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As moradoras da Guariroba como o “outro”: velha, pobre, doente e desolada

alta em um bairro popular do Distrito Federal

2 As moradoras da Guariroba como o “outro”: velha, pobre, doente e desolada

Uma técnica de laboratório que estava prestes a se aposentar contou durante uma entrevista: “Eu tenho 30 anos de casa. Gosto do

Extensão, todos da Universidade de Brasília, que, na forma de bolsas e outros apoios, possibilitaram que essa pesquisa pudesse se desenvolver ao longo de todos esses anos.

2 Como, ao longo da pesquisa, conheci moradoras, cuidadoras, enfermeiras, médicas,

professoras e pesquisadoras, estive em um mundo de mulheres. Eram visivelmente a maioria. Por isso, ao optar pelo plural feminino ao longo desse texto, fiz uma opção estatística, mas também ética e política. Em primeiro lugar, essa escolha ajudará, mesmo que minimamente, a render homenagem a tantas senhoras que me ajudaram a entender os caminhos pela Guariroba; representará as pessoas do sexo feminino, que, numericamente, se sobrepuseram às do sexo masculino; ajudará a borrar identidades, já que por vezes um setor do centro de saúde contava, por exemplo, com um único funcionário do sexo masculino, o que permitiria facilmente reconhecê-lo; e, por fim, provocará a regra do plural masculino que, como sabemos, não concerne meramente à esfera gramatical.

meu trabalho. Adoro meus pacientes! Já fiz muita caridade para os pacientes e continuo fazendo”. Lembrou ainda que, “Desde idade pequena, eu falava para o meu pai que eu tinha vontade de trabalhar com a comunidade, para ajudar a comunidade. Graças a deus, aqui eu realizei meu sonho”. Uma auxiliar de laboratório contou que mal chegou a terminar o ensino fundamental, mas sonhava em estudar e se formar como advogada, e explicou: “Para defender os oprimidos da vida”. Uma técnica em enfermagem disse que queria mesmo ter estudado medicina para “ajudar os pobres”. Uma faxineira vinha estudando enfermagem para “fazer algo pelo próximo”. Muitas mencionaram que essas trajetórias eram expectativas de pais e mães, numa alusão à ascensão social, mas também como um compromisso de redistribuição simbólica. Os progenitores, ao conseguirem educar e encaminhar suas filhas, esperavam que, quando adultas, passassem adiante essas graças recebidas – suporte da família, diplomas, esclarecimento, emprego público. Por melhores que fossem as intenções dessas funcionárias, não posso deixar de perceber a superioridade com que se viam em relação à sua clientela, essa comunidade de “pobres” e “oprimidas”.

Num centro de saúde na periferia, seria possível encontrar o público ideal para colocar essa “caridade” ou “ajuda” em prática. Afinal, como outra auxiliar de laboratório explicou, ali as pessoas eram “doentes, sofridas, judiadas”. Uma nutricionista dizia que ali era uma comunidade de pessoas “carentes”, “com falta de recursos”, e concluiu que “nem tudo na Secretaria é fornecido, mas nem tudo que você prescreve eles podem comprar”. Conheci uma freira que repetiu algumas vezes que “ninguém ali no bairro tinha condições”. Uma enfermeira mencionou, em tom crítico, que no bairro numerosas famílias dividiam o mesmo lote. Eram comuns também os comentários derrogatórios sobre o linguajar desse público, tido como errado, carregado de sotaque, incompreensível. No entanto, uma auxiliar de enfermagem explicou que, diferentemente da Ceilândia Norte (um bairro vizinho), ali recebiam pacientes “com nível socioeconômico até razoável, com grau de instrução bem melhor”, e uma das diretoras elogiou a população que atendiam: “Aqui, por sorte, é todo mundo tranquilo. Não tem barraco, não tem gritaria”. Quem morava na Guariroba e utilizava os serviços públicos era, por pressuposto, despossuída de muitas coisas, não só materiais, mas também morais. Porém, ao menos eram vistas socialmente acima de outros bairros, como a Ceilândia Norte, o Sol Nascente ou até Águas Lindas, cidade do lado de fora do quadrilátero, já no estado de Goiás.

Além da suposta pobreza, a velhice também era um problema, como registrou uma auxiliar de laboratório: “Aqui, as senhoras idosas não têm muitos sonhos na vida. Elas estão assim, meio abandonadas”. Mesmo com idade, origem, moradia, grau de instrução e trajetória migratória semelhantes, essas funcionárias não se identificavam com suas pacientes. Uma médica achava difícil compreender como suas clientes octogenárias tinham, por exemplo, “preocupações” que afetassem a pressão. Imaginava-as naïves e um pouco destacadas dos impactos da sociabilidade cotidiana. Numa das vezes em que acompanhei a roda de orações que encerrava o grupo de ginástica ali mesmo no centro de saúde, composto e organizado pelas moradoras idosas do bairro, uma senhora fez um pedido específico. Com uma Ave Maria, rezou pelos “velhinhos esquecidos nos asilos”. Dona Érica, que mantinha a banquinha de lanches na frente do centro de saúde, uma vez contou que a mercadoria não vendida até o final do dia era levada de volta para uma vizinha mais velha: “Ela é mais pobrinha do que eu” (Diário de campo de Mayara Albuquerque, 2014). É interessante que, para funcionárias ou usuárias que viviam na Guariroba e utilizavam aqueles serviços públicos, a ideia de “idoso” era colocada sempre a um palmo de distância, seja aquela senhora atendida no consultório, aquela internada em uma instituição de longa permanência ou a vizinha que passava necessidade. A idosa pobre, sozinha e doente (também “hipertensa”) era sempre a outra.

Como outras pesquisas já mostraram, “o indivíduo/paciente/ usuário do sistema público é imaginado sob o paradigma do pobre e sem recursos, face ao indivíduo/paciente/usuário dos consultórios e hospitais particulares” (MACHADO, 2003, p. 12). Assim, as imagens que as funcionárias faziam sobre a clientela daquele postinho era o que orientava a forma como o programa do HIPERDIA era colocado em prática. Como lembra Machado (2003), a “aparência diacrítica da pobreza” era reconhecida pelas equipes na cor, linguajar, classe e, acrescento, geração das usuárias do SUS. Segundo Garnelo e Lagdon, ainda, “O atendimento recebido funda-se na assimetria e na subalternização, forjadas pelas normas e rotinas do espaço sanitário” (2005, p. 142). Por mais que as diferenças entre equipes e públicos pudessem ser comunicadas pela expertise técnica, o “conhecimento competente” em relação à HAS era também construído pelas diferenças sociais e simbólicas apontadas.

Era um “outro” repleto de vazios. Por supostamente nada ter, saber ou ser, essa paciente precisava de tudo; o posto poderia, ao menos,

dar-lhe uma “ajuda”. Certa manhã, vimos um senhor abordar o guarda e, de certo, questionar a demora da fila. Todas ouviram o guarda dizer em alto volume: “Aqui, ninguém manda. Aqui a gente pede” (Diário de campo de Ana Clara Damásio, 2014). Didaticamente, ele falava para o grupo como um todo, não apenas ao senhor em questão. A lógica não era da cidadã, que poderia exigir, mas da paciente, que, sem alarde, deveria apenas requisitar. A equipe, quando as portas fossem finalmente abertas, é que decidiria se ofereceria ou não o que estivesse sendo pedido. Poderiam oferecer apenas a “obrigação” ou, conforme a gentileza das pacientes, alguma “ajuda”. A “obrigação” me foi explicada como cumprimentar, atender e/ou encaminhar a paciente à sala correta. A “ajuda” ou a “boa vontade”, como também era chamada, era um “empenho extra”, como explicou uma auxiliar de enfermagem: “É não deixar o paciente caminhar sozinho com as próprias pernas, mas dar-lhe uma direção, ouvir e deixá-lo mais tranquilo, oferecer portas abertas”. As funcionárias que tinham algum pertencimento religioso (e quase todas as pessoas que eu conheci eram católicas, umbandistas, espíritas, evangélicas) tendiam a aceitar de modo mais naturalizado que lhes incumbia também oferecer esse “plus”. Era “bondade”, era “por Jesus”, era para “ajudar as pessoas que estavam precisando”, me disseram algumas vezes.

Em um contexto de “faltas”, entretanto, até os raros atendimentos, exames e remédios foram descritos por muitas das funcionárias como uma “ajuda” oferecida às pacientes. Uma agente comunitária de saúde contou ter ouvido de uma médica do posto que “as pacientes estavam pegando o boi” ao receberem agentes visitadores em casa, atividade prevista no Programa de Agentes Comunitários de Saúde/Programa de Saúde da Família (PACS/PSF). Uma diretora comparou sua terra natal, uma capital nordestina, ao Distrito Federal: “Na minha terra só tem um pronto socorro para a cidade inteira. Aqui é bem maior, tem um pronto socorro em cada região administrativa. Eu acho que o povo reclama demais”. Uma paciente, no banco de espera, me contou que viu outra paciente reclamar com uma médica dos seus constantes atrasos. A médica retrucou: “Quem manda na minha hora sou eu. Eu faço a hora que eu quiser. Meu atendimento aqui é um favor pras pessoas, porque o salário de fome que eu ganho não paga o meu serviço aqui”. Dada essa clientela “necessitada”, não era preciso fazer muito. Ser atendida pelo “bom médico”, encontrar a porta da sala de acolhimento destrancada ou receber o “bom senso” do farmacêutico já seria muito. Iam deixando de ser “obrigações”, para virarem um “diferencial”, como a farmacêutica

me explicou. Por isso, era comum ver as funcionárias mais simpáticas e solícitas serem chamadas de “anjo”, “santa”, “bênção”. É interessante como “dar atenção”, algo que muitas estudiosas supõem como central entre cuidadoras e cuidadas (NATIONS et al., 2011), virava “algo a mais”.

Nesse contexto, muitas pacientes sentiam estar “pedindo” por uma consulta, uma medição de pressão, um remédio. Uma senhora, ao acionar esses serviços corriqueiros do posto, disse sentir que estava “se humilhando”. Funcionárias de hierarquias inferiores expressavam o mesmo. A enfermeira, ao dirigir-se a uma colega médica e solicitar a marcação de uma consulta para seu paciente, sentia estar “pedindo um favor”. Uma agente comunitária de saúde, ao buscar um esparadrapo no almoxarifado para realizar um curativo em domicílio, disse-me que era como se estivesse “passando o penico”. Diante de tanta coisa que faltava, essa agente me explicou: “Era como se eles estivessem dizendo: ‘Isso é meu e eu que comando’”. Na combinação de alteridade, falta e ajuda, pequenas e cumulativas privatizações dos espaços e serviços públicos iam se naturalizando, e, por isso, era possível e comum que os serviços fossem ali oferecidos a conta-gotas como dádivas escassas e valiosas.

Por isso, face à ideia da “ajuda”, era tão difícil às equipes aceitarem as reclamações e discordâncias por parte das pacientes. A lógica da dádiva, nos termos clássicos maussianos, pressupunha generosidade e superioridade de quem a ofertava e, ao mesmo tempo, humildade e, mais do que tudo, gratidão como retribuição por quem a recebia. Para funcionar ali nos serviços de saúde, as ideias de “ajuda” e “caridade” precisavam da ideia de “velha pobre e abandonada”. Contudo, eu começava a ver sinais de transformação dessas relações. Quando uma senhora comentou que era seu direito ter a receita médica completa ou quando um senhor retirou a carteira de trabalho do bolso da camisa e disse ser trabalhador como qualquer um ali (conforme anotou Ana Clara Damásio), menos e menos eu notava que os pacientes viam os serviços de um centro de saúde como um agrado. Ainda assim, uma forte lógica da dádiva, conforme Marcel Mauss nos ensinou, ainda pautava as relações terapêuticas que se estabeleciam nos espaços oficiais da cidade (MACHADO, 2003; CAILLÉ, 2014). A seguir, passarei pelo tripé da dádiva.