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Processo de tomada de decisão

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RELAÇÕES DE GÊNERO NA LUTA PELA TERRA

5.2 Processo de tomada de decisão

O processo de tomada de decisão, tanto no espaço público quanto no espaço privado, vincula-se, normalmente, à posição privilegiada desfrutada pelo homem sob o patriarcado,

pois se relaciona diretamente com as relações de poder. À medida que as mulheres passam a conquistar seus processos de empoderamento individuais e coletivos, passa a ocorrer uma mudança na tradicional dominação da mulher pelo homem seja com relação ao controle de suas opções de vida, seus bens, suas opiniões, ou sua sexualidade e sua participação nas decisões vão ganhando fôlego.

Convém lembrar que estas pessoas, em sua maioria, eram originárias de municípios próximos tendo, mesmo assim, que se deslocarem para participar das reuniões de mobilização do STR de Bonfinópolis. Naquela época, estas pessoas trabalhavam de bóias frias, meeiros e meeiras, trabalhadores da construção civil e empregadas domésticas, entre outras profissões. As decisões não eram tomadas individualmente, sem antes conversar com um vizinho, um parente, um amigo ou amiga, a esposa ou o marido e o companheiro ou companheira de reunião. Tudo era preciso ser organizado com muito cuidado: transporte, alimentação, o local para dormir, quando necessário e o dinheiro praticamente não existia, nem no âmbito individual nem no coletivo. Um espaço à parte fica reservado para as mulheres que, para tomarem a decisão de participar de uma luta no espaço público, levavam ainda consigo todo o peso e o compromisso pelo espaço privado: ter filhos pequenos ou em idade escolar, ou ainda na barriga, com todos os cuidados que uma criança e uma gestante têm direito; sair cedo, levar comida pronta, chegar tarde e encontrar a casa e cozinha por arrumar, roupa suja por lavar e muita coragem para continuar na luta. Neste processo de luta pela terra, os depoimentos revelam como esta mudança é complexa e envolve imbricações finas entre os âmbitos público e privado. Trata-se de uma situação com reflexos em vários espaços, que vão desde a educação dos filhos e filhas, ao direito de ir a um ginecologista, por exemplo, e ganha dimensões de diferentes naturezas no espaço público durante o processo de mobilização, de ocupação, durante o acampamento, chegando a influenciar até as relações de lazer.

“A participação das mulheres foi muito boa e vieram famílias inteiras para a ocupação. Outras vieram sozinhas e os maridos não vieram. Tem o meu caso, o de uma outra colega. Eu tomei a decisão e vim com dois filhos, um de dez e outro de oito anos e larguei meu marido para trás” (Fátima, setembro de 2004).

No acampamento, as decisões eram mais coletivas, passando sempre pela conquista de espaço decisório pelas mulheres que, já estando passando pelas discussões sobre a discriminação de gênero, já tinham iniciado seus processos de empoderamento

“No acampamento. a gente tirou comissões para coordenar e a gente colocava

homens e mulheres nas comissões, comissões de coordenar o acampamento. E nas decisões, a gente conseguia fazer com que as mulheres falassem também, embora ainda era a minoria, pois vários homens não trouxeram as mulheres, outras mulheres vieram sem os homens. Então, no início do acampamento, as mulheres eram a minoria. Mas tinham lideranças homens e mulheres e tomavam as decisões em conjunto. A gente sofria dificuldades. Às vezes mais eram os homens e eles queriam impor mais as idéias deles, mas, como as coisas eram muito pesadas, foi muito complicado. Aí, muitas vezes, os homens nos momentos complicados deixavam que as mulheres fossem na frente, por causa de medo. Homem é medroso e, às vezes, não quer aparecer muito” (Fátima, setembro de 2004).

A tomada de decisão no espaço doméstico se depara com o poder exercido pelo homem por meio de diferentes tipos de violência. As mulheres afirmam que enfrentar o poder

masculino fora de casa é mais fácil, mas dentro é mais complicado em função de uma série de questões, entre elas da posição privilegiada ocupada pelos homens no patriarcado

“É, eu não tenho nenhuma dúvida que do lado de fora, se ele discrimina você, você

denuncia ele, você grita e ele fica com vergonha. Em casa é mais difícil, é mais difícil você denunciar o pai, o marido, o irmão é muito mais difícil. A autoridade lá fora você denuncia, abre a boca e grita num ponto em que ele fica com vergonha. Na família é muito mais difícil. Basta que tem a questão da violência, infelizmente tem aqui no assentamento. Nem todas conseguem denunciar lá fora. Aqui tem violência de bater na mulher, de ameaçar. Tem homem que não deixa a mulher fazer exame

ginecológico, de prevenção, a gente conhece este caso, é ameaça psicológica e também espancamento mesmo. Isso nós ainda não demos conta de mudar muito, embora a gente trabalhe esta questão da violência, mas é difícil e não deu muito resultado ainda não” (Lúcia, setembro de 2004).

Embora as mulheres já tenham passado pelo processo de empoderamento coletivo, tenham se tornado lideranças locais, estaduais e até nacionais, e contribuído para o empoderamento de outras mulheres, ao se depararem com a necessidade de tomarem decisões individuais, do tipo lutar por “pensão alimentícia” vinculadas a um poder próprio, ou poder “de dentro”, vivem um processo de tensão e, inclusive, por um longo período não conseguem lutar por um direito que lhe é devido.

“Tem uma outra questão que não é só aqui, que é a questão das mães independentes,

que sofrem também porque é a maior dificuldade a questão do pai ajudar e dar pensão. E as mulheres têm dificuldade de entrar com o pedido de pensão, além de já ser humilhante para você ter que correr atrás, você ter que mandar o juiz dizer para o pai que ele tem que ajudar a dar comida e você, às vezes, não tem acesso ao advogado, ao atendimento. As mulheres ainda sofrem muito com isso. Às vezes, quando ela vai, o homem já foi na frente e já conseguiu apoio. E aqui tem muitas mães solteiras passando dificuldade” (Lúcia, setembro de 2004).

Embora talvez não fosse necessário que isso acontecesse, a literatura aponta para alguns exemplos em que a participação das mulheres nos movimentos sociais provoca nelas reflexões e mudanças de comportamento que são levadas para o interior das relações domésticas, muitas vezes provocando rupturas diante de tantos novos valores que passam a ser agregados à educação dos filhos e filhas, às discussões com o marido e de fato ao novo posicionamento da mulher diante da vida. O processo de tomada de decisões passa por outras bases e a mulher, ao se sentir com mais poder, enfrenta o poder patriarcal do marido.

“Acho que a separação do meu casamento, não foi só a minha participação no

movimento que provocou. Já era uma coisa de antes, não foi um casamento muito decidido na minha cabeça e acabei preenchendo aquela falta que existia, com o movimento. Com isso, ele não aceitou e decidimos nos separar. Foi uma coisa que eu participei para disfarçar, mas não disfarçou e acabou despertando as coisas que a gente não sabia de que forma que reagia. E despertei a forma de reagir e agi de uma forma que eu não tenho arrependimento. Foi amigável. Até hoje não quero decidir uma separação na justiça e, para mim, do jeito que tá está bom. Tem alguns probleminhas que me prejudicam porque a terra é no nome dele, o contrato do assentamento tá em nome dele e, na hora de fazer projeto, eu dependo dele para

assinar nos projetos. Mas, para mim, o sossego, a paz da separação, é tranqüilo” (Fátima, setembro de 2004).

A expressão “dar a franga” significa a impossibilidade de tomar a decisão no espaço de lazer, quando as mulheres do Assentamento são bastante reprimidas. O depoimento procura evidenciar que esta postura passa também pela educação dos filhos e filhas.

“Acho que a educação dos filhos também é difícil porque, quando a mãe quer corrigir

o filho e ensinar a respeitar as mulheres, os pais acham que não é por ali do jeito que a mãe quer, tem que ser do jeito que ele aprendeu e do jeito que ele quer. Comigo, que sou mãe solteira nas coisas de casa, eu fico tentando falar com o de sete anos, que já dá conta de entender, que o serviço doméstico é para todo mundo. Ensinando a lavar roupa, vasilha, varrer uma casa, eu vou ensinando para ele que isto não é coisa só de mulher, é de todo ser humano. Mas eu percebo que para quem é o casal, tem um limite maior ainda. Até no meu caso, com o próprio avô que convive mais de perto com os meus filhos, ele está ensinando de um jeito e eu de outro e as escolas ainda reproduzem a questão de o homem ter mais valor que as mulheres. A mulher é mais chamada atenção em tudo, até na própria escola, as meninas são mais recriminadas como se fosse assim: os homens podem tudo, as meninas podem quase nada e isto ainda é muito forte. Um exemplo típico na roça é a dança. Nós temos a tradição de dançar o forró, então, existe uma tradição que as mulheres são obrigadas a dançar com todos os homens que chamarem. O homem escolhe a dançadeira, vai lá e chama a que ele quer. Agora, a mulher não pode recusar a dançar com o homem que chamar, senão está dando a franga e tem homem que ameaça até de morte se você recusar uma dança. A mulher tem que dançar com todos. É uma pequena coisa mais é forte, porque ela é repressiva. Tem mulher que tem medo de ir à festa sozinha”

(Fátima e Lúcia, setembro de 2004)

Uma assentada nos dá seu depoimento sobre a natureza das decisões que podem ser tomadas pelas mulheres, no espaço produtivo, querendo afirmar que, mesmo aos 73 anos e sendo mulher, não está impedida de atuar no espaço da produção

“Tem muitas coisas que a mulher não faz diretamente, ela não pega com a mão e faz, mas ela administra. Eu mesma, aqui, faço minhas coisas com administração. Eu faço uns ‘engondo’ aí. Eu pago um menino pra juntar o esterco do curral todo ano. Como se diz, não fui eu quem fiz, mas eu administrei. E eu paguei pra fazer uma casinha ali, pra fazer um galinheiro pra mim criar uns pinto. Não fui eu que fiz, mas eu tomei a decisão e administrei. Eu acho que se a gente tem administração, eu acho que está bem” (D.Severina, 73 anos, setembro de 2004).

Um dos diretores do STR de Bonfinópolis relembra situações em que as mulheres tomaram a frente nas decisões, em dois assentamentos: Mamoneiras e Saco do Rio Preto, refletindo processos de empoderamento já interferindo em seus comportamentos

“Eu me lembro bem que uma vez, de tanto nesta questão de idas e incertezas, eu fui lá no assentamento de Nova Mamoneiras e o pessoal estava assim, totalmente descrente, falou que, provavelmente, eles iam desistir mesmo, que ia embora. Aí tinha um grupo de mulheres, que falou: ‘não, daqui nós não vamos sair mesmo. Nós vamos lutar firme e nós não vamos ser despejadas’. Chegou num ponto que foram as mulheres que falaram assim: ‘nós vamos ficar aqui, vamos resistir até se for preciso.. morrer... mais

nós num vamos sair não’. Então, assim, transmitia uma segurança muito grande, até pras pessoas que estavam desanimadas e para os homens. Neste dia eu percebi que realmente a força estava nas mulheres. Eram elas que estavam decidindo, elas tinham mais força que os homens. Os homens já estavam, assim, praticamente desistindo.

Tem até umas fotos, o pessoal de cabeça baixa, preocupado” (José Raimundo, setembro de 2004).

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