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Accountability do Bacen, o Legislativo e o Executivo

CAPÍTULO II: A ATUAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL EM TRÊS

2.4. Um balanço da accountability do Banco Central nos três momentos de crise

2.4.1. Accountability do Bacen, o Legislativo e o Executivo

Desde a sua constituição, em 1964, o Bacen tem exercido suas atribuições com um alto grau de discricionariedade e independência dos poderes políticos e, mais fortemente, do Legislativo, se comparado a outros órgãos/agências administrativos. Diversas razões têm sido elencadas para explicar tal fenômeno. Algumas visões defendem que o mandato originário conferido pela lei que constituiu o Bacen, em conjunção com alguns outros instrumentos legais ulteriores, dão amparo jurídico suficiente para o exercício, pelo Bacen, de suas três principais funções: a de guardião da moeda, de agência regulatória do sistema financeiro nacional e de autoridade responsável pela supervisão financeira. No outro extremo das visões acerca dos poderes do Bacen e sua legitimidade democrática estão aqueles que acusam a autoridade financeira de agir à margem da lei, a doutrina liberal jurídica mencionada por Veiga da Rocha

(2004), e aqueles que questionam a capacidade do Bacen de criar “consensos políticos”, “justificativas legais ex post” e quaisquer outros meios usados pela autoridade financeira para

evitar constrangimentos reputacionais e jurídicos (Carvalho et al, 2011).

A despeito da divergência acerca dos limites do mandato do regulador financeiro, em um ponto tais visões convergem: o Bacen tem prescindido do recurso à esfera legislativa na mesma proporção que outras instâncias administrativas, tendo usufruído de um quadro legal relativamente estável ao longo de sua existência e exercido suas prerrogativas precipuamente com base em resoluções do CMN e por meio da edição de circulares e outros atos administrativos de menor quilate hierárquico.

Sobre a imbricada relação entre o controle do Legislativo, a hierarquia dos órgãos financeiros do Executivo (notadamente o CMN e o Bacen) e a própria autoridade financeira, a literatura frequentemente aponta alguns elementos que tornam único o ambiente institucional e

92 o quadro normativo dentro dos quais o Bacen exerce suas funções de guardião da moeda e responsável pela solidez e estabilidade do sistema financeiro.

O primeiro desses elementos é a falta de regulamentação do art. 192 da Constituição Federal, que delega a lei complementar a disciplina jurídica do funcionamento do Sistema Financeiro Nacional (SFN). O artigo, em sua versão original, elencava uma série de aspectos que deveriam ser disciplinados pela lei complementar, mas após sua revogação pela Emenda Constitucional N° 40/2003 a nova redação do referido comando constitucional autoriza a edição

de “leis regulamentares”, indicando que o Legislativo pode optar por regular o sistema por meio

da edição de mais de uma medida legal.

A principal consequência da ausência de leis disciplinando o SFN, sob o ponto de vista da administração de crises, consiste na ausência de mecanismos de accountability do Bacen pelos socorros prestados a bancos. Para Carvalho (2012, p. 235), não se trata de impor restrições ao exercício da função de prestamista de última instância pelo Bacen, mas sim de articular,

institucionalmente, “contrapartidas para a defesa da sociedade e de punição aos responsáveis

em caso de má conduta, além de assegurar transparência suficiente para que os episódios possam ser objeto de investigação e debate público”.

O segundo elemento é a composição do CMN e a dinâmica institucional entre esse órgão colegiado e o Bacen. Por sua composição restrita, com apenas três integrantes do próprio Executivo (Ministro da Fazenda, do Planejamento e Presidente do Bacen), o CMN sofre críticas quanto ao seu caráter democrático e participativo. Razões históricas e políticas, como a necessidade de manter firmemente a política de estabilização do Plano Real, explicam as mudanças no perfil institucional do CMN.

Como terceiro elemento, tem-se o caráter reativo e ad hoc da prestação de contas e responsabilização do corpo funcional do Bacen pelo Poder Legislativo. Cruz Jr & Matias- Pereira (2007) verificaram se o Congresso Nacional exerce suas atribuições de controle por

meio da técnica de “patrulha de polícia” ou de “alarme de incêndio”, conforme classificação de

McCubins & Shwartz (1984). A primeira técnica é “centralizada, ativa e direta, dependendo da iniciativa do congresso para ser deflagrada” (Cruz Jr. & Matias-Pereira, 2007, p. 56). Nela, as agências são supervisionadas de diversas maneiras, incluindo leitura de documentos e pela

realização de audiências. Já a segunda técnica, a de “alarme de incêndio”, consiste num tipo de supervisão “menos centralizada, [que] envolve menos atividades e intervenções diretas” (Cruz

93 sistema de averiguação descentralizada da conduta dos agentes públicos, levando ao conhecimento da sociedade as condutas praticadas pelos administradores. Após avaliar o arcabouço jurídico do controle do legislativo sobre a gestão da política monetária, os autores concluem que o Congresso Nacional prioriza a supervisão ex post dos atos do Banco Central,

“depois que as decisões já foram tomadas e suas consequências, boas ou más, já assumidas”

(Cruz Jr. & Matias-Pereira, 2007, p. 70).

O caráter reativo do controle exercido pelo Poder Legislativo sobre as ações do Bacen também estende-se às situações em que o objeto de fiscalização é a supervisão bancária, conforme fica evidenciado pela análise da condução dos trabalhos das CPIs do PROER e dos Bancos. Para além das disputas políticas entre parlamentares, que por si só podem fragilizar a constituição e o funcionamento das CPIs destinadas a averiguar a conduta de agentes públicos e privados nas operações de provisão de liquidez e nas diversas fases dos regimes especiais de resolução, o Congresso reconheceu que falta aos seus membros a capacidade técnica de manter um diálogo de alto nível com agentes do mercado e com o Bacen. Em um trecho do relatório final da CPI dos Bancos, lê-se o seguinte (Senado Federal, 1999):

Em várias passagens dos depoimentos, ficou evidente o desconforto dos parlamentares com relação aos assuntos afetos ao sistema financeiro nacional, particularmente no tocante aos seus instrumentos operacionais. Seria de bom alvitre sugerir que se formasse comissão permanente específica para tratar do sistema financeiro, como forma de especializar o acompanhamento e a fiscalização desse setor da economia nacional e de apontar as melhores soluções para o Congresso Nacional.

A comissão permanente mencionada no trecho acima jamais foi criada pelo Congresso brasileiro, o que denota o condicionamento da atuação Legislativa no tocante à supervisão do sistema financeiro brasileiro à pressão dos fatos.

No período pós-crise, o Senado brasileiro expôs mais uma vez, de maneira sutil, que há uma tendência do Poder Legislativo em ser deferente para com as escolhas do Bacen. Logo após a autoridade financeira ter divulgado que estava preparando uma nova minuta contendo uma proposição legislativa sobre o marco jurídico brasileiro de resolução de instituições financeiras, o senador Lindbergh Farias assegurou que o Congresso iria dar uma tramitação rápida à proposta do Bacen, e informou que o presidente da Casa à época, Renan Calheiros, havia se comprometido em colocar a proposta em votação o mais rápido possível. Sobre essas informações, não se pode criticar a intenção de dar um tratamento diferenciado à matéria em

94 razão de sua inegável relevância, mas, diante do histórico da relação institucional entre o Bacen e o Congresso, pairam incertezas sobre a capacidade do componente político em determinar os rumos da discussão em detrimento dos potenciais efeitos redistributivos inerentes às políticas de estabilização e saneamento do sistema financeiro.