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Senhoras Cristãs

7 A ala feminina

Ao sair do refeitório pela porta principal havia outro corredor, que dava acesso à área administrativa e que era utilizado pelos funcionários do Hospital como via de acesso ao refeitório, de modo que seu percurso não fosse o mesmo dos pacientes. Desse corredor era possível acessar a ala feminina. Ao adentrarmos no lado esquerdo dessa ala encontramos dormitórios coletivos, uma sala com materiais esterilizados e outra utilizada como depósito de materiais diversos.

Nesse lado encontravam-se ainda os banheiros coletivos, uma porta de acesso à área externa, um pequeno pátio com mesas e cadeiras de concreto e uma televisão, onde as mulheres conversavam e fumavam cigarros. Havia ainda uma sala desativada, que costumava servir como um tipo de consultório, e a enfermaria. Não havia na ala feminina, diferentemente da masculina, as salas de contenção ou a sala de intercorrência. Segundo me informou uma das enfermeiras, não havia necessidade de uma sala de intercorrência feminina, porque as mulheres eram “mais calmas e davam menos trabalho”.

Depois de me mostrar a ala feminina, acessada através do refeitório, Pedro me conduziu à porta que a encerra e dá acesso à área administrativa do HBF. Nota-se que o isolamento da área administrativa foi arquitetonicamente desenhado com vistas a evitar o

contato dos funcionários dessa área com os pacientes, uma vez que a área administrativa era a sala que recebia, em reuniões, a comunidade externa ao HBF e os gestores, sendo ainda o local onde se realizavam eventuais entrevistas com os jornais locais.

De volta à enfermaria feminina, foi possível observar que as enfermarias, feminina e masculina, funcionavam como observatórios dos enfermeiros em relação aos pacientes que circulavam nos pátios e nos corredores. Estrategicamente, as enfermarias possuem esse papel; suas portas eram divididas em duas, de modo que formavam também um pequeno balcão onde os internos solicitavam medicamentos ou mesmo isqueiros para acenderem seus cigarros, visto que havia a proibição do porte de qualquer objeto capaz de gerar fogo, com vistas a evitar incêndios que poderiam ser iniciados pelos pacientes, como me informou uma das enfermeiras. Ainda assim, caso fosse iniciado algum incêndio ou rebelião, o HBF contava com dois corredores, tanto na ala masculina quanto na feminina, que davam acesso direto à rua.

Tal caráter de vigilância, deflagrado pela arquitetura da instituição, em especial pela localização estratégica das enfermarias, nos remete ao panóptico de Bentham12 no sentido de que as enfermarias também operam como dispositivos que tornam possível a visibilidade dos que ali se encontram vigiados, onde os vigiados são vistos mas não veem aqueles que os olham, na garantia da ordem, submetendo o sujeito ali internado a um estado consciente e permanente de vigilância (FOUCAULT, 1997):

Daí o efeito mais importante do panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua

12 “O panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é

conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro uma torre, esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito de contraluz pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível” (FOUCAULT, 1997, p. 165).

ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce, enfim que os detentos se encontrem presos numa situação de poder que eles mesmos são os portadores (p. 166).

Deste modo, as enfermarias estabelecem como função o cuidar e o vigiar, servindo como espécie de olhar que tudo vê, o panóptico no Hospital, pois mesmo que os funcionários – enfermeiros e enfermeiras – não estivessem ali o tempo todo, a ideia de que estão sendo observados e controlados nunca abandona os internos, tanto nos corredores quanto nos pátios e quartos (as portas dos quartos onde dormiam homens e mulheres deviam estar sempre abertas). Assim, as enfermarias se situavam como uma espécie de panóptico, no sentido de transmitir a seus internos, homens e mulheres, a noção e a sensação de que estavam sendo constantemente vigiados, observados e disciplinados.

Além do caráter de vigilância das enfermarias, as próprias enfermeiras da ala feminina, além dos cuidados com as mulheres ali internadas, exerciam o papel de vigilantes de seus comportamentos, prezando também pela contenção das internas, procurando evitar possíveis fugas.

Durante o trabalho de campo, enquanto eu estava na enfermaria conversando com as enfermeiras, curiosa sobre como eram realizados seus trabalhos naquele hospital, pude ouvir o trecho de uma conversa entre outras duas enfermeiras, na qual uma delas expunha sua preocupação em relação a uma das pacientes que não havia tomado seu chá – uma espécie de ceia na qual o Hospital oferece chá com bolachas antes de os pacientes dormirem – e que seria necessário observá-la, pois era preciso “ficar de olho” nessa paciente, que poderia estar “planejando fugir e se fugir é de responsabilidade do hospital o que acontece lá fora, porque eles estão internados aqui”, disse uma delas.

A estrutura de controle espacial presente e mantida na arquitetura do HBF não foi favorável para a instituição. Segundo me informou Sônia, para que o HBF continuasse a receber os repasses financeiros do SUS, deveria seguir uma série de portarias e diretrizes, de acordo com os preceitos do movimento da Reforma Psiquiátrica. Uma dessas portarias era a no 224, que, entre outras exigências, requeria a reformulação dos espaços físicos dos hospitais psiquiátricos.

No entanto, o Hospital não dispunha do orçamento necessário para fazer as reformas exigidas pela Portaria no 224. Com as ameaças de

fechamento pelo Ministério da Saúde, divulgadas pela imprensa local, o HBF iniciou uma campanha a fim de arrecadar fundos para a realização de reformas em sua estrutura física. Com o apoio da população, como os mutirões realizados com o auxílio da Polícia Militar, bem como por meio de doações de material de construção, o Hospital fez pequenas reformas na estrutura física, porém de forma precária.

Assim, o HBF, ao garantir a continuidade da arquitetura do espaço físico como um local que trata, vigia e abriga na forma de asilamento, manteve entre muros seus “transtornados”, longe dos olhares da população local, que, por sua vez, não estava preparada para o retorno dessas pessoas asiladas ao convívio social.

Com o passar dos anos, o HBF foi se abrindo e a rede pública de saúde mental se expandiu com a criação do Centro de Apoio Psicossocial, Álcool e Drogas, o Caps AD, em 2003. O número de pacientes e de internações diminuiu, mas houve moradores desses locais – pessoas que estão institucionalizadas há mais de 20 anos e/ou que vieram de outros hospitais psiquiátricos, como o caso de Laura – que foram realocados em casas independentes, nas mediações do HBF. Essas casas fazem parte do “Projeto Lar Abrigado”. Construídos, alugados e geridos com recursos financeiros do Hospital Benedita Fernandes, os “abrigos”, como são chamadas essas casas, oferecem moradia, alimentação, cuidados médicos e terapêuticos a seus moradores, além da autonomia de circulação.

Além dos abrigos, o HBF contava com o “Programa de Atendimento ao Paciente Morador”, em que realizava semanalmente passeios com os moradores do HBF pelas ruas e feiras da cidade, bem como previa o restabelecimento do contato social do morador com sua família, com vistas à desospitalização e à ressocialização dos pacientes (de acordo com seu Plano de Ação de 2014). Tais programas e moradias se baseiam nos preceitos da Reforma Psiquiátrica e demonstram a abertura dos muros do HBF, bem como a sua abertura aos preceitos preconizados pela Reforma Psiquiátrica no Brasil.