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Monitoramento da implementação doméstica dos padrões internacionais

CAPÍTULO III: GOVERNANÇA GLOBAL DO SISTEMA FINANCEIRO,

3.2. Legitimidade e accountability na governança global do sistema financeiro

3.2.1. Monitoramento da implementação doméstica dos padrões internacionais

A crise global de 2007-2008 expôs as fragilidades dos arranjos jurídico-institucionais de prevenção e gerenciamento de crises que vinham sendo erigidos em nível internacional desde a metade do século XX. A propagação da crise entre instituições e mercados financeiros de diferentes países revelou que o caráter altamente globalizado das finanças exige um

117 entendimento muito mais sofisticado do risco sistêmico das atividades financeiras, bem como do tipo de governança global mais eficaz para combatê-lo.

A compreensão renovada sobre o risco sistêmico na esfera global, as mudanças nos mecanismos de accountability da governança global do sistema financeiro e a expansão da lista de países-membros dos principais órgãos internacionais desencadearam uma outra transformação relevante na dinâmica institucional entre os órgãos supranacionais e os atores domésticos envolvidos na normatização do setor. Trata-se da tendência de aperfeiçoamento de mecanismos de monitoramento da implementação dos standards fixados em nível internacional pelas autoridades domésticas.

Alguns observadores identificam nesse fenômeno um processo de “endurecimento”

(hardening) da regulação financeira internacional, uma expressão que remete ao exercício teórico de demarcação do que é hard e soft law com base em critérios de “legalização” (Abbott & Snidal, 2000). Como a soft law na regulação financeira internacional é capaz de influenciar fortemente o comportamento dos sujeitos e gerar altos níveis de aderência (não obstante suas

“dificuldades democráticas”), além de ser acompanhada por mecanismos de coerção

questionáveis quanto à sua classificação como direito (seja soft ou hard), entende-se que o uso dessa expressão é um tanto quanto alheia à linha de raciocínio deste trabalho, que tem mais afinidade com reflexões teóricas críticas dessa dualidade, como a de Brummer (2012)114.

No âmbito da regulação financeira internacional, é possível “institucionalizar” sem “legalizar”, ao menos se a noção de “legalidade” estiver associada a quanto mais precisa ela

for, ou quanto ela tenha delegado expressamente a uma terceira parte a função de afirmar seu caráter coercitivo por meio de mecanismos de solução de disputas. A influência, coerção e disciplina exercidas por agente públicos e privados nacionais sobre agências administrativas (e mesmo órgãos políticos) nacionais podem condicionar as condutas dos destinatários de maneira

eficaz sem atender aos atributos da “legalidade”. Muitos dos instrumentos de soft law da

regulação financeira internacional têm a forma de princípios e diretrizes, com caráter pouco preciso exatamente para permitir a variação local no momento da internalização e assegurar o

caráter “flexível” das regras internacionais.

Assim, regras abertas, na forma de princípios, podem ter forte caráter disciplinador, e por outro lado regras detalhadas e minuciosas, como os requerimentos de capital de Basileia,

114 Para uma reflexão sobre o que é ou não é o direito e as implicações dessa questão na natureza, nos atributos e nos efeitos jurídicos da soft law, ver: Nasser (2001).

118 podem demorar muito tempo para serem efetivamente absorvidas por um sistema jurídico doméstico (Brummer, 2012, p. 172). Ao tempo da crise, por exemplo, o sistema bancário dos

EUA estava em seus primeiros estágios de adequação aos parâmetros de “Basileia II”.

Pela variedade nas formas de criação, nos instrumentos de implantação, nos mecanismos institucionalizados e informais de disciplina e nas ferramentas de sanção que caracterizam a

regulação financeira internacional, o exercício de averiguação do seu nível de ‘legalização”,

por critérios como o de Abbott & Snidal (2000), pode dificultar a visualização de lógicas interinstitucionais e ferramentas de disciplina regulatória da arquitetura financeira internacional (Brummer, 2012, p. 174).

Diagrama 3 – Processo de monitoramento da implantação doméstica de standards internacionais

Fonte: Elaboração própria.

Os principais órgãos encarregados de monitorar o cumprimento das reformas regulatórias da era pós-crise são o FSB e o FMI.

119 O FSB tem sido apontado como o órgão mais bem posicionado para assumir responsabilidades de consolidação, gerenciamento e monitoramento da adoção das práticas elaboradas pelos demais órgãos (Black, 2010), e tal preeminência pode ser diretamente creditada à posição central ocupada pelo G-20, fórum político ao qual o FSB está vinculado, na agenda de cooperação e coordenação econômica internacional. Ou seja, como o FSB tem um caráter acentuadamente político, em virtude de sua vinculação ao G-20 e da participação de quadros do executivo dos países-membros, o órgão tem maior legitimidade para atuar como gerenciador da produção internacional de standards para o sistema financeiro (Gadinis, 2013).

Desde a sua reformulação em 2008 (antes chamava-se Financial Stability Forum e possuía um mandato bem mais limitado), o FSB tem desempenhado um papel significativo

tanto no gerenciamento da “arquitetura do sistema financeiro internacional” como na fixação

de princípios e recomendações que têm coberto diversos níveis das atividades financeiras, desde a regulação de hedge funds até o fortalecimento dos regimes de resolução de instituições financeiras.

O FSB avalia o progresso da implementação das reformas pelos países-membros através de dois mecanismos principais de revisão pelos pares (“peer review”): a revisão por país

(“country review”) e a revisão temática (“thematic review”)115.

A revisão por país do FSB foca na implementação e efetividade das reformas regulatórias internacionais em um membro específico do FSB (FSB, 2014). Essa ferramenta complementa o FSAP conduzido pelo FMI (e Banco Mundial), ao avaliar o grau de cumprimento das recomendações realizadas pelo FSAP pelos países.

Já a revisão temática destina-se a averiguar o grau de implementação e a efetividade de um nicho das reformas regulatórias internacionais. Os assuntos podem ser escolhidos a partir de três critérios: i) standards internacionais desenvolvidos pelos Standard-Setters, ii) políticas estabelecidas pelo FSB (e pelo G-20) em áreas prioritárias para a estabilidade do sistema financeiro global e iii) assuntos de importância para a estabilidade financeira global mas que ainda não se transforaram em objeto de políticas regulatórias e standards globais (Bin, 2013). Os objetivos da revisão temática são: encorajar, avaliar os efeitos e fazer recomendações para a completa implementação dos standards pelos países.

120 As fases das revisões por país e temática são as mesmas, com algumas especificidades operacionais e procedimentais: 1) fase de priorização, em que são eleitos temas e países; 2) fase de preparação, em que são escolhidos tópicos (no caso da revisão por país), a equipe e é realizada a coleta de informações escritas por meio de questionários; 3) fase de consulta, quando são realizados diálogos diretos com as autoridades e é preparado um relatório preliminar; 4) fase de avaliação, em que é aprovado e publicado o documento final; e 5) fase de follow-up, em que é realizado o monitoramento e relatoria das ações tomadas e são compartilhados aprendizados e melhores práticas.

Até o presente, foram conduzidas cinco revisões temáticas, envolvendo a remuneração de executivos de instituições financeiras, as práticas de subscrição e distribuição de hipotecas, a divulgação de riscos e os sistemas de seguro de depósitos. Revisões por pares específicas por país foram conduzidas para o México, Espanha, Austrália, Suíça, Reino Unido, Estados Unidos, África do Sul e Canadá.

Como país-membro do FSB, o Brasil está sujeito às obrigações impostas aos que detêm tal condição. Isso inclui: o compromisso com a manutenção da estabilidade financeira; a abertura e transparência do seu setor financeiro; a implementação de standards financeiros internacionais; e a sujeição a processos de revisão periódica por pares, inclusive com o uso de evidências apuradas pelo FSAP.

O Brasil apresentou, até o momento, cinco relatórios sobre o progresso da implementação das recomendações do G-20/FSB, sendo que o primeiro deles, de 2008, foi submetido com pedido de sigilo. Assim, são públicos os relatórios de setembro de 2010, setembro de 201, junho de 2012 e o de 2013. Tais relatórios estão estruturado em torno de dez frentes de reestruturação de práticas regulatórias e de supervisão que compreendem desde a construção de ferramentas macroprudenciais até a proteção de consumidores na prestação de serviços e venda de produtos financeiros.

Não fica claro a partir dos relatórios do Brasil submetidos ao FSB ou de outros documentos oficiais pesquisados como se dá a dinâmica institucional entre o Bacen e a CVM para a elaboração dos documentos enviados ao órgão internacional. É certo que acordos formais e informais de coordenação entre as autoridades de regulação bancária e do mercado de capitais tiveram de ser estabelecidos, pois as frentes de reforma das práticas de regulação e supervisão envolvem segmentos sob a jurisdição de ambas as autoridades.

121 Dentre as medidas reportadas ao FSB como parte da agenda de adoção dos padrões internacionais a que o Brasil se obrigou quando da associação ao órgão, estão presentes tanto aquelas de caráter administrativo quanto as medidas que acionaram mecanismos legislativos, como foi o caso da proposição legislativa do Bacen sobre os regimes especiais de intervenção e liquidação extrajudicial de instituições financeiras e sobre medidas destinadas a assegurar a solvência e a estabilidade do Sistema Financeiro Nacional, que foi divulgada ao público através do Edital de Audiência Pública n° 34/2009 (Bacen, 2009).

Já o FMI avalia a aderência dos Estados aos padrões internacionais de regulação e

supervisão financeira pela ferramenta “Financial Sector Assessment Program” (FSAP), que

também conta com a participação do Banco Mundial116, além dos “Reports on the Observance

of Standards and Codes” (RSOC). O FSAP foi criado em 1999 com o objetivo de promover a

solidez dos sistemas financeiros de seus países-membros. Sua criação se deu após as crises do sudeste asiático (1997) e a Rússia (1998), eventos que evidenciaram o risco sistêmico de sistemas financeiros frágeis para a economia mundial (Arner, 2007).

A diferença essencial entre o FSAP e as revisões por pares do FSB é que o primeiro tem uma abrangência bem maior que estes, incluindo a realização de testes de estresse e a construção de matrizes de risco. De maneira geral, os seguintes elementos são avaliados pelo FSAP: 1) análise sistemática dos indicadores de solidez do sistema financeiro e testes de estresse; 2) avaliação de standards e códigos; 3) avaliação do marco de estabilidade financeira em uma perspectiva mais ampla, incluindo arranjos sistêmicos de risco de liquidez, governança e transparência e redes de proteção, incluindo regimes de resolução.

Em 2009, o FMI revisou o escopo do programa, que passou a ter novos elementos, como novas metodologias para avaliar relações entre o comportamento da economia com a solidez do sistema financeiro, cobertura de fontes variadas de risco sistêmico e arranjos mais flexíveis

para a avaliação de cada país, com a possibilidade de se realizar a avaliação em “módulos”

separados.

Valendo-se dessa quebra por “módulos”, o FMI realizou as seguintes avaliações no sistema financeiro brasileiro: 1) cumprimento dos Princípios do Comitê da Basileia para uma Supervisão Bancária Efetiva; 2) avaliação de estabilidade financeira; 3) observância dos Princípios Fundamentais para Seguradoras, da Associação Internacional de Supervisores de

122 Seguros (International Association of Insurance Supervisors – IAIS); 4) o marco da política macroprudencial no Brasil; e 5) testes de estresse no sistema bancário117.

O ciclo do monitoramento conjunto do FSB e do FMI começa com a realização de um FSAP, a ser repetido a cada 5 anos, ao qual se segue, nos 2-3 anos seguintes, a realização de uma revisão por pares específica para o país. Esses prazos são flexíveis e podem ser ajustados de acordo com as circunstâncias de cada país.

Como se vê, o novo modus operandi do FSB em parceria com o FMI não apenas tem influenciado na agenda doméstica, como já acontece há mais tempo na regulação financeira, como tem exigido do Bacen e de demais autoridades domésticas a prestação de contas detalhadas sobre o progresso das reformas aos atores externos.

Embora haja posições mais céticas a respeito da continuidade do G-20 como órgão principal de cooperação econômica, o que afetaria diretamente o status do FSB enquanto coordenador do regime de regulação financeira global, é possível afirmar que o fórum permanecerá efetivo ao menos enquanto ponto focal e de gerenciamento dos trabalhos desenvolvidos no âmbito de outras instituições, vez que a governança econômica global ressente-se de uma estrutura que possa funcionar ao menos como entreposto informacional para o compartilhamento de políticas domésticas (Nelson, 2013).

Assim, a accountability do Bacen em nível doméstico é e será cada vez mais modulada pelas exigências dos órgãos internacionais de regulação financeira, assunto que será retomado no capítulo IV, a seguir.

3.3. Coordenação e harmonização na governança global do sistema financeiro: o caso