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Gestão das atividades de produção, reprodução e comercialização

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RELAÇÕES DE GÊNERO NA LUTA PELA TERRA

5.4 Gestão das atividades de produção, reprodução e comercialização

É fundamental observar que, depois de tanto tempo neste processo de luta pela terra, vários processos de mediação se entrecruzaram na trajetória de vida de assentados e assentadas que, sem dúvida, incorporaram em sua lida diária algumas cotas de aprendizado das diferentes organizações com as quais conviveram e ainda convivem. Tudo isso não ocorreu de forma linear e o que se percebe é uma apropriação de diferentes discursos por parte de assentados e assentadas, em função de maior ou menor identidade com esta ou aquela organização. Suas análises representam um tipo de comportamento que já não se prende só ao aspecto da produção em si, mas avança para uma cobrança de profissionalização, qualidade e ampliação da comercialização, apresentando-se como uma limitação

“Acho que a questão da profissionalização, ela tem que ser entendida por nós todos,

pois o (a) trabalhador (a) rural tem que ser profissional naquilo que ele (a) faz, e por

isto eu luto pela Escola Família Agrícola. Não é porque eu sou da roça que eu não posso ser profissional naquilo que eu faço. Quero ser uma trabalhadora rural

profissional. Esta é minha profissão, eu sei fazer isto, eu estudei isto e posso competir no mercado lá fora. Eu falo sempre nas reuniões que não adianta produzir a minha rapadura e não poder vendê-la em qualquer lugar. Eu costumo falar que eu enxergo muito longe e que é preciso todo mundo enxergar longe. Vamos vender a rapadura em Natalândia, vamos vender a rapadura em Brasília, vamos vender a rapadura fora de Brasília, fora do Brasil” (Noemi, 36 anos, setembro de 2004).

As dificuldades em concluir todo o processo de produção para as agroindústrias, também são uma preocupação das mulheres

“A gente está discutindo muito a questão das agroindústrias, está buscando isto, mas

ainda não conseguimos. Começamos aí com o aproveitamento dos frutos do cerrado, mas está muito devagar, as mulheres têm muita dificuldade. Às vezes produz o doce, mas não produz num padrão de qualidade que se possa vender ou então não tem para onde vender. Às vezes vender é mais difícil do que produzir” (Noemi, setembro de 2004).

Um exemplo específico de dificuldade individual na comercialização, também é apontado, refletindo o abandono dos assentados e assentadas em relação à discussão de alternativas de distribuição da produção

“Teve uma época em que meu irmão, que é também assentado, produziu uma grande

quantidade de quiabo, mas ele não vendeu os quiabos que produziu, porque ele não sabe vender. Sabe produzir e colher, vender ele não sabe. Então, falta muito isto para os (as) assentados (as). Podíamos até ter uma cooperativa que ajudaria” (Noemi, setembro de 2004).

O Assentamento está participando de um programa do INCRA, o Programa de Consolidação de Assentamentos (PAC), por meio de um convênio com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que irá atuar basicamente em infra-estrutura, sobretudo em assentamentos que já tenham alguma organização social

“Nós temos aqui muitas famílias sem água até para o abastecimento humano. O

programa do BID vai incluir também correção de solo, questão ambiental, vai incluir comercialização, prevê a construção de um posto de venda aqui no assentamento. Então, três grandes ações agora da associação são a questão do tanque de resfriamento de leite que já foi encaminhada, do programa do BID e a energia, que nós estamos correndo atrás. O interessante nisto tudo é ver a grande participação das mulheres tomando muito mais iniciativas do que os homens em todas estas ações(Lúcia, setembro de 2004).

Parece-nos que, aos olhos do Banco do Brasil, como agente financiador, o trabalhador e a trabalhadora assentados são um modelo fictício sem problemas e não um trabalhador ou trabalhadora que precisa de crédito em condições especiais para tocar sua unidade de produção. Se assim não fosse, não estaria em um assentamento de reforma agrária e se utilizaria de outros programas normais. Vejamos o depoimento abaixo da presidente da Associação:

“Uma aberração que acontece na liberação de recursos para custeio de lavoura e

nós temos é “contrato de uso”. Outro problema é que também tem que ser correntista do banco. A alternativa é juntar três pessoas e pagar no nome de um até pagar tudo. Já temos uma assembléia da associação marcada para discutirmos como resolver. Os ganhos da negociação com o banco até agora são que o banco abriu mão de exigir um avalista de fora e não precisa mais ser correntista. O Programa já está implantado, será assinado pelo sindicato e pela Emater. Assinam o contrato o homem e a mulher, juntos, e o Banco não aceita cavalo entrar como renda” (Lúcia, setembro de 2003).

A Presidente da Associação também faz uma análise articulada dos problemas de comercialização, vinculando-os já ao desgaste das terras e à deficiente assistência técnica que, atuando pontualmente, não tem condições de resolver as demandas dos assentados (as). Sinaliza para uma ausência de política pública eficiente para reforma agrária.

“Externamente tem a questão do beneficiamento da produção e comercialização, que

é uma das maiores preocupações hoje no assentamento, que a gente está tentando inclusive trabalhar. Por exemplo, conseguimos organizar o tanque de resfriamento do leite, que é uma forma de melhorar para os produtores de leite. O financiamento foi do Pró-leite com o City Bank, financiado pela Cooperativa de Produtores de Unaí, a CAPU. Vamos pagar em três anos, descontando na folha do leite. O custo foi de trinta e um mil reais e nós demos dez por cento de entrada. O tanque unificou lideranças divergentes do passado e o litro de leite sai a, mais ou menos, cinqüenta e quatro centavos e a compra de ração é coletiva. Outro problema é a conservação das terras. Nós já estamos com as terras desgastadas e aí a gente não tem assistência técnica integral, o que é um problema da reforma agrária, pois nós temos uma parceria com a Emater, mas que é um trabalho parcial que se limita mais a coisas pontuais, como elaborar os projetos do banco, por exemplo. Mas, aquele acompanhamento diário, só tem um técnico, então ele não consegue, nem se quisesse, fazer todo o trabalho”

(Lúcia, setembro de 2004).

Parece-nos que os frutos da história da luta política das mulheres estão sendo colhidos há seu tempo, em processos de empoderamento que demonstram que todas as alternativas que têm sido encontradas para o assentamento em tempos tão difíceis têm sido puxadas e coordenadas pelas mulheres, que contam com a participação dos homens.

“A questão do aproveitamento dos frutos do cerrado é uma iniciativa das mulheres. O

problema de organizar a comercialização do leite, quem mais segurou foram as mulheres; a venda da farinha, do polvilho, na verdade, esta parte da comercialização, eu vejo que quem está mais correndo atrás, são as mulheres. Os homens vão junto, mas quem está tomando iniciativa são as mulheres, que vai numa reunião lá fora, que procura o técnico da Emater. Na verdade, são as lideranças mulheres que estão nesta busca... a escola, a questão da luta para melhorar a educação, a saúde na briga para questão da assistência à saúde das mulheres” (Lúcia, setembro de 2004).

Foi observado, em várias situações do assentamento, este acúmulo de tarefas pelas mulheres, atuando no espaço da produção e da reprodução. Não se pode dizer que não haja mistura de papéis entre os sexos, pois existe. Porém, o período da pesquisa não foi suficiente para verificar com que sistematicidade os homens se misturam nas tarefas de casa, embora a mistura tenha sido observada ou relatada. Na família de dona Consuelo, cujo depoimento está transcrito a seguir, quando chegamos para a entrevista, havia um rapaz (filho da entrevistada)

de 14 anos, na cozinha, fritando bolinhos de polvilho naturalmente, como quem sempre executa esta tarefa que continuou a ser feita, sem intimidação

“As mulheres trabalham até mais que os homens, muitas vezes trabalha mais. Eu

mesma, muitas vezes, eu faço muito mais do que os homens porque eu faço serviço de casa ainda. Você vê, esta semana, aqui em casa” tá tudo petecado”, mas eu tô fazendo farinha, carregando mandioca de uma distância de mais de dois quilômetros e, chega aqui ‘casco’ e levo lá para a fazenda para moer e torrar lá e venho de lá para cá cansada. Agora, ontem eu terminei a farinha e agora eu tô cuidando com o polvilho. Muitos homens não dão conta de lidar com o gado, lidar com a obrigação dele lá e cuidar deste jeito. E eu cuido deste jeito e ainda ajudo o menino com as vacas, dar ração e tudo. Fica cansada, a gente fica muito cansada. Mas, fica cansada com prazer. A vida é difícil, mas é um difícil que a gente fica prazerosa” (Dona Consuelo, 56 anos, setembro de 2004).

A experiência com agricultura familiar fez com que uma assentada fosse convidada para fazer uma apresentação em um seminário da Emater sobre as opções do agricultor familiar: criar galinhas ou criar gado? Em seu contexto específico e com simplicidade ela apresenta sua vivência:

“Eu estava lá fazendo um curso, o moço perguntou assim: ‘a senhora acha que galinha dá resultado?’. Falei: ‘dá mais que gado. Uma galinha dá resultado muito mais do que gado’. E ele calou, não falou mais nada não. Quando foi um dia, eles me chamaram lá pra falar por que a galinha dava mais resultado que gado. Gente, eu estava despreparada de tudo, mas eu fui muito aplaudida, sabe? Daí eu expliquei: ‘se você põe uma galinha pra chocar, com vinte e dois dias os pinto tira, com quatro, cinco meses está botando. Você vê, com dois anos que você leva pra vender um bezerro, quantos frangos que você já tirou daquela galinha? E eu tenho a experiência, porque eu já comprei gado com dinheiro de ovo, com dinheiro de frango, e então eu tenho experiência’. Fui pega de surpresa, mas parece que deu certo” (D.Severina,73 anos, setembro de 2004).

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