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Acesso e controle de recursos

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RELAÇÕES DE GÊNERO NA LUTA PELA TERRA

5.3 Acesso e controle de recursos

Inicialmente é conveniente lembrar que estamos tratando de uma categoria de trabalhadores e trabalhadoras que, ao iniciar o processo de luta pela terra, não se encontrava em situação homogênea, especialmente no que diz respeito à condição material. Cada um e cada uma levaram para o acampamento o pouco que possuía ou, nada possuindo, levaram “os braços e a coragem para a luta”. Para fazer a discussão sobre o acesso e controle de recursos, há que se considerar não só estas especificidades que conferem diferentes trajetórias e diferentes acessos, como também umas das questões que é chave para nossa pesquisa que é a condição de gênero. A mulher vivencia mais um desafio específico, uma vez que a propriedade privada é, quase que por “tendência geral”, associada à dominação masculina, o que faz com que as mulheres que entram na luta pela terra, tornem-se atentas cotidianamente tanto no espaço público quanto no espaço privado, às novas relações que provavelmente serão criadas para que se garantam o acesso e o controle aos recursos direcionados para a reforma agrária ou programas similares. Sua atuação nos STRs ou nas associações de pequenos produtores rurais deve se orientar no sentido de trabalhar para conquistar mudanças nas relações de gênero.

Já no acampamento as pessoas chegavam em condições de acesso a recursos de forma diferenciada

“Estávamos no acampamento. Algumas pessoas tinham lona, outras não tinham, eram

umas barracas de pau a pique” (Mariana, setembro de 2004).

Dentro do assentamento há grupos e ou pessoas, individualmente, com acessos diferenciados a recursos.

“Aqui tem um grupo de cinco pessoas que tem um bujão e que trabalha já com

inseminação artificial” (Lúcia, setembro de 2004).

O fato de, neste assentamento, as lideranças femininas atuais originarem-se de um processo de luta política pela terra que já dura mais de 17 anos, faz com que as mulheres não tenham “trânsito limitado” nos espaços de decisão, conforme sugere a literatura, já que a maior parte das negociações é realizada pelas mulheres, a não ser quando se trata de temas mais estruturais para os quais também os homens não têm acesso. Isso significa que uma série de conquistas para os jovens e para as mulheres só foi obtida pela conquista das mulheres atuando como dirigentes. De fato, assumir o cargo de dirigente, hoje, em um STR ou em uma associação de pequenos produtores rurais, exige uma perspectiva política que combine tarefas administrativas, de aglutinação, de mobilização e de organização política (Cappelin, 1989).

“Por exemplo, os direitos da luta pela terra, tem que se considerar o direito do

homem à terra e o direito da mulher. Aqui vieram mulheres e as mulheres, pegaram o contrato da terra, são as proprietárias. Se não é uma luta articulada, as mulheres

teriam dificuldade, não poderiam pegar o contrato e a gente depois iria ter outra luta. Então, a gente já veio trabalhando as questões juntas e amadurecendo as idéias juntas. Os jovens são outro exemplo. Aqui teve jovem que pegou o contrato e foi beneficiado. Graças a gente conseguir trabalhar isto, para brigar com o Incra, com os órgãos do governo, que as pessoas precisam ter o direito, independente da situação dele ou dela na família” (Fátima, setembro de 2004).

Mais dois exemplos podem ser destacados

“A própria Fátima, atual presidente do STR de Natalândia que veio na frente, o

marido dela veio depois, e na hora do contrato do assentamento, ficou no nome dele. E eu também tive dificuldades, na época de conseguir o contrato do assentamento. Teve um grupo que queria que fosse para o meu pai. Eu que tinha vindo, participado, brigado, aí teve pessoas que diziam: ‘ tem que ficar com o pai da Lúcia, não para ela’ e eu tive, é claro, apoio da maioria, onde discutiram e me ajudaram a garantir que eu pegasse. E aí, uma das alegações é que eu era jovem, era solteira, como se eu não precisasse da terra. Quer dizer, no dia-a-dia, a coisa se complica e a gente passa por dificuldades. Teve outra que era viúva e que teve dificuldade para fazer o contrato. Depois, a Fátima teve problemas de querer pegar o crédito e não pode pegar o Pronaf, pois o contrato estava no nome do marido, o marido não quis fazer e o Banco não aceitou que ela fizesse. No dia-a-dia, a gente ainda está enfrentando coisas assim” (Lúcia, setembro de 2004).

Outra especificidade do Assentamento Saco do Rio Preto é que, enquanto a tendência geral é a de que as associações dos assentamentos sejam semelhantes quanto à composição e ao funcionamento: sempre os homens tomam as decisões e as mulheres são recolocadas numa posição de subordinação vivida no período anterior ao do acampamento, abandonando-se inclusive os ideais de solidariedade, confiança e de sentimento coletivo para o conjunto das relações, no caso investigado, a primeira associação criada foi presidida por uma mulher que permaneceu no cargo durante dois mandatos. A criação de uma organização formal abriu portas para garantir alguns acessos e possibilitou uma experiência de novas relações político- administrativas entre assentados e assentadas e a presidente, já que era uma novidade para todo mundo: para o poder público, para algumas ONGs, para a maioria das mulheres e para a maioria dos homens.

“Na época que nós criamos a associação, nem a visita do Incra nós não tínhamos

recebido oficialmente. Foi a partir daí que nós começamos a procurar o Incra e começou a ter as visitas. As primeiras atividades aqui foram a questão de abertura de estradas. Outra questão também foi que saiu o Procera56 coletivo e nós compramos maquinário, trator e implementos e aí nós começamos a sonhar de ter a casinha, de ter as estradas arrumadas e foi construído também os grupos escolares, porque antes as aulas nossas eram nos ranchos de palha e aí nós começamos por aí também. Aí foram construídos dois grupos escolares: um de cá e outro de lá do Cutuvelo” (Ivete, 50 anos, setembro de 2004).

Mais um desafio das dirigentes atuais é o de estarem bem informadas sobre a legislação, conforme relata a Presidente da Associação, o que pode viabilizar melhor acesso e controle de recursos.

“Tem uma modificação na lei que naquela época o homem fazia o que quisesse com o

crédito, sem nem consultar a mulher e hoje não, se a mulher não quiser, ele não pega sozinho. Ele depende de fazer um acordo com a mulher, depende de documento dela. Então, essa já foi uma mudança no novo governo, como conquista dos movimentos sociais, que antes não era assim. A dívida hoje é solidária” (Lúcia, 36 anos, Presidente da Associação de Pequenos Produtores do Assentamento).

Para conquistar o direito de ter acesso a recursos públicos para o assentamento, as mulheres, como dirigentes, necessitam, na prática, de lutarem para serem reconhecidas pelo governo como sujeitos políticos de direito, pelo mercado como agentes produtivas e consumidoras, pela política como sujeitos transformadores e pela família, embora com resistências, como indivíduos autônomos. Isso significa enfrentar relações de poder instituídas e classificadas segundo normas patriarcais, funcionando no espaço público, no qual há uma tendência geral de que a prerrogativa sobre o acesso e controle de recursos seja dos homens. Os depoimentos a seguir diferenciam as concepções da dirigente sobre STR, associação e suas relações com as diferentes instâncias do poder público.

“Acho que o poder público tem um certo respeito para com as mulheres dirigentes,

mas eu tenho uma outra avaliação. Eu vejo que as autoridades municipais, principalmente, pra eles, a associação é uma coisa muito importante, o (a) presidente

é uma autoridade. Eu sinto que eles valorizam muito, mas não sei se é a forma correta, porque para eles é como se a associação fosse muito poderosa. Eu sinto que eles sentem que a associação tem mais poder do que o sindicato, enquanto eu acho que deveria ser o contrário. O sindicato, pra mim, ele é mais importante que as associações. Mas, para os prefeitos, por exemplo, vereadores, até quando eles fazem a relação direta em vez de sentar com o sindicato, e vai direto na associação, aí, eu sinto isso, eles tão achando que as associações, talvez pelo fato de que a associação é um lugar no assentamento que vem dinheiro, então, talvez eles pensem muito com essa lógica de que ali é um lugar que está trazendo recursos diretamente pro município. No entanto, para mim, o sindicato também ajuda a trazer recursos indiretamente. Eles lutam pra vir os recursos para o município” (Lúcia, setembro de 2004).

“Na verdade, a gente não pode ficar na luta só por resultados, como normalmente acontece na Associação, na questão da cidadania das pessoas, na questão da discriminação. O sindicato tem um papel muito mais forte do que a associação, pois atua no longo prazo. Porque as associações, na visão maior do povo e de uma parcela significativa do poder público, são pra buscar dinheiro lá no Banco; associação é pra ir atrás do INCRA pra resolver tal coisa; associação é pra conseguir que eu regularize meu lote aqui, etc. É uma visão muito materialista da associação. Agora, em relação ao INCRA, na verdade, eu sinto, hoje, que o sindicato tem mais força do que a associação, é o inverso. O INCRA tem mais respeito pelo sindicato, mais receio, pelo sindicato do que pela Associação. Porque a gente cobra, cobra enquanto associação, para o INCRA e você não vê resultado. Se você não for junto com o sindicato, com a Federação, você não consegue ter acesso às coisas no INCRA” (Lúcia, setembro de 2004).

A mudança de categoria de sem terra para proprietário da terra, no assentamento, trouxe também possibilidades individuais de acesso e controle de recursos produtivos ao quais, talvez, antes do assentamento, não se tivesse acesso. Embora este não seja diretamente

o foco de estudo da pesquisa, também representa uma informação relevante a ser destacada, pois revela a vital importância de um Programa de Reforma Agrária, no Brasil, ainda que demande ampla gama de reflexões, não pretendidas neste estudo.

“Eu acho que valeu muito a pena ter vindo para o assentamento e gostei muito e eu

gosto muito mais lá da minha roça do que daqui da agrovila. Eu tenho um motor, tenho um desintegrador lá, estou fazendo ração e tratando do gado. Eu gosto muito da lida no campo. Eu tenho umas dez vacas que são minhas mesmo, pois eu tenho mais gado, mas é na meia. Porco deve ter quase umas vinte cabeças de porco. O leite estava a cinqüenta e quatro centavos o litro, só que este mês deu uma caidinha. O caminhão da Cooperativa de Unaí pega o leite todo dia sim e dia não e com o tanque resfriando não tem problema de estragar” (Seu Dionísio, setembro de 2004).

A atuação das mulheres como dirigentes tem viabilizado recursos para algumas atividades coletivas no espaço da produção para homens e mulheres.

“O tanque de leite é das famílias e foi a associação que conquistou e é presidida por

uma mulher. E elas também têm um grupo de mulheres que fabricam doces com frutos do cerrado e estão em outras atividades. Aqui, as mulheres estão sempre à frente”

(Luíza, setembro de 2004).

O depoimento de uma assentada que atualmente participa como tesoureira do STR de Bonfinópolis, demonstra como a prática política, que pode empoderar ou não, deve ser acompanhada de perto e, para alcance deste objetivo, há que se ficar atenta ao funcionamento das relações de poder para que se possa compreender como organizar formas de conquistar acesso e controle de recursos, neste caso específico, a informação.

“Eu fui associada logo no início e em noventa e oito eu fiz parte na diretoria a

primeira vez. Fui vice-tesoureira, depois secretária e agora sou tesoureira. Aí foram três mandatos seguidos, sempre. Só que na primeira e na segunda gestão, eu não tive, assim, muito acesso. Agora é que tô tendo mais acesso aqui. Por isso é que digo que essa diretoria de agora é mais transparente. Todo mundo participa mais” (Raimunda, tesoureira do STR de Bonfinópolis, setembro de 2004).

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