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Institucionalização, desinstitucionalização e pleitos políticos

pela hanseníase

2 Institucionalização, desinstitucionalização e pleitos políticos

Desde finais do século XIX e mais intensamente a partir das primeiras décadas do século XX, a comunidade científica internacional tornaria a segregação e o isolamento dos doentes o modelo ideal de um suposto controle estatal do contágio da doença (GUSSOW, 1989; OBREGÓN-TORRES, 2012; BECHLER, 2011; MACIEL, 2007). Em sincronia com o cenário internacional, no início do século XX o Brasil colocaria em marcha o chamado Plano de Construções dos Leprosários. Essa política de segregação brasileira estava baseada num modelo-tripé, contando com a organização dos 1) leprosários (destinados a isolar os doentes), 2) dispensários (para onde eram encaminhados os chamados comunicantes, familiares e contatos próximos dos isolados que deveriam passar por exames médicos) e 3) preventórios ou educandários (para onde eram enviados os filhos dos internos, tanto aqueles que ainda eram crianças no momento da internação dos pais quanto aqueles que nasciam no interior das colônias). Pouco a pouco, os leprosários – atualmente conhecidos como ex-colônias hospitalares – iriam se espalhar por todo o país, chegando a 40 instituições nos anos 1950 (CURI, 2010).

O desmanche da política segregatória aconteceria paulatinamente a partir da metade do século XX. Durante o VII Congresso Internacional de Leprologia, ocorrido em Tóquio em 1958, as medidas de isolamento foram condenadas pela primeira vez na história daquele importante evento que vinha ocorrendo desde finais do século XIX (PANDYA, 2003). Considerada atualmente entre historiadores como um marco para as políticas de segregação, aquela recomendação pelo desmantelamento dos antigos leprosários e suas políticas de isolamento vinha embalada por uma multiplicidade de fatores, tais como o advento de novas tecnologias de pesquisa, novas possibilidades terapêuticas experimentadas desde finais da década de 1940, o alto custo da manutenção das colônias, a pressão internacional, entre outros.

No cenário brasileiro, as medidas de desinstitucionalização começariam a surgir a partir do final da década de 1960, tomando corpo apenas nos anos 1970. Novas normativas nacionais entraram em vigor, sendo reconhecida atualmente como a primeira delas o

Decreto no 968, de 1962, que atribuiu pela primeira vez o chamado “direito de movimentação” aos casos contagiantes da doença (BRASIL, 1962); até então, qualquer tipo de alta temporária estaria limitada àqueles casos considerados não contagiantes. Entretanto, foi apenas em 1976 que, através da Portaria no 165 do Ministério da Saúde, as políticas de isolamento foram legalmente suspensas no Brasil, dando lugar ao sistema ambulatorial de tratamento para todos os tipos clínicos da doença. Cabe notar que estou tratando aqui especificamente de marcos temporais que dizem respeito às normativas legais. Ao deixarmos de lado as legislações e passarmos aos relatos daqueles que viveram tais transformações, não é difícil notar como, na prática, a passagem do regime de isolamento para o ambulatorial aconteceu de forma progressiva, seletiva e diversificada por todo o país. A própria política reparatória de 2007 é um indicativo disso, dado que concedeu o direito à reparação àqueles que foram internados até 1986; ou seja, reconheceu que, na prática, o isolamento teria ocorrido até mesmo uma década depois da portaria de 1976 que extinguia as políticas segregacionistas.

O processo de desinstitucionalização aparece nos relatos de ex-internos como um período de tensões. Com exceção de algumas políticas estaduais que concediam auxílio transporte ou invalidez, a transição do sistema de isolamento para o sistema ambulatorial não teria sido acompanhada por políticas federais sistemáticas de amparo àqueles que eram então coagidos a começar uma vida inteiramente nova do lado de fora daquelas instituições. Tratava-se de deslocar os pacientes que estavam nessas instituições há anos ou décadas para fora das colônias – e, em certo sentido, também para fora de qualquer responsabilização desse mesmo Estado por essa transição. Conforme ficaria evidente a partir das minhas incursões a campo, muitos pacientes migrariam para os arredores das colônias, engajados em redes de ajuda mútua e, em alguns casos, contando com o apoio de comunidades religiosas ou algum auxílio por parte da administração da colônia, seja através da distribuição de cestas básicas ou da concessão de lotes de terras em seus arredores (de forma seletiva, informal e irregular).

Foi ainda em meio ao contexto de desinstitucionalização que, na década de 1980, o Movimento de Reintegração das Pessoas atingidas pela Hanseníase (Morhan) iria se estabelecer. As primeiras reuniões do grupo aconteceram na ex-colônia de Aymores, na cidade de Bauru, no interior do estado de São Paulo – instituição que abrigava um dos principais centros de pesquisa e reabilitação em hanseníase do país. Foi também nesse momento, meados dos anos 1980, que a Organização

Mundial da Saúde (OMS) anunciou uma nova e celebrada terapêutica: o tratamento por poliquimioterapia (PQT). Esse novo regime terapêutico, introduzido no Brasil apenas no início dos anos 1990, inaugurou um novo momento para as políticas nacionais fundamentado no slogan “a hanseníase tem cura”.1 Aos poucos, os membros do movimento, atuantes em redes mais amplas de engajamento político no contexto das novas terapêuticas e da reabertura democrática, ampliariam suas alianças por todo o país. O Morhan passaria de um pequeno grupo de colegas organizados em uma ex-colônia e centro de referência em atendimento à hanseníase em Bauru para um movimento de âmbito nacional, organizado em diferentes unidades estaduais, contando com uma diversidade de bandeiras em prol da saúde e dos direitos das pessoas atingidas pela hanseníase. Trinta anos após sua formação e num contexto inteiramente diferente, o movimento foi o principal responsável pela publicização das políticas de isolamento como um flagelo coletivo, contribuindo diretamente para o deslocamento do sentido desse capítulo da história brasileira do lugar de política de saúde para um crime de Estado (FONSECA; MARICATO, 2013). Sua grande vitória viria em 2007, com a aprovação da medida reparatória, chamada por muitos dos meus interlocutores como a “Lei do Lula”.

Ainda que não seja tema deste capítulo, vale também ressaltar que, com a aprovação da medida reparatória, o Morhan passaria a fortalecer um novo pleito: estender o direito à reparação estatal também à segunda geração de atingidos pela hanseníase, os chamados “filhos separados”. Agregando ativistas, voluntários, um grupo de geneticistas, a grande mídia, atores de alcance nacional e pesquisadores universitários, esse pleito ganharia força no cenário político. Sempre buscando novas alianças, em 2011 o Morhan assinaria um acordo de cooperação com o Instituto Nacional de Genética Médica Populacional (INaGeMP). Tal aliança, inspirada na empreitada das Abuelas de Plaza de Mayo da Argentina (PENCHASZADEH; SCHÜLER-FACCINI, 2014), buscava criar provas do vínculo de parentesco entre pais e filhos que tinham sido separados durante as políticas segregatórias. Vale notar, no entanto, que, diferentemente do caso argentino, os testes levados a cabo entre os filhos separados foram realizados de forma voluntária, e diversos daqueles sujeitos não tinham perdido o vínculo entre si. Parte dos filhos que foram separados mantiveram contato com aquele pai ou aquela mãe que tinha sido isolado(a), porém a maioria deles tinha sido registrada como

filhos biológicos pelos pais de criação (vizinhos, amigos e familiares que tomaram conta das crianças); tratava-se da chamada adoção à brasileira (FONSECA et al., 2015). Em outras palavras, parte daqueles sujeitos que solicitavam os testes de DNA estava em busca mais da produção de um documento de filiação que pudesse servir de prova da separação no futuro do que de uma confirmação do laço de parentesco. Ainda que em meados de 2013 o governo tenha anunciado que se tratava de uma questão de tempo para a implementação da medida, em dezembro de 2017, em meio a um cenário político totalmente diferente e visto com desesperança, os ativistas do Morhan seguiam pressionando e protocolaram na Justiça Federal uma ação civil pública em nome dos filhos separados, exigindo a reparação.

3 No interior da comissão e pelo interior do