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O Assentamento: trajetória e situação atual

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DIFERENTES ATUAÇÕES NA RELAÇÃO COM A TERRA: O ESTADO, A MEDIAÇÃO E OS MOVIMENTOS SOCIAIS

4.4 O Assentamento: trajetória e situação atual

O Assentamento Saco do Rio Preto possui uma área de 2.603 hectares, distribuídos por 68 famílias, sendo duas não cadastradas e consideradas invasoras dos lotes. Cada família possui, em média, 38 hectares.

Pertence ao município de Natalândia, que foi emancipado de Bonfinópolis de Minas em 21/12/1995, estando situado na região Noroeste de Minas Gerais, na microrregião de Unaí, pertencente à Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE). A sede do município de Natalândia dista 588 km de Belo Horizonte, possuindo uma população de 2.986 habitantes, sendo 2.167 da área urbana e 819 da área rural.

Os principais mercados potenciais e pólos regionais são: Unaí, distante 90 km da sede do município, pela estrada estadual e da BR-251, e Brasília-DF, distante 155 km, alcançada pela BR-251, após Unaí. Outras cidades importantes são: Bonfinópolis de Minas, onde se situa a rede bancária que presta os serviços de crédito rural, distante 93 km da sede por estradas vicinais; Paracatu, distante 140 km e João Pinheiro. O PA Saco do Rio Preto dista 23 km ao sul da sede do município de Natalândia.

51 Dados obtidos no Plano de Consolidação dos Assentamentos (PCA) do PA Saco do Rio Preto de Natalândia, MG, elaborado pelo INCRA por meio do Programa de Consolidação e Emancipação (auto-

suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária. Montes Claros, janeiro de 2004 e por meio de entrevistas realizadas no assentamento, em setembro de 2003.

A economia do município de Natalândia é baseada, predominantemente, na pecuária de corte e na pecuária leiteira. O município tem pouca expressão agrícola e a maioria das unidades produtivas é menor que 10 hectares e cultivadas para subsistência. Esta situação contrasta com a de Unaí e Bonfinópolis, que possuem grandes áreas de soja, milho e feijão.

O modelo de exploração agrícola dos municípios vizinhos tem afetado os assentamentos e as pequenas propriedades da região, por meio do desequilíbrio ecológico causado pelas grandes monoculturas. Existem sérios problemas com pragas e microrganismos resistentes a defensivos agrícolas, que chegam a inviabilizar a produção de feijão, cultura importante no contexto da agricultura familiar.

Natalândia possui uma condição fundiária peculiar, havendo um terço de sua área, ocupada por um latifúndio representado pela Fazenda Mamoneiras com, aproximadamente, 18.000 hectares e especialização em pecuária de corte com 15.000 cabeças. Alem dessa grande propriedade, existe mais uma, de 2.400 hectares, mais duas em torno de 1.000 hectares, os três assentamentos, com áreas entre 1.600 e 2.600 hectares e o restante das propriedades pequenas. com áreas menores que 100 hectares, sendo a maioria destas de tamanho maior ou igual a 10 hectares.

Os assentamentos têm grande importância na economia e na vida social do município, considerando a extensão das áreas e a população.

As principais culturas são: milho mandioca e arroz, havendo como culturas secundárias àquelas do tipo anual, quando se produz em pequena escala o feijão e o sorgo, que é utilizado para silagem. Também como secundárias, porém cultivadas em ‘quintais’ em áreas pequenas, têm-se café e hortaliças, como abóbora, alface, alho, beterraba, cebola, cenoura, maxixe, mostarda, quiabo, repolho, tomate e frutíferas, como abacaxi, acerola, banana, goiaba e manga. Esta produção é importante no sentido de assegurar a segurança alimentar e de aproveitar a mão-de-obra feminina, dos jovens e das crianças. A limitação para expansão do cultivo dos ‘quintais’ é a falta de água para irrigação.

A fazenda que foi desapropriada para a implantação do assentamento era de propriedade da Empresa Charonel, cujo proprietário era Herbert Lev, que exerceu as funções de deputado federal e ministro de estado. A empresa desmatava o cerrado e produzia carvão vegetal para alimentar algumas das usinas da siderurgia brasileira.

Apesar de estarem próximos ao entorno de Brasília, onde a ação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) é contínua e intensa, o processo de mobilização e ocupação da terra não contou com a presença de lideranças deste movimento.

Os primeiros passos para a conquista do assentamento foram dados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bonfinópolis, que fazia reuniões e convites para a ocupação. Em cada região, ocorriam reuniões semanais para organizar os grupos e já se imaginava uma divisão de trabalho, na qual as mulheres trabalhariam na horta beirando o rio e os homens fariam as roças. Durante o acampamento, estes papéis acabaram se misturando.

Por meio de diversas entidades de representação e com um processo de mobilização com reuniões, com identificação e com o levantamento do número de famílias que poderiam participar da ocupação, o dia e a hora já iam sendo programados.

A preparação da ocupação foi constituída por várias fases e, a todo o momento, trabalhadores e trabalhadoras ficavam se preparando em como reagir com a polícia que, no fim, acabou descobrindo os planos de ocupação e o grupo teve que organizar vários ‘blefes’ sobre possíveis datas diferentes para enganar os policiais. Nesta fase, as atividades eram planejadas cuidadosamente.

Na véspera da ocupação, segundo relato dos assentados e assentadas, ninguém dormiu a noite toda, passando todo o tempo cortando pau e com as lamparinas acesas. Era muito animado e ninguém parecia ter medo de nada. Durante a ocupação, quando a polícia chegou e cercou a estrada, as mulheres e as crianças foram as que enfrentaram na frente, e sem medo.

Aconteceram muitas ameaças às lideranças, que eram protegidas pelos assentados e assentadas sob a afirmação de que “não existiam líderes” (assentado, setembro de 2003). Houve até uma reunião que, do meio dos trabalhos para frente, virou reza, pois algumas pessoas chegaram de repente, procurando lideranças.

Em 15 de julho de 1989, às cinco horas da manhã, conforme relato dos moradores, as famílias ocuparam a fazenda. Esta ocupação contou com o apoio da CUT, Contag, Fetaemg e do STR de Bonfinópolis. “Foi um período difícil de fome e frio” (Assentado, setembro de 2003). As pessoas vieram dos municípios de Dom Bosco, Brasilândia, Bonfinópolis de Minas, Bambus e São Romão.

Como estratégia de reação, o proprietário da fazenda acionou a justiça para despejar os “invasores” que foram intimados a depor no Fórum de João Pinheiro. Veio a ação de despejo e os acampados resistiram bloqueando uma estrada principal. Essa pressão das famílias levou à suspensão da ação de despejo. A empresa continuou intimidando verbalmente para infiltrar o medo, o desânimo e a abordagem individual na tentativa de convencê-los a desistirem da luta.

Enquanto permanecia o conflito pela terra, durante os seis anos em que permaneceram no acampamento (1989-1985), segundo assentados e assentadas, todo mundo parecia estar mais unido, havendo depois, no assentamento, certa dispersão. Muito serviço no acampamento era feito por homem e por mulher, como, por exemplo, as lavouras coletivas e as filas de gente para pegar água. Estas atividades eram consideradas trabalho para a família toda, sem a rigidez de papéis masculinos e femininos.

Em 1990, a área foi dividida pelos próprios acampados e acampadas, com a utilização de corda para demarcação, o que resultou em 65 lotes, a área coletiva, a área destinada à agrovila e a reserva legal.

Nesta mesma época, conseguiu-se, junto à Secretaria Municipal de Educação, a instalação na fazenda de uma escola multisseriada para as crianças acampadas. Iniciaram também a construção das “casas de pau-a-pique” nos lotes. Neste ano, ainda, foi instalada a Delegacia do STR de Bonfinópolis no assentamento.

No período de 1991 a 1995, vários apoios foram conseguidos e de diferentes naturezas: do FUNDAJU, Fundo de Ajuda ligado à Igreja Católica; apoio para pagar as despesas com o transporte de palhas para a construção dos barracos de pau-a-pique; do CERIS, do Rio de Janeiro, apoio para fazer hortas comunitárias e criação de pequenos

animais, produziam pouco leite e existia uma linha de leite. A Cáritas Diocesana de Paracatu ajudou-os na canalização da água até a agrovila, o CESE , de Salvador, financiou a fabriqueta de farinha e rapadura e o frei Humberto, de Bonfinópolis, ajudou-os na aquisição de máquina de beneficiamento de arroz e nos serviços de tratores com grade.

Em 1993, foi criada a Associação de Pequenos Produtores do Assentamento e somente em 08/12/1995 houve a negociação da terra e a criação do Programa de Assentamento pelo INCRA.

Já em 1996, o INCRA fez o parcelamento oficial dos lotes, respeitando a primeira divisão realizada por acampados e acampadas. Assinou-se o contrato de Assentamento e foi liberado o Crédito Habitação. No processo de construção das casas, primeiro fez-se a compra coletiva do material, porém, a construção foi feita individualmente. O recurso não foi suficiente para construir a casa planejada pelo INCRA, mas, todos conseguiram fazer uma construção mínima, segundo suas possibilidades.

Ainda em 1996, foram liberados recursos do PROCERA e adquiriu-se um trator para o uso coletivo, além de dar início à abertura das estradas.

Em 1997, foi criado o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Natalândia, o que representou o fortalecimento e a ampliação de entidades parceiras do assentamento. Uma assentada foi eleita presidente do STR e o assentamento sentiu-se fortalecido com a representação.

No ano de 2000, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) começou a desenvolver o Programa Nacional de Educação em Áreas de Reforma Agrária, o PRONERA, vinculado ao INCRA, para ações educativas para jovens e adultos do assentamento.

Em 2001, teve início a mobilização com o trabalho com idosos, que também envolve adultos e jovens.

Em 2002, teve início, no campo de geração de renda, o trabalho do grupo de mulheres na produção de doces e licores com frutos do cerrado, dando origem à marca “Sabores do Cerrado”.

Em 2003, o assentamento foi selecionado para desenvolver a proposta de Consolidação, que é implantada por meio de um convênio do INCRA com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID, para desenvolver ações diversas.

De modo geral, os problemas de saúde no assentamento são atendidos, principalmente, por um agente do Programa de Saúde da Família, do município de Natalândia. As principais doenças detectadas são a hipertensão, o alcoolismo e a doença de chagas.

Quanto à situação de eletrificação, somente seis famílias possuem energia elétrica em suas casas, viabilizada com recursos próprios.

No que diz respeito à condição de saneamento é bastante precária, pois 67% das casas não têm banheiro.

O assentamento está localizado em uma região de fronteira entre dois municípios: Natalândia e Dom Bosco, com presença e apoio constantes da administração atual de Natalândia, o que não acontece com a administração de Dom Bosco, especialmente na execução de políticas sociais básicas, como educação e saúde. A escola localizada na área pertencente ao município de Dom Bosco não funciona, o que contribui para a insatisfação das famílias assentadas nesta parte do assentamento.

Quanto à organização interna dos assentados, existem duas associações. Uma delas é a que envolve assentados e assentadas do município de Dom Bosco, criada recentemente sob influência política da prefeitura, sob o argumento de alocar recursos para o Programa de Assentamento (PA), que apresenta um baixo índice de participação e cuja documentação fica com a prefeitura52. Os associados e associadas só se reúnem quando existem solicitações e interesses da prefeitura, desconhecem o estatuto e não têm conhecimento da existência de um regimento interno. Essa relação de ingerência com a prefeitura demonstra fragilidade na gestão da associação.

Por outro lado, a Associação que envolve assentados e assentadas que estão em áreas do município de Natalândia é totalmente autônoma e a direção se reúne semanalmente. Existe assembléia ordinária a cada dois meses, com grande participação dos assentados, principalmente das mulheres, verificando-se, no entanto, pequena participação dos jovens. Há o cumprimento e o conhecimento do estatuto, mas, não existe, ainda, regimento interno.

Quanto aos movimentos organizados no assentamento, além das duas associações, existem ainda outras organizações internas, como o Grupo de Idosos, o Grupo de Doces (ou também conhecido como grupo de mulheres)53, o Grupo de Jovens, o Movimento da Igreja Católica, o STR, o Coletivo de Educação, o Grupo da Serraria, o Grupo da Fábrica de Farinha e o Grupo do Leite54. Estes grupos funcionam independentemente do pertencimento à Associação, ainda que alguns deles, historicamente, tenham sido criados em função de discussões apoiadas por ela.

Existe também o coletivo de Educação, formado pela Associação Escola Família Agrícola do Município de Natalândia (AEFAN), coordenado por uma mulher, que é uma iniciativa que articula a associação de Natalândia e o STR de Natalândia, também envolvendo pessoas dos demais grupos. Um dos seus objetivos principais é criar a Escola Família Agrícola no Assentamento, cuja demanda estimada é de 70 alunos para o ensino médio, atendendo também aos assentamentos de Mangal e Mamoneiras. Essa iniciativa conta com o apoio de vereadores e da Secretaria Municipal de Educação e será apresentada nos itens seguintes desta Tese, pois trata-se de uma reivindicação antiga de assentados e assentadas.

52 Esta Associação existe só ‘no papel’ e pertence ao município de D. Bosco, que também tem áreas do

assentamento. Durante o texto, quando mencionarmos a palavra Associação, estaremos nos referindo à Associação de Pequenos Produtores de Natalândia que, de fato, representa o assentamento e tem legitimidade para assentados e assentadas.

53 Vincula-se a origem do grupo a uma sugestão de técnicos (as) do Projeto Lumiar sobre aproveitamento de

frutos do cerrado, que foi, posteriormente, aprofundada em uma discussão em um seminário municipal com a participação do STR de Natalândia, do STR de Bonfinópolis, da Associação, da Emater, da Prefeitura, do Incra e de vários assentados e assentadas. Em seguida, contatos foram mantidos com o Centro de Pesquisa Agropecuária do Cerrado (CPAC), da Embrapa, quando se viabilizou um curso específico sobre a questão. A produção ainda é pequena e trabalha-se sob encomendas, com doces de manga, mangaba, goiaba, araticum, acerola, pequi e tamarindo e com geléias de goiaba, mangaba, tamarindo e jatobá. A comercialização também acontece nos encontros estaduais de assentados e assentadas e tem se conseguido apoio da EMATER e da Cáritas de Paracatu, embora haja bastante dificuldade em ter acesso a mercados maiores.

A Associação de Natalândia, inserida nesta trama de relações sociais, tem procurado coordenar as ações do assentamento, o que, às vezes, não consegue, pela existência de limites estruturais, como, por exemplo, agilizar a solução de problemas ligados à produção e à comercialização.

A direção atual da Associação de Pequenos Produtores do Assentamento, que assumiu em janeiro de 2003, tem procurado “revitalizar” o assentamento, trabalhando com demandas no campo de produção e da reprodução. A diretoria tem realizado esforços para se reunir com os diferentes grupos, para sanear as contas da associação, para apoiar outros acampamentos, para agilizar o funcionamento de um trator e implementos agrícolas parados há dois anos, para fortalecer o Pronera, para contribuir para o melhor acesso ao Pronaf, para conseguir implantar a Escola Família Agrícola e para adquirir coletivamente um tanque de resfriamento de leite, entre outras questões.

Nos depoimentos da presidente da Associação, um desafio colocado permanentemente é a “dificuldade para trabalhar as diferenças”. Há quem se aproxime mais da prefeitura ou não, há quem seja mais próximo(a) do Partido dos Trabalhadores ou de outros partidos e os mais distantes, há ainda os mais imediatistas e também aqueles mais dispostos a contribuir com a coletividade e que pensam mais a longo prazo. “Articular diferenças é, hoje, nosso

principal desafio. No tempo da ocupação, a luta era pela reforma agrária e, mesmo que fosse abstrata, todo mundo estava unido. Hoje, já com o lote e com demandas concretas, o coletivo toma outros significados”. Em vez de se falar em desmobilização, parece que a mobilização se dá em torno de outros objetivos não tão claros, como a luta pela terra e que precisam ser verificados profundamente.

O próximo capítulo procura evidenciar como ocorreram as relações de gênero no processo de luta pela terra no assentamento.

CAPÍTULO V

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