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Considerações finais: performando o dentro e o fora do Estado

pela hanseníase

5 Considerações finais: performando o dentro e o fora do Estado

Ao longo das últimas décadas, as políticas de reparação dirigidas às vítimas de crimes de Estado ganharam cada vez mais espaço nas novas formas de se fazer política (TORPEY, 2001). Medidas de intervenção que buscam reconhecer e criar formas de reparação para aqueles que sofreram alguma forma de violência perpetrada pelos Estados vêm sendo formuladas desde meados do último século. No presente capítulo, realizei uma reflexão acerca da política brasileira de reparação à primeira geração de atingidos pela hanseníase, uma normativa instituída em 2007 que atendeu o pleito político de um movimento social pelo reconhecimento de que as antigas medidas de segregação em leprosários não deveriam ser tomadas como políticas necessárias de saúde, tal como era ainda possível encontrar em determinados discursos, mas como um crime que havia sido cometido pelo Estado e que por ele deveria ser reparado.

As legislações do século XX que instituíram as políticas de segregação determinavam a universalidade do isolamento, ou seja, definiram que todo e qualquer sujeito diagnosticado com a doença deveria ser isolado nos antigos leprosários. Os marcos legais se tornaram relevantes aqui na medida em que a política reparatória instituída em 2007 tomava o passado a partir daquilo que poderíamos chamar de narrativa das leis em detrimento das diversas maneiras com que a segregação foi colocada em prática. Conforme apresentado, as experiências de isolamento e segregação de sujeitos de carne e osso estavam atravessadas por uma multiplicidade de situações e instituições que não eram previstas em lei, mas que estavam presentes nas narrativas sobre o passado. No entanto, a política reparatória estava assentada numa concepção sobre o passado das políticas de isolamento que se inspirava na determinação das antigas leis para definir o sujeito que teria direito à reparação: aqueles que foram retirados de casa à força pela polícia ou agentes oficiais e isolados em leprosários por anos. Essa definição fazia com que diversos sujeitos que foram isolados dentro de casa, em seringais ou em instituições que não eram previstas como espaço de isolamento não conseguissem emparelhar suas experiências com aquilo que era esperado em Brasília, acarretando o indeferimento de seus pedidos de reparação.

A partir dos casos de João e Antônio, requerentes da reparação que tiveram seus pedidos negados, busquei refletir acerca da forma

como a ordenação dos sujeitos de direito passava por um cálculo acerca da presença ou da ausência do Estado na experiência de isolamento. Diversas trajetórias daqueles que solicitavam a reparação não tinham sido tomadas como crimes de responsabilidade do Estado – e, portanto, reparáveis –, mas como casos em que o Estado esteve ausente. O objetivo foi chamar atenção para concepções binárias de Estado e sociedade, como artefatos sociais no sentido que lhes atribui Marilyn Strathern (1992), que operavam na determinação dos sujeitos de direito. Tal dualidade se assentaria na premissa de que a realidade seria subdividida em dimensões que engendrariam entre si relações externas de afastamento ou conexão. O tensionamento acontecia quando se pretendia reparar o passado a partir de uma concepção de Estado como uma entidade centralizada e padronizada. O objetivo aqui não foi sugerir que a política reparatória foi deturpada ou que lhe foi dada uma interpretação não acurada, mas destacar a maneira como, ao ordenar os sujeitos daquele direito, a história do Estado e o próprio Estado eram também performatizados – ou, inversamente, a forma como a performatização da ausência e presença do Estado operava ordenando os sujeitos de direito.

Fazendo um paralelo com aquilo que sugerem Das e Poole (2008), as particularidades do isolamento domiciliar e nos seringais não foram entendidas aqui como exceções, mas como aquilo que participava da produção da própria regra. Por um lado, tínhamos diversas narrativas que apontavam para o passado dos isolamentos enquanto medida que na prática aconteceu de múltiplas formas, levantando a questão da diversidade de contextos, infraestruturas, relações de poder e prioridades que moldaram aquela empreitada que se apresentava como política nacional de saúde. Por outro lado, temos uma política nacional contemporânea que tem como objetivo reparar os erros do passado, mas que, ao buscar fazê-lo, impõe uma concepção encapsulada, centralizada e legalista do que teria sido o crime de Estado. Tudo se passa como se fosse imposta ao passado uma coerência em relação às suas legislações – ou melhor, como se as legislações fossem a própria narrativa sobre o passado (ou seja, o isolamento em leprosário e feito de forma compulsória, que, conforme vimos, era uma categoria disputada).

De um lado, temos a definição do que seria o Estado – lá, em algum livro da prateleira –, mas, de outro lado, temos os efeitos daquilo que chamamos Estado. A questão aqui foi apontar como a própria performatização do Estado – como aquela entidade ordenada, delimitada e padronizada – entrava em jogo na hora de determinar quem era e quem não era sujeito daquele direito. A política de reparação tinha seus limites

definidos pela performance dos limites do Estado, que, se em alguma medida vinha atrelada aos tijolos dos muros da política de segregação, também vinha emaranhada a noções reduzidas de compulsoriedade. Afinal, tal como o caso de Antônio nos ajudou a refletir, ser levado pelos pais estaria dentro ou fora da responsabilidade do Estado? As políticas discriminatórias dirigidas aos atingidos pela hanseníase estavam limitadas aos portões dos leprosários? Elas estariam limitadas aos casos de captura dos sujeitos pela polícia sanitária ou outros agentes oficiais? Parece-me que não. Se os muros da segregação do passado não tiveram uma área geográfica bem definida, por que iremos agora determinar de forma excludente onde os isolamentos aconteceram? Conforme vimos, na medida em que os muros do Estado foram delimitados, a política reparatória dirigida aos atingidos pela hanseníase também traçou seus próprios limites.

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