• Nenhum resultado encontrado

Muito trabalho, pouco poder: a condição de “des” empoderamento das mulheres na agricultura familiar

No documento Download/Open (páginas 38-42)

RELAÇÕES DE PODER, EMPODERAMENTO E GÊNERO

2.3 Muito trabalho, pouco poder: a condição de “des” empoderamento das mulheres na agricultura familiar

O foco desta pesquisa se propõe a centralizar a atenção sobre mulheres, trabalhadoras rurais que foram à luta e decidiram fazer escolhas de liberdade, coragem e emancipação. Sabemos que este processo se deu às duras penas, que teve e tem custos; que não ocorreu de forma linear com começo, meio e fim determinados. Há que ter sustentabilidade e não se espalha pelo assentamento, por todas as mulheres de todas as gerações e raças como se fosse uma chuva que cai molhando toda a terra, embora este fosse o desejo de muita gente.

Este comportamento político portanto não é comum para a maioria das mulheres do setor rural. É conveniente, no entanto, observarmos também o cotidiano tradicional, o convencional, o não excepcional14,aquela situação predominante na agricultura familiar e na maioria dos assentamentos15 onde o modelo hierárquico desigual predomina, os homens mandam e as mulheres trabalham muito em atividades produtivas e reprodutivas, mas na hora do “vamos ver” quem decide onde investir e como utilizar os recursos a prerrogativa é dos homens, isto é : marido, filhos, pai, avô, irmão,etc.

Nos apoiando em algumas pesquisas relevantes, observamos que a situação da mulher rural sofre variações em diferentes países, havendo que se registrar diferenças entre regiões até dentro de um mesmo País. E embora haja variação na participação das mulheres da divisão do trabalho produtivo, existe muita semelhança entre elas no que diz respeito à sua participação nas atividades de reprodução, tanto aquelas consideradas de ciclo curto como trabalho doméstico e as atividades diárias de manutenção, quanto às de ciclo longo, como reprodução biológica e a educação das crianças (Brumer, 1996).

Segundo a mesma autora (1996:41), as agricultoras carecem ainda de um lugar bem definido na unidade de produção e ela cita o Relatório de 1988 do Secretariado da Comissão Feminina das Comunidades Européias sobre a situação das mulheres em 12 países que compõem a Comunidade Econômica Européia, que reconhece “um papel secundário das

mulheres como tapa-buracos”

A autora sugere que “a modificação na divisão sexual do trabalho por sexo em

atividades produtivas, não é apenas culturalmente determinada, mas também é sensível às condições materiais de produção” (Brumer, 1996 citando Deére & Leon, 1996: 42). Isto significaria vivermos em uma sociedade onde o Estado viabilizasse “condições materiais de produção”; por exemplo, terra, trabalho e capital aos trabalhadores(as). Mudar as relações de

14 O “não excepcional” aqui, diz respeito a posição predominantemente subalterna das mulheres em relação aos

homens na agricultura familiar. Embora se reconheça a existência de um movimento político de mulheres trabalhadoras rurais que inclui esta categoria. Por excepcional aqui se considera a história de luta política pela terra das mulheres, especialmente aquelas do Assentamento do Saco do Rio Preto.

gênero, segundo o raciocínio destas autoras implicaria necessariamente mudar as relações entre Estado e sociedade.

Brumer se pergunta ainda se é inevitável que somente as mulheres se responsabilizem por atividades ligadas à reprodução familiar? E vai mais além quando pergunta a quem caberia o papel principal nesse processo de mudança: as mulheres, aos homens ou ao Estado?

Outros estudos como o de Nobre (1998a), por exemplo, nos alertam para o fato de que as atenções do movimento sindical, dos (as) pesquisadores, do governo e dos organismos internacionais relacionados com a agricultura familiar, quando consideram a família, o fazem de maneira geral, tendo como o centro a figura do “chefe da família”. O trabalho e a visão da mulher, filhas e filhos é negligenciado, como se os interesses do pai incluíssem os de todos.

Segundo a mesma autora, a divisão sexual do trabalho parte do princípio segundo o qual os homens são responsáveis pelo trabalho produtivo (associado ao mercado) e as mulheres pelo trabalho reprodutivo (doméstico, consumo próprio, reprodução da família). Esta divisão expressou no Brasil a oposição entre casa e roçado.

É interessante observar que a autora nos remete aos estudos sobre gênero que segundo ela, tentam explicar a hierarquia e o porque da desigualdade entre homens e mulheres e destaca o trabalho de Woortmann (1995) sobre as relações de parentesco entre colonos de origem alemã no sul do Brasil e entre sitiantes do Nordeste. As observações são fundamentais e se dão não só no campo da produção agrícola, mas também da sexualidade, na posição na comunidade (“oposição simbólica com mulheres à esquerda e homens à direita, no interior da igreja) e na família. Entre os colonos alemães do sul, por exemplo, os nomes masculinos expressam relações de parentesco e compadrio, e o fazer parte de uma família. Os nomes das mulheres são “nomes fantasia”, pois elas serão reconhecidas em relação com o nome do pai e, depois, com o do marido.

Aliás, para Nobre (1998b) as mulheres na agricultura familiar parecem ser transparentes. Seu papel é cristalizado, segue regras, o que atrapalha seu desenvolvimento pleno, pois são obrigadas a seguir determinadas normas e ter um jeito de viver que não é necessariamente o que querem. As relações entre homens e mulheres na família e na organização da produção não são só objetivas, mas impregnadas de valores morais, éticos, que passam por representações simbólicas, pela religiosidade, entre outras questões. O fato de as mulheres perceberem sua condição de subordinadas não implica necessariamente em um movimento de mudança. O medo de se rever é inerente a todas as mulheres, embora possa ser trabalhado.

A autora apresenta dados de exclusão das mulheres pela extensão rural em pesquisas realizadas na Paraíba e no Paraná, embora as mulheres estivessem totalmente envolvidas em atividades produtivas, revelando a prioridade masculina nestas relações representando mais um espaço de poder para os homens. Alerta para uma questão em outro campo, quando se discute a herança, uma vez que quem tem o direito de herança normalmente é o filho mais velho.

Segundo Nobre (1998b), o simples fato de se realizar uma pesquisa do leite16que tinha como objetivo central captar a atuação da mulher dentro da propriedade, já é um choque para

16 Duas pesquisas foram realizadas em conjunto por Ong’s e movimentos: “Mulheres na produção do leite”, do

as pessoas, porque elas se dão conta de coisas que normalmente são dadas como “naturais”. Isto levando-se em consideração que os métodos da pesquisa não foram predominantemente quantitativos como é o mais tradicional e, pelo contrário trabalhou-se com processos qualitativos, o que permitiu revelar questões mais profundas. Identificou-se por exemplo, que os pais não notam o trabalho das filhas, os rapazes reclamam que fazem tudo e as mães são as que enxergam e valorizam o trabalho de cada membro da família. A própria realização da pesquisa, segundo a autora, provocou a discussão e sensibilizou algumas pessoas.

Outra contribuição bastante contundente é a de Gouveia (2003) que nos diz que, tomando como referência as relações de gênero na agricultura familiar em seu atual formato, as possibilidades de construção da cidadania e emancipação das mulheres ainda são muito restritas. O ethos17 da agricultura familiar coloca no pai todo o poder para organizar não só o empreendimento produtivo como também todo o universo de relações que ali ocorrem. A partir dele, constrói-se uma hierarquia rígida na ocupação de lugares, atribuição de valores, oportunidades e benefícios.

Quanto à invisibilidade das mulheres nos processos produtivos é interessante quando Gouveia (2003:47) coloca que “não são as mulheres que se ocultam, são as relações de

dominação patriarcal que lhes atribui um lugar menor”, neste caso segundo ela, se muda o sentido da compreensão da realidade e, conseqüentemente, das estratégias de superação das desigualdades.

A operação de invisibilidade ocorre em um momento posterior ao trabalho realizado, seja ele produtivo ou reprodutivo. Dá-se quando é negado às mulheres o direito de decidir, quando as estatísticas e análises produzidas pelo Estado ou pela sociedade não trabalham os dados separados por sexo; quando discursos mantém a suposta universalidade do masculino (“o agricultor”).

Outro aspecto relevante apontado por Gouveia (2003) é que o caso de migrações das mulheres para áreas urbanas, não por escolha, mas por dificuldades financeiras da unidade de produção, as atividades reprodutivas não são deslocadas para os homens quando há ausência física de uma mulher, são transferidas diretamente para outra mulher da família.

A mesma autora destaca também que as mulheres têm direitos pela metade em relação à posse da terra, aos rendimentos e ao poder de decisão. Segundo ela, 87% dos lotes dos assentamentos do INCRA, 93% do Banco da Terra das propriedades familiares têm homens como titulares.18 Quanto aos rendimentos os dados da última PNAD – Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar, divulgada em 200119indicam que para o universo das pessoas de 10 anos ou mais ocupadas em atividades agrícolas (não especificamente para a agricultura familiar), as mulheres estão majoritariamente nas categorias não remuneradas (39,25%) e produção para o consumo próprio (também 39,25%), demonstrando que quase 80% das mulheres não auferem nenhum rendimento do seu trabalho.

Econômicos e Rurais (DESER), ambos do Paraná e uma “Etnografia das relações de gênero” da Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional Regional do Mato Grosso (Fase – MT).

17ETHOS é um termo grego, de onde se origina a palavra Ética. O filósofo grego Aristóteles definia ETHOS como credibilidade conquistada por um autor através da inteligência, do bom caráter e do respeito pelo público. ETHOS significa, ainda, estudo dos costumes, do caráter, da moral ou espírito de uma época. (www.ethos.com.br, em dez/2005).

18 “A terra da mulher e do homem”, entrevista concedida por Zoraide Garcia Frias ao jornal eletrônico da

Unicamp, nov/2002. Disponível <www.unicamp.br>

Para tratar do poder de decisão, Gouveia (2003) reafirma que ele é restrito, mesmo ao que se refere à esfera reprodutiva, e para tanto se apóia na pesquisa “Relações de Gênero nos Assentamentos Rurais”20. Apesar de creditar às mulheres o domínio absoluto do espaço produtivo, a realidade é mais complexa, tendo respostas menos uniformes nos estados pesquisados. Contudo o que pode parecer, à primeira vista, bastante surpreendente é que, em nenhum dos estados pesquisados, as mulheres têm maior poder de decisão sobre quais alimentos devem ser comprados, sendo mais freqüente que os homens tomem essa decisão. A primeira vista porque, nos casos das agricultoras familiares, tudo o que envolve dinheiro e saída do espaço restrito do estabelecimento familiar não lhes pertence, não lhes é direito, já que a tradição patriarcal que organiza este cotidiano nega às mulheres a possibilidade de exercerem um princípio fundamental de ser sujeito: a liberdade de ir e vir21.

Gouveia reafirma seus argumentos dizendo que sem dinheiro, sem direito à herança, sem espaço, sem poder, sem liberdade, assim são as mulheres em sua experiência cotidiana na agricultura familiar.

O próximo item se apoiará em estudos que, consideram o assentamento de reforma agrária como um espaço social, resultante de vários processos de mudanças que representam trajetórias de excepcionalidades.

20 Ver nota 17

21 Informações complementares e análogas de outra região, segundo dados de Santos e Almeida (2003:33),de

790 mulheres entrevistadas no Diagnóstico das relações de gênero em áreas de assentamento de reforma agrária e de agricultura familiar na região do Sertão do Pajeú, em Pernambuco, 770 não ocupam nenhum cargo de diretoria. Os dados indicam dificuldades para as mulheres assumirem instâncias de poder: espaços culturalmente destinados aos homens. Tal situação relaciona-se à divisão sexual do poder.

CAPÍTULO III

A VIVÊNCIA NOS ASSENTAMENTOS: ALGUMAS

No documento Download/Open (páginas 38-42)