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Responsabilidade do Bacen e o judiciário

CAPÍTULO II: A ATUAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL EM TRÊS

2.4. Um balanço da accountability do Banco Central nos três momentos de crise

2.4.2. Responsabilidade do Bacen e o judiciário

Pela própria natureza do contencioso judicial, a accountability do Banco Central perante o judiciário envolve precipuamente a averiguação de sua responsabilidade civil e criminal (responsibility e liability)87 por eventuais danos causados aos controladores de bancos e terceiros em razão da decretação de um regime especial. Foge ao escopo do presente trabalho travar uma análise sistematizada da doutrina e jurisprudência pátrias sobre a aplicabilidade da responsabilidade civil do Estado às hipóteses de ação ou omissão do Bacen na decretação ou condução de um determinado regime de resolução de instituições financeiras (art. 37, § 6° da Constituição Federal de 1988).

De acordo com dados da Procuradoria-Geral do Bacen88, referentes a abril de 2013, a assessoria jurídica da autoridade financeira atuava em 627 processos judiciais em que se discutia a responsabilidade civil e criminal dos dirigentes do próprio Bacen e das instituições que sofreram intervenções, além de casos em que a justiça foi instada a se posicionar sobre aspectos econômicos dos contratos firmados no âmbito de programas de saneamento e reestruturação, como o PROER89. Em 95% dos casos o Bacen estava no polo passivo (596 ações judicias), figurando no polo ativo em apenas 5% delas (31 ações). Estão incluídas as ações em que o Bacen ingressa como assistente de acusação ou defesa.

87Para Saral (2009, p. 185), “Responsável é o sujeito passivo da relação jurídica de responsabilidade. É a quem se aplica a sanção”.

88 Procuradoria- Geral do Bacen. “Papel do BC na garantia da higidez e no saneamento do sistema financeiro nacional, Apresentação realizada no “Seminário Internacional sobre Regimes de Resolução no Sistema Financeiro Brasileiro”, ocorrido em dezembro de 2013 na sede do Banco Central, em Brasília. Disponível em:

<http://www.bcb.gov.br/pec/appron/apres/Apresenta%E7%E3o_Isaac_Sidney_Semin%E1rio_Regimes_Resolu %E7%E3o_06052013.pdf>. Último acesso em 23.01.2014.

89 O formato de apresentação dos dados não permite saber se as 627 ações referem-se apenas àquelas em curso ou contabilizam as já encerradas.

95 Pela classificação interna da própria Procuradoria do Bacen, 77% dessas causas são

consideradas “relevantes”, o que dá um total de 483 ações judiciais, enquanto que as demais

(23% ou 144 ações) não são enquadradas nessa categoria. Quanto à probabilidade de perda,

1,3% são de “condenação irrecorrível” (100% de risco de perdas), 1,6% são de perda provável

(chances de 75%), 35,1% apresentam probabilidade de perda de remota a possível (25%-50%) e 57,1% possuem risco desprezível (0%). As ações em que o BC figura no polo ativo são classificadas como de risco nulo.

Os valores provisionados pelo BC em razão das ações judiciais somam R$ 1,44 bi. Deste montante, 80% têm por objetivo cobrir possíveis perdas em ações referentes às liquidações extrajudiciais, 10% são relativas a consórcios e 1,88% referem-se a ações motivadas por

intervenções. O “valor de interesse” de ações contingenciáveis, porém não provisionadas,

atinge a cifra de R$ 156,4 bi. Mais da metade (53%) desse montante consiste em valores em disputa no âmbito de ações sobre a decretação e condução do RAET, 23,4% da herança do PROER e 21,27% relacionam-se com litígios acerca da liquidação extrajudicial.

O grau de êxito do Bacen nas ações encerradas desde 01.01.2004, que perfazem um total de 1003 ações, é de 94,22% favorável ao Bacen (945 ações), 4,19% desfavoráveis (42) e 1,6% neutras (16).

As estatísticas apresentadas pela Procuradoria-Geral do Bacen apontam para uma ampla deferência do judiciário às ações tomadas pelo Bacen no âmbito da decretação de regimes especiais de resolução de instituições financeiras sob sua supervisão. Prevalecem, assim, as teses jurídicas esboçadas pela autoridade financeira, dentre as quais se destaca a ampla

discricionariedade do Bacen na decretação de regimes especiais, pela qual “cabe ao BC avaliar

o caso concreto para decidir sobre cabimento, modalidade e momento para decretação de algum regime especial, considerando os diversos interesses envolvidos”90. Essa linha de argumentação jurídica foi bem exposta na contestação apresentada pela Procuradoria do Bacen em uma ação movida pelo ex-diretor do Banco Econômico, Renato Ferreira de Abreu Castro, na qual se pedia indenização correspondente aos danos materiais e morais sofridos pelo requerente em virtude da intervenção decretada, pelo Bacen, na instituição financeira. A peça sustentava que91:

90 Trecho da apresentação da Procuradoria-Geral do Bacen no “Seminário Internacional sobre Regimes de Resolução no Sistema Financeiro Brasileiro”. Vide nota 62, supra.

91 Petição PGBC-1576/2011. Revista da PGBC – v. 6 – n. 1 – jun. 2012. Em ação em que se julgava a responsabilidade do Bacen por supostos prejuízos de investidores de instituições submetidas a regime especial, o

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“38. A decisão sobre que medida adotar entre aquelas possíveis não é ato vinculado,

que exclui do administrador qualquer avaliação a respeito de sua conveniência e oportunidade. Óbvio que, na hipótese, existe considerável margem de discricionariedade do Banco Central, quando mais não seja, pelo menos para determinar o momento da decretação e o tipo de regime especial a ser decretado. 90. Assim, adentrar essa seara implicaria invasão do Judiciário em esfera de competência do Poder Executivo, o que é vedado por cláusula pétrea constitucional (art. 2º). E a melhor solução encontrada ao caso concreto foi justamente a decretação da intervenção e posterior convolação em liquidação extrajudicial, não cabendo ao

Judiciário se imiscuir em análise do mérito de ato administrativo.”

Um dos casos mais polêmicos em que o Bacen não conseguiu convencer o juízo sobre suas teses ainda tramita na justiça federal. Em 1ª instância, a justiça federal prolatou sentença desfavorável a ex-diretores do Bacen por condutas consideradas ilegais92. Como se viu no item 2.2., acima, o Bacen realizou operações cambiais com os bancos Marka e FonteCindam na sequência de desvalorizações da moeda realizadas pelo governo em meio aos ataques especulativos contra o Real, em 1999. A justiça federal rejeitou um argumento do Ministério

Público, o da “prevaricação”93, mas acatou o argumento de que os ex-diretores do Bacen que figuram no polo passivo praticaram “peculato”94.

Em seu estudo sobre o “déficit democrático da regulação financeira”, Veiga da Rocha

(2004, p. 107) sustenta que o judiciário, especialmente a corte constitucional, deveria chamar

para si o papel de “conciliar uma visão realista do controle judicial das leis com as exigências normativas do modelo de democracia deliberativa”. Na visão do autor, ao judiciário caberia

STJ decidiu que: "O BACEN não deve indenizar os prejuízos de investimentos de risco decorrentes da má

administração de instituição financeira, na medida em que o Estado disciplina o mercado, exerce a fiscalização, mas não pode ser responsabilizado pelo prejuízo de investidores. Nesse tópico, ‘o STJ, em casos análogos, assentou posicionamento no sentido da inexistência de nexo de causalidade entre a eventual falta ou deficiência de fiscalização por parte do Banco Central do Brasil e o dano causado a investidores em decorrência da quebra de instituição financeira” [REsp 647.552/RS, 1ª T., Rel. Ministro Teori Zavascki, DJe 2/6/2008]” (REsp

1102897/DF, Rel. Min. Denise Arruda, DJe 5/8/2009).

92 SCIARETTA, Toni. Juiz federal condena 23 pelo caso Marka. Folha de São Paulo. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/34195-juiz-federal-condena-23-pelo-caso-marka.shtml>. Acesso em 18.12.2012; Ministério Público Federal. Justiça condena ex-dirigentes do Bacen, BM&F e banqueiros a devolver R$ 6 bi aos cofres públicos. Disponível em: <http://www.prdf.mpf.gov.br/imprensa/29-03-2012-justica-condena- ex-dirigentes-do-bacen-bm-f-e-banqueiros-a-devolver-r-6-bi-aos-cofres-publicos>. Acesso em 18.12.2012. 93 O Código Penal brasileiro (Decreto-Lei N° 2.848, de 07.12.1940, tipifica prevaricação da seguinte maneira: “Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.

94Peculato, de acordo com o Código Penal, consiste em “apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito

97 exercer um controle sobre a “capacidade normativa de conjuntura” do Bacen em nome dos cidadãos, que não deteriam conhecimento técnico sobre a gestão da moeda95.

Ao verificar se o controle judicial realizado pelo STF tem funcionado como uma forma de controle democrático e definido limites para o exercício da discricionariedade da burocracia que regula o mercado financeiro, Veiga da Rocha concluiu que (2004, p. 173):

“... ao invés da domesticação do sistema administrativo, com vistas à sua abertura aos

canais informais de comunicação política, tem-se a chancela do Tribunal para que a

tecnocracia iluminada cuide do “interesse público”. Poder sem responsabilidade,

reconhecimento sem controle, eficiência sem legitimidade. [...] Dessa forma, a capacidade normativa de conjuntura da burocracia reguladora do sistema financeiro torna-se apenas mais um meio de resolução de problemas de integração funcional”

À parte o tratamento específico que o judiciário brasileiro tem dado ao conflito entre a discricionariedade administrativa do Bacen na condução de regimes especiais de resolução (ou na gestão da moeda) cumpre salientar que os órgãos internacionais de fixação de padrões regulatórios (standards) para o sistema financeiro já se ocuparam expressamente da questão. O

Princípio 2 dos “Atributos-Chave para Regimes de Resolução de Instituições Financeiras” do

Financial Stability Board (FSB, 2011a) diz que:

2.6. The resolution authority and its staff should be protected against liability for actions taken and omissions made while discharging their duties in the exercise of resolution powers in good faith, including actions in support of foreign resolution proceedings.

Obviamente, a incorporação expressa do referido princípio no ordenamento jurídico doméstico interessa sobretudo ao próprio Bacen, e foi nesse sentido que a autoridade financeira incluiu na minuta da proposição legislativa para reforma do marco jurídico de resolução de instituições financeiras no Brasil, um artigo que lia:

95 Duran (2012) entende que apostar no judiciário como locus para a averiguação do grau de accountability do Bacen não resolve a tensão entre as racionalidades “técnica” e “jurídico-democrática” (termos usados por Veiga

da Rocha, 2004). Para a autora, haveria uma simples troca entre o predomínio do consenso “científico” a respeito

da gestão da moeda pelo discurso jurídico, também revestido de caráter altamente técnico. Por isso, a autora privilegia, na sua análise, a accountability do Bacen em relação aos órgãos políticos e à sociedade.

98 Art. 59. A representação judicial dos interventores e dos membros de conselhos diretores, nas causas em que forem demandados por atos praticados no exercício de suas funções, será assegurada na forma da lei. Parágrafo único. O disposto no caput se aplica aos servidores do Banco Central do Brasil, inclusive aos que exercem atribuições de supervisão. (grifos do original).

Visualiza-se, a partir do referido dispositivo, a intenção do Bacen em conferir maior segurança jurídica ao seu corpo burocrático do Bacen ou aos interventores nomeados contra os persistentes questionamentos judiciais pelas partes interessadas.

Como advertido anteriormente, o Bacen desistiu de propor ao Congresso Nacional a reforma do marco jurídico de resolução de instituições financeiras com base na minuta apresentada através do Edital de Audiência Pública N° 34/2009, mas a nova versão do texto ainda não foi divulgada ao público.