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alta em um bairro popular do Distrito Federal

3 O ciclo de dádivas

3.2 Aceitar e retribuir: ser “12 por 8”

Alguns membros da equipe eram vistos como “bons” por darem coisas valiosas (receitas de psicotrópicos, amostras grátis de medicamentos, encaminhamentos para serviços especializados, encaixes de consultas, glicosímetros etc.) ou por serem amáveis, por tratarem os pacientes “que nem gente” e por lhes ensinarem sobre a “teoria da cadeira”. Muitas pacientes tentavam aceitar a dádiva oferecida, como bem explicou Dona Zélia: “Eu tenho que me cuidar. Se não, quando eu chegar lá, o médico vai puxar minha orelha com razão. Se ele puxa, ele tem razão, ele faz para o nosso bem. Umas pessoas nem tentam, né? Aí, quando chegam lá, estão nas últimas. E chega lá querendo que os médicos deem jeito. Tem que se cuidar, tem que fazer a nossa parte”. Para não ficar “solta” quando estivesse longe do centro de saúde, o controle deveria ser realizado pela paciente todos os dias em casa a partir do homework (MATTINGLY et al., 2013), isto é, o trabalho miúdo e continuado de colocar em prática cada uma das “pernas da cadeira” – dieta, medicamentos e exercícios físicos. Era seguir tudo o que fosse sugerido para controlar a pressão ou, ao menos, encontrar uma forma de mantê-la controlada mesmo se outra teoria tivesse sido escolhida. Como Dona Zélia explicou, o controle permitiria chegar a uma nova sensação de normalidade e bem-estar: “Se a doença estiver controlada, a vida é normal. A cura é o controle”.

Dessa forma, “fazer a sua parte” era aceitar a “teoria”, “andar na linha” e, sobretudo, apresentar-se “controlada” no momento da aferição arterial no postinho. Ao apresentar-se “12 por 8”, a paciente estaria comunicando que havia, sim, introjetado a “teoria” e que sua pressão evidenciava concretamente a retribuição que devolvia à equipe do posto. O ciclo de dádivas estava, portanto, completo, e a relação entre profissionais e público seguiria suave e fluida, como lembram Mattingly et al. (2013):

Os pressupostos inerentes nos programas de cuidado domiciliar (home care), intervenções e tratamentos sobre os aspectos sociais do dever de casa (homework) vistos como naturalmente positivos

– um tipo de dádiva – provaram ser problemáticos. A dinâmica do homework envolve uma obrigação implícita para que as pacientes retribuam. Nessa “troca de presentes”, as pacientes recebem informação, medicina e treinamento técnico da equipe de saúde (setor profissional) e é esperado que retribuam a tudo isso realizando seu homework. Nesse sentido, as pacientes fazem o tratamento – e os setores profissionais – exitosos (p. 366).3

Quando as equipes deparavam com resultados numéricos acima do esperado, supunham que a dádiva estivesse deixando de ser reconhecida e, mais importante, retribuída. Certa manhã, na sala de acolhimento, perguntei a uma técnica em enfermagem por que, em sua opinião, as pacientes chegavam com a “pressão” alta. A técnica sequer suspirou para me responder: “Ah, são todos burros esses pacientes, porque o doutor explica tudo direitinho. Explica e explica. Ele é muito paciente com as pessoas. Depois, eles voltam aqui na nossa sala e a gente explica de novo, ou lá na farmácia também. Mas não usa direito, não toma o remédio direito, ainda mais quando é mais velho. Além disso, não consegue parar de comer as coisas, come tudo igual e depois não entende porque [a pressão] continua alta e tal”. Com paciência e repetição, explicar, explicar novamente e explicar ainda outra vez – a equipe fazia sua parte no contrato. Como também encontraram Hunt e Arar, entre pacientes latinos no sul dos EUA,

[...] a adequação, acessibilidade e propriedade das recomen- dações clínicas são muitas vezes tidas como certas pelas equipes, enquanto tratamentos fracassados são atribuídos à falta de cooperação da paciente, tanto por intenção quanto por ignorância. A estratégia central das equipes para promover adesão é a tentativa de incitar as pacientes para cooperarem ao lhes serem oferecidas ainda mais informação e motivação (2001, p. 361, grifo nosso).

Aquela funcionária e suas colegas nem sempre consideravam outros fatores, bioquímicos ou não, que pudessem estar a alterar a pressão, ou as dificuldades de acesso, inclusive financeiros, aos medicamentos, nem cogitavam inventar outras formas institucionais não medicamentosas de lidar com as alterações pressóricas (como psicoterapia, terapia ocupacional, esportes e atividades lúdicas, por exemplo). Ouvi muitas

vezes, portanto, que as pacientes não tomavam a medicação prescrita por não compreenderem sua importância, posologia, centralidade ou, mais do que tudo, por negarem – por desconhecimento e/ou altivez – que a biomedicina estivesse lhes oferecendo o melhor (aliás, o único) tratamento eficiente e disponível para a HAS.

Essa técnica com quem eu dialogava na sala de acolhimento continuou sua análise: “Mas eu acho que eles não tomam mesmo porque o remédio é dado de graça. Eles não valorizam, sabe?”. Ficava claro como, além da alteridade em termos de classe e geração (as “velhas e pobres”), discussão com a qual abri esse capítulo, havia também a quebra do ciclo de dádivas, já que as pacientes não “valorizavam” o que lhes era dado gratuitamente – explicações, paciência e pílulas. Era inaceitável que tudo isso fosse negado, já que, com os medicamentos em mãos, ao menos, a equipe poderia continuar tentando convencer as pacientes a tomá-los – “o comportamento da paciente em termos da expectativa profissional” (HUNT; ARAR, 2001, p. 350). As autoras continuam:

[...] nessa orientação, a propriedade e a virtude das recomen- dações de tratamento são tomadas como certas e o problema de promover comportamentos de autocuidado se reduz a simplesmente encontrar maneiras para suficientemente educar e motivar as pessoas para que elas sigam o conjunto de ações certo e óbvio (p. 350).

A atenção básica, quando nasce nos anos 1970, contava com uma perspectiva de “progressiva responsabilização do self (como valor central do individualismo) e do controle das pessoas” (TARGA, 2010, p. 23). A educação em saúde com base na mudança comportamental pode ser muito capciosa. Por um lado, ela pode parecer autoritária, mas estudiosas da antropologia do Estado têm nos lembrado, justamente, que essas estratégias precisam, antes de tudo, tomar seu público “ativo” como aquele que “exercita suas próprias escolhas em seu próprio interesse e experimenta liberdade através do automanejo” (SHORE; WRIGHT, 1997, p. 33). Sugiro que políticas como o HIPERDIA, que dependiam da prática do controle e comportamento individuais, “pressup[unham] em vez de anularem a capacidade das pessoas como agentes” (GORDON, 1991, p. 5 apud SHORE; WRIGHT, 1997, p. 6). Por outro lado, contudo, essa ideia de agência prevê que os sujeitos devam ter autonomia para mudar apenas as atitudes previstas pela

política. Essa ideia, portanto, pode desonerar o Estado e sobrecarregar o indivíduo:

As intervenções informativo-educativas estimulam a adoção de padrões de comportamento autônomos e responsáveis, mas apenas para aquilo considerado “bom” e “saudável” pela ciência médica, já que a ênfase na erradicação dos comportamentos considerados “de risco” permanece intacta (MENÉNDEZ, 2003 apud GARNELO; LANGDON, 2005, p. 141).

Nessa abordagem utilitarista, “o comportamento do doente deve ser compreendido apenas para ser modificado, atendendo às prio- ridades e necessidades definidas pelo sistema de saúde” (GARNELO; LANGDON, 2005, p. 140-1). Outras pessoas, mesmo reconhecendo ser necessário estarem atentas à saúde, poderiam perceber essa relação continuada com o centro de saúde como algo um pouco devassador, como disse Dona Genoveva: “Ah, os médicos desconfiam muito da gente, assim. Eles desconfiam muito de paciente [crônico]. Trata a gente que nem criança. Eles perguntam tudo, como a gente fez, o que a gente comeu etc. Eles botam tudo isso no computador. Eles sabem de tudo. Não adianta não fazer como ele falou, ele vai saber”. Muitas vezes, o escrutínio do comportamento, dos números, do consumo posológico correto vinha na linguagem do cuidado e era valorizado por muitas pacientes. Entendiam que as profissionais de saúde estavam lhe dirigindo tempo e escuta atenta para localizar as dificuldades em entender e/ou praticar a “teoria da cadeira”. O comportamento poderia também ser, contudo, igualmente paternalista. Conforme o pensamento que Dona Genoveva acabou de explicar, uma técnica da sala de acolhimento disse: “A gente tem que ter mais cuidado com eles. A gente não tem coragem de soltar essas crianças. Eles dão trabalho. Muitos são idosos”. A devassa era estratégia para localizar qualquer comportamento que pudesse indicar a não aceitação e não realização da “teoria de três pernas”. Dona Paula, por exemplo, nos contou que pegava seus “remédios da pressão” ali no centro de saúde: “Mas eles não podem saber que eu tenho convênio. Não podem saber. Se não, eles não atendem mais, você não consegue mais pegar o remédio, consulta, nem nada”. Na sala de acolhimento, certa vez, presenciei um diálogo entre uma técnica e uma paciente. A filha dessa última, que também fazia parte do “grupo”, tinha começado a “frequentar o particular”. Então, a mãe não sabia se ela continuaria indo às reuniões do postinho. A técnica foi tentando convencer a mãe de que era importante a filha honrar o que lhe era oferecido ali no centro de saúde. Primeiramente,

disse: “São duas consultas por ano só, você sabe”. Depois, subiu o tom: “Mas ela vai ficar sem o acompanhamento?”. Por fim, outra paciente, que também acompanhava de perto o diálogo, disse exclamativamente: “Está tão difícil conseguir consulta! Ela vai mesmo desperdiçar essa daqui?”. Ao contrário dessa mãe e sua filha, Dona Paula, no primeiro exemplo, tentava utilizar todos os serviços que pudessem lhe ajudar a “controlar a pressão”, seja ali e em outro posto de saúde, seja ali e em um serviço privado, sem ferir a sensibilidade de quem havia iniciado a troca de dádivas. Ela evitava a todo custo fazer uma “desfeita”, correr o risco de interromper o ciclo e, sobretudo, perder os benefícios, como pareceria acontecer em breve com a jovem “hipertensa” no segundo exemplo.

Aferições pressóricas, prontuários clínicos e receitas médicas, sempre como suportes para o registro de números e comentários, eram práticas que Dona Genoveva, Dona Paula e tantas outras senhoras viam reter o potencial de escrutínio e delação e, com mostrarei à frente, de estigmatização e penalização. As pessoas percebiam essa atmosfera de vigilância que vinha a reboque do “controle da pressão”. Durante minha pesquisa, o centro de saúde continuava chamando o formato de “grupo do HIPERDIA”, “grupo de apoio” ou “grupo de pressão”; contudo, mais e mais, as pacientes percebiam que se tratava de um “grupo da pressão”, como chamavam à boca pequena e de modo irônico (FLEISCHER, 2013). Por isso, Mattingly (2006) me inspira a ver os centros de saúde como “border zones” (zonas de fronteira), onde aconteceriam “experiências cosmopolitas híbridas” (CLIFFORD 1997, p. 25 apud MATTINGLY, 2006, p. 495). Nas palavras de Mattingly (2006),

O mundo clínico tem sido reconhecido, frequentemente, como um terreno contestado. O hospital urbano é um lugar onde mal- entendidos e conflitos surgem rotineiramente. [...] Os serviços de saúde urbanos nos Estados Unidos são caracterizados por um conjunto confuso de línguas, nacionalidades, identificações raciais, classes sociais e religiões (p. 495).

No caso da Guariroba, um intenso contraste entre experiências urbanas e rurais, entre jovens e idosas, entre pobres e ascendentes sociais e entre sadias e adoecidas aquecia essa “zona de fronteira” com novas conflitualidades. Nos encontros clínicos com sujeitos em posições tão diferentes e tão desiguais, a “prática da alteridade” (othering), bem como as falhas de comunicação, na “emblemática figura do paciente mal compreendido”, se tornavam mais e mais comuns (MATTINGLY, 2006, p. 495).

4 “Controlados” e “descontrolados”: uma