalidade de atender às necessidades de desenvolvimento nacional, de forma eficaz e coerente;

d) Transparência, abertura e acessibilidade: os documentos e dados orçamentários devem ser abertos, transparentes e acessíveis;

e) Debate participativo, inclusivo e realista: o debate sobre as escolhas orçamentárias deve ser inclusivo, participativo e realista;

f) Contabilidade global do orçamento: o orçamento deve apresentar as finanças públicas de forma abrangente, precisa e confiável;

g) Execução eficaz do orçamento: a execução orçamentária deve ser ativamente planejada, gerenciada e monitorada;

h) Desempenho, avaliação e valorização de recursos (AVR): desempenho, avaliação e valorização dos recursos devem ser parte integrante do processo orçamentário;

i) Riscos fiscais e sustentabilidade: a sustentabilidade de longo prazo e outros riscos fiscais devem ser identificados, avaliados e gerenciados de forma prudente; e

j) Qualidade, integridade e auditoria independente: a integridade e a qualidade das previsões orçamentárias, do planejamento fiscal e da execução orçamentária, devem ser promovidas mediante rigorosa certificação de qualidade, incluindo a auditoria independente.

Cumpre destacar que, embora possuam alguns elementos em comum, não se deve confundir os dez princípios elencados pela OCDE com os princípios orçamentários clássicos (unidade, universalidade, anualidade, exclusividade, especificação, não vinculação das receitas, orçamento bruto e equilíbrio). Acórdão Nº 948/2016 – TCU – Plenário. TC 033.142/2015-7. Relator: José Múcio Monteiro. Natureza: Relatório de Levantamento. Interessado: Tribunal de Contas da União. Unidade: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MP. 37 Além dos princípios da boa governança orçamentária elencados pela OCDE, o presente levantamento também se subsidiará no Manual de Transparência Fiscal editado em 2007 pelo FMI, o qual estabelece como boas práticas para a transparência fiscal:

a) Definição clara de funções e responsabilidades: (i) o centro de governo deve ser distinguido do resto do setor público e do resto da economia e, dentro do centro de governo, as funções de política e de gestão devem ser bem definidas e divulgadas ao público; e (ii) a gestão das finanças públicas deve inscrever-se num quadro jurídico, regulatório e administrativo claro e aberto;

b) Abertura dos processos orçamentários: (i) a elaboração do orçamento deve seguir um cronograma pré- estabelecido e orientar-se por objetivos de política fiscal e macroeconômica bem definidos; e (ii) devem ser instituídos procedimentos claros de execução, monitoramento e declaração de dados orçamentários;

c) Acesso público à informação: (i) o público deve ser plenamente informado sobre as atividades fiscais passadas, presente e programadas e sobre os principais riscos fiscais; (ii) as informações fiscais devem ser apresentadas de uma forma que facilite a análise de política econômica e promova a responsabilização; e (iii) deve-se assumir o compromisso de divulgar as informações fiscais tempestivamente; e

d) Garantias de integridade: as informações fiscais devem satisfazer normas aceitas de qualidade de informações; (ii) as atividades fiscais devem seguir procedimentos internos de supervisão e salvaguarda; e (iii) as informações fiscais devem ser objeto de escrutínio externo.

desse trabalho era o de fortalecer os mecanismos de governança e, por consequência, incrementar o desempenho de órgãos e entidades governamentais, além de reduzir o distanciamento entre estado e sociedade.

Dentre os princípios de boa governança listados pela OCDE, cita-se o item “a”, que trata do gerenciamento dos orçamentos com limites claros, credíveis e previsíveis em matéria de política fiscal. Neste, a OCDE indica a necessidade de se perseguir uma política fiscal sólida e sustentável, com regras fiscais claras e verificáveis e com objetivos políticos que tornem mais fácil para a sociedade compreender e antecipar o curso da política fiscal do governo ao longo do ciclo econômico e orçamentário, bem como os itens “g” e “j”, alinhados aos preceitos da accountability. O debate participativo constante no item “e” também guarda

pertinência com o princípio da transparência38:

O princípio que se refere ao debate participativo, inclusivo e realista do orçamento, confunde-se, em alguma medida, com o princípio, também da OCDE, que trata da transparência, abertura e acessibilidade, já que, para se garantir que ocorra o debate das decisões orçamentárias como proposto, é necessário que as informações orçamentárias sejam disponibilizadas de forma transparente e acessível. Disponibilizar as informações orçamentárias de forma transparente e acessível significa disponibilizar relatórios orçamentários claros e factuais, que possam informar os estágios chave da formulação das políticas, bem como de sua implementação e revisão, além de apresentar informações orçamentárias em formato comparável, que proporcionem instrumentos para discussão e debate sobre as escolhas políticas (OCDE, 2015).

Um debate participativo e realista sobre orçamento envolve oferecer oportunidades para o Congresso Nacional, suas comissões, os cidadãos e as organizações da sociedade civil se envolverem em todas as fases do processo orçamentário, discutindo as prioridades e as metas a serem perseguidas.

A dimensão institucional da cidadania também ocupa posição de destaque na atual Carta Magna, porquanto esta prevê como formas de exercício da soberania popular o plesbicito, o referendo e a iniciativa popular (CRFB/88, art. 14). Entretanto, como já mencionado, não apenas aos direitos políticos ficou restrito o exercício do controle social

Ressalta-se que há pontos de confluência entre os princípios da boa governança orçamentária especificados pela

OCDE e as boas práticas para a transparência fiscal consignadas pelo FMI. E não poderia ser diferente, pois ‘a transparência fiscal é um dos principais componentes da boa governança e, esta, por sua vez, é fundamental para a consecução da estabilidade macroeconômica e do crescimento de alta qualidade’ (FMI, 2007, p. 8).

Portanto, ambos os documentos elencam práticas que visam aprimorar a forma pela qual as políticas públicas são formuladas, implementadas e avaliadas, no que se refere ao processo de orçamentação, o que, no caso brasileiro, perpassa pela elaboração, execução e monitoramento das leis previstas no art. 165 da Constituição Federal: plano plurianual; diretrizes orçamentárias; e orçamentos anuais. Em última instância, uma boa governança orçamentária contribui para que os recursos públicos sejam aplicados de forma a entregar o melhor resultado à sociedade. Acórdão Nº 948/2016 – TCU – Plenário. TC 033.142/2015-7. Relator: José Múcio Monteiro. Natureza: Relatório de Levantamento. Interessado: Tribunal de Contas da União. Unidade: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MP.

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Acórdão Nº 948/2016 – TCU – Plenário. TC 033.142/2015-7. Relator: José Múcio Monteiro. Natureza: Relatório de Levantamento. Interessado: Tribunal de Contas da União. Unidade: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MP.

sobre os atos da administração, pois a Lei Maior consagrou ainda o direito à informação em seu art. 5º, inciso XXXIII, à petição (idem, inciso XXXIV, a) e à certidão (idem, XXXIV, b), além de prever a participação direta dos cidadãos na fiscalização orçamentária (art. 74, §2º).

Apesar dos recursos formais elencados pela CRFB/88 para coibir as práticas que se distanciam da administração proba, recorrentes casos de má-gestão do dinheiro público, corrupção, entre outros, continuam a ser uma realidade no trato da coisa pública.

Neste contexto, tendo em vista que a cidadania se caracteriza não apenas pelo exercício dos direitos políticos, mas também pela defesa dos direitos sociais e de todas as demais normas que proporcionem uma vida digna, bem como em consonância com os objetivos da accountability de dar maior divulgação às ações dos agentes públicos, proporcionar maior controle por parte da sociedade organizada, promover a eficiência, a moralidade e a transparência na atuação da Administração Pública e diminuir a assimetria de informações entre governantes e governados, tivemos a edição da Lei Complementar nº. 101/2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) -, propiciando instrumentos concretos para a efetividade e a dinamização do controle social.

3 CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

Para que o Estado tenha a capacidade de proporcionar o desenvolvimento da cidadania no âmbito de seu território e na consciência de seu povo, prestando serviços públicos de qualidade, como educação, saúde e segurança ou melhorando a qualidade de vida de seus cidadãos, por exemplo, por meio da realização de obras públicas, este necessita de recursos econômicos para financiar suas atividades.

A partir dessa necessidade, nasce o que se chama de atividade financeira do Estado, a qual não se restringe à mera arrecadação dos meios indispensáveis à prestação de serviços públicos, mas se caracteriza, segundo Ruy Barbosa Nogueira39, como “... toda ação que o Estado desenvolve para obter, gerir e aplicar os meios necessários para satisfazer às necessidades da coletividade e realizar seus fins” (grifou-se). No mesmo sentido, Bastos40 discorre o seguinte:

Em síntese, portanto, a atividade financeira do Estado é toda aquela marcada ou pela realização de uma receita ou pela administração do produto arrecadado ou, ainda, pela realização de um dispêndio ou investimento. É o conjunto das atividades que têm por objeto o dinheiro.

Assim, tomando a definição referenciada como ponto de partida, conclui-se que a atividade financeira estatal se constitui em três núcleos básicos, são eles: receita (obtenção de recursos para realização dos fins visados pelo Estado), gestão (administração e conservação do patrimônio público) e despesa (utilização dos recursos patrimoniais disponíveis para realização dos fins do Estado).

Destaca-se ainda que alguns doutrinadores adicionaram às três categorias citadas a capacidade de o Estado criar recursos por meio do que se denomina de crédito público, o qual consistiria na captação, através de operações de empréstimos, de recursos monetários e na sua consequente aplicação aos gastos públicos. Pela pertinência com a temática abordada no presente trabalho, veja-se a lição de Baleeiro sobre o assunto 41:

O crédito público consiste em uma série de métodos pelos quais o Estado obtém dinheiro sob obrigação jurídica de pagar juros por todo o tempo durante o qual retenha os capitais, que se entendem passíveis de restituição em prazo certo, ou indefinido, a critério do devedor.

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Ruy Barbosa Nogueira apud RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Aspectos fundamentais da Lei

Complementar nº 101/2000. Manaus: Caminha, 2002, p. 23.

40 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Tributário e Financeiro. 9. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 5.

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BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 582. No mesmo sentido: BORGES, José Souto Maior. Iniciação ao direito financeiro. Recife: Imprensa

O autor ensina ainda que o Estado tenderia a funcionar como uma espécie de credor privilegiado nas relações de mútuo com particulares, pois é capaz de conseguir empréstimos com prazos muito longos, podendo chegar ao extremo desses prazos serem simplesmente perpétuos, ocasião em que o governo pagaria, logicamente, apenas os juros aos mutuários. Referido exemplo mostra o quão grande é o grau de confiança dos credores em relação ao cumprimento das obrigações estatais. Por sua vez, essa postura dos credores se justificaria, segundo o autor, em virtude da natureza especial do devedor, pois “o Estado não morre, não incorre em falência e goza da perenidade do grupo humano ao qual serve de personalidade jurídica e política42”.

Portanto, a atividade financeira do Estado constitui meio indispensável para que este arrecade recursos e planeje gastos a fim de atingir seus objetivos. Segundo Régis Fernandes de Oliveira, Estevão Horvath e Teresina Tambasco43, “... há a necessidade-fim, ou seja, o bem jurídico-político, no caso, tutelado e a imperiosidade da existência das

necessidades-meio, para que a primeira possa ser prestada”. Consagra-se, assim, a

instrumentalidade da atividade financeira, esta, por sua vez, guiada pela satisfação das necessidades públicas politicamente definidas.

Desse modo, no contexto da atividade financeira do estado, a Lei Complementar n.º 101/2000 buscou organizar e equilibrar o orçamento estatal por meio do controle de receitas e despesas, bem como restabelecer a moral e a ética no âmbito da administração pública, abaladas pela prática reiterada de atos lesivos ao patrimônio e ao interesse públicos por parte dos gestores da res pública, promovendo inclusive a responsabilização daqueles comprovadamente corruptos, por meio de punições severas.